21. Abrindo o Vinho
Patrick conseguia ser um maldito filho da puta com a facilidade e ingenuidade de poucos. Aquela garrafa... eu não sabia como reagir.
Toda aquela gentileza, invasão, dependência, rastejando tão sorrateiramente com uma cobra, rindo de si mesmo e de todas as coisas que deixara caídas pelo chão.
Enquanto eu... Oras, me preocupava com os cacos espalhados, e como poderiam machucar alguém.
No fim, é claro, que fui o único a, esquecido e distraído, pisar neles.
Aquela amabilidade de retomar um momento tão singular, que eu tinha certeza absoluta que para ele sequer significava algo, perfurara fundo e havia mais carne do que me lembrava. Medo de meus pensamentos e onde eles me levaram, era o que fazia meus dedos travarem naquele momento.
Aquela dor de cabeça infernal latejava, ofegante, mal conseguia lidar com a força pulsante em meus pulmões. A sensação de peso tomava todo o meu corpo, e deitado no banco do carro, eu só podia me perguntar que porra eu estava fazendo. "É só uma maldita garrafa velha", repetia pra mim mesmo.
Me recordava daquele exato momento, em que da maneira mais simples e direta ele novamente me jogaria de mãos impreparadas, me perguntou se eu tinha algo a dizer.
Não, disse, murmurante, chocado, pra mim mesmo e para o ar quente daquele carro, sem ter forças para mexer as pernas ou dormir novamente, então voltar ao sonho que, muito provavelmente, evitara que eu caísse daquela forma logo da primeira vez que ele me abraçou.
Você imagina agora, o quão forte eu sentira. A dor, o remorso, a angústia.
Tremendo de nervoso, dispersando no passar daqueles dias, como uma fogueira acesa, negligentemente, só cuidara da fumaça. Enquanto todo o resto queimava fervorosamente.
Mas não. Não podia fazer aquilo de novo.
Pensava que podia, pois ele dizia que iria partir em breve, de qualquer forma, mas é claro, tudo aquilo foi só o começo. Patrick... Aquele Patrick de ações imprevisíveis, atento e disperso, inconstante como os raios de um dia nublado, nunca, nunca iria facilitar as coisas pra mim.
No bater da meia-noite todas as ilusões retornaram ao que verdadeiramente eram.
Em poucas horas eu não estava nada bem.
Pus a primeira camisa que vi no armário, mal lavei os cabelos e os penteei para trás. Sai para encontrá-lo, sem sequer olhar no espelho. Da maneira que saí de casa à forma como o encontrei, até mesmo eu me surpreendi com a rapidez com que engoli todos aqueles nós.
Abra as cortinas, disse ele, desnecessariamente já que pouco antes de anoitecer uma forte tempestade veio. Eu o fitava de baixo, sentado no chão ao lado da mesa, com uma tela, pincel e palheta nas mãos.
Havia finalizado alguns capítulos, enviara para Lauren e praticamente estava com o livro completo, porém, não foram bem uma comemoração, seria mais um uso de hiper inspiração, porém a princípio não fizemos muito mais do que apenas falar e abrir aquele vinho.
Patrick estava sentado na cadeira em frente a janela, acendera aquele maldito cigarro, erguera as mangas até o antebraço, e olhando sempre para as gotículas de chuva escorrendo no vidro, ele iniciava uma conversa sobre cheiros, flores, ou qualquer coisa assim. Tateando o papel, batucando irritantemente aquela caneta, a cada batida, sentia que dobrava-se a força daquela marreta que pairava sobre a minha cabeça. Um tambor barulhento de pensamentos invasivos.
Era fácil dar ouvidos aqueles pensamentos, nós falávamos tão baixo, que quase sussurrávamos, mesmo estando de uma distância tão próxima, as palavras eram comidas pelo barulho da chuva, me fazendo ser obrigado a fitar seu rosto, contrariado e quase irritado, para entender o que dizia com mais precisão.
A cada hora, aquelas folhas se acumulavam na mesa a sua frente, o que era de certa forma incrível, dado que ele mais as falava do que escrevia.
Assistia atento e esquisito, enquanto uma mão segurava a caneta, a outra alternava-se sutilmente entre o cigarro e a taça de vinho. O cheiro de nicotina começava a me dar ânsias. Não era uma questão física, naquela noite sentia como se até mesmo minha própria sombra pudesse me irritar.
Fitava entre um minuto e outro aquele movimento de vai e vem da mão e o cigarro, que na minha cabeça seguiam-se muito rápidos, assim como a fumaça saindo quietamente de seu nariz, boca, entre os dedos... Condensando-se na escuridão de seus cabelos. Descia os olhos para meus pincéis, ao contrário de si, minha inspiração oscilava e maior parte do tempo não importava muito o que estava fazendo.
Patrick era, inegavelmente, o ladrão da minha atenção, já não sabia se a pegava de volta, ou como poderia fazer isso, então bebia daquele vinho, em goles mínimos e metódicos, me dando desculpas para virar as costas e recostar-me perto da janela.
Enquanto via ainda aqueles lábios de pronúncia risonha, estranhamente silenciarem, me entretendo como teatro, ou me alimentando de uma forma um tanto masoquista, sem perceber quando aqueles incendiários olhos azuis acompanhavam-me, igualmente, o ar cínico de quem percebe que está sendo observado e não sabe bem como responder, enquanto eu ainda afundava ou boiava naquele transe momentâneo.
Patrick largou o cigarro, no ângulo perfeito para que eu pudesse endireitar o olhar, muito mal dissimulado, é claro.
__Algo te incomoda?__ perguntou-me com um olhar preocupado.
Voltei a meu quadro, fingindo qualquer movimento não-natural.
Respondendo com desleixo "Está suando", despretensiosamente.
E ele fitou-me perdido, o cenho franzido no rosto perfeito.
_Você está suando. __ repeti. Um tanto cruel.
__Estou? __ Deslizou a mão na testa e, mesmo que pouco me importasse com aquilo, ele realmente estava, não é como se fosse mentira.
Não havia razão específica, eu só queria que ele saísse dali, que me deixasse sozinho, e talvez esquecer um pouco o minhas mãos suadas. Apontei-lhe a porta atrás de si, não me importo que use meu banheiro, disse.
Foi tudo tão teatralmente fácil de manipular, que não consegui evitar de sorrir, diante de sua ingenuidade, além de que eu havia sido rude e Patrick ignorara completamente. Limpei os dedos metodicamente do suor e da culpa.
Estiquei as costas, cruzei as mãos atrás da cabeça, num silêncio turbulento encarei aquela porta, sentindo meu peito ferver como se tivesse esvaziado dez daquelas garrafas.
"Eu não estou... nada bem". Não foi lá uma grande constatação.
Afrouxei a gravata com medo de sufocar.
O que acontecia se aquilo continuasse? Eu não podia confiar em mim mesmo, como se fosse movido por forças desconhecidas? Não havia tempo para isso, se eu não quisesse mais vê-lo seria simples inventar uma desculpa, como em todas as outras vezes, mas sabem o que havia de diferente das outras vezes?
Procura. Patrick me procurava, necessitava de mim, dependia da minha presença, vivia carente pelos cantos.
É claro que parecia impossível pra mim abandoná-lo, afinal, querendo ou não, ele não havia feito absolutamente nada de errado. Tratava-me ainda melhor do que antigamente, me idolatrava cegamente.
No mesmo instante em que me peguei pensativo, encarando aquela garrafa de vidro escuro como se esta representasse todo o beco sem saída em que me encontrava, ele abriu aquela porta e andou pela sala, com a toalha nos cabelos, esfregando frenético, me perguntando sobre aquele quadro.
Ergui os olhos assustado. O que ele queria com aquilo? Não era o melhor momento para desenterrar coisas. "Não sei, está por ai", resmunguei. Minha resposta aquela situação era ficar carrancudo.
A tudo respondia vagamente, cuspindo sarcasmo. Toda a raiva, tristeza, mágoa e dor se uniam e se mesclavam, silenciosamente dentro de mim. Não estava mais despertando, estava desperto e sedento.
A verdade é que gostei menos do que gostaria. Não tinha mais idade pra essas coisas, só queria que todos aqueles sentimentos parassem de se revirar no meu estômago e simplesmente saíssem antes que machucassem alguém. Respirei fundo e me concentrei na única coisa que sempre foi capaz de absorver meus excessos.
Arranquei a força tudo o que pude, com tanta obstinação que devo ter encharcado de suor.
Pintei uma simples paisagem de montanhas, algo quieto, de neve salpicada levemente e um céu rosáceo, sem sol.
Céus, como Patrick o adorou.
Ficou ali, sorrindo, o segurou e ergueu para ver mais de perto. "Nem precisa terminá-lo, disse, ele é perfeito assim."
Ele é perfeito assim... Era tão de seu perfil dizer isso, não é? Vê-lo adorar um quadro qualquer como se todos os outros já não existissem, o mundo parecia esfarelar. Vapor e cinza. A noite secou mesmo com tanto vinho.
Aquele olhar divertido parecia me indagar dolorosamente, o porquê do meu coração ainda pulsar tão quente. A torrente de poeira era mais como fumaça esbranquiçada, rodeando sua cabeça molhada.
Porquês. Imaginava todos eles, que mais seriam perguntas de mim para mim do que possíveis naqueles lábios risonhos. "Por que você desvia esse olhar outrora tão indiferente? Do que você tem medo? Em todos esses anos, como pode guardar rancor? Não foi você mesmo que disse que não tinha nada a dizer? Que sequer quis se despedir? E agora você vai me afastar, é isso?"
"Não Patrick, eu não posso. Não há como eu lutar contra toda a força que você exerce sobre mim."
Seguia nesse diálogo imaginário, observando inquieto, seu semblante corado se aproximar de mim, sentando naquela mesa como se nao fosse nada desconfortável, apertando aquela taça entre os dedos, enquanto minha mente oscilava novamente. Eu não queria aquele vinho, não queria sentir o cheiro da sua nicotina, não queria aceitar que tudo aquilo... podia me incomodar tanto.
Não precisei de mais taças para esquentar até os dedos dos pés, mesmo com a brisa gélida da janela entreaberta. Sua voz me aquecia, veludosa.
Quanto mais ele falava, mais a minha cabeça girava, ele assistindo aquelas gotas na janela, eu notando que se assimilavam as que desciam pelo seu pescoço. Era tão gráfico... em um segundo, pensei que eu quase podia tocar.
A medida que meus óculos se embaçavam, contraditoriamente a visão ficava tão nítida, e talvez por isso, depois de um tempo, não consegui olhar fixamente praquelas gotas dançantes, fugindo covarde da sua sedução molhada.
A trovoada cantava, o frio amolecia por fora, umedecendo por dentro, cozinhando, saindo de mim mesmo. Sem fugir daquela voz mansa e baixa, reclinada pra esquerda, apoiada no vidro da janela, se embaralhava na minha cabeça junto do som do meu próprio coração.
Era perigoso, inescapável, tão gostoso de ouvir. Fechei os olhos em algum momento.
Quase me esquecendo como os sons vinha de uma par de lábios, e que ele esperava que eu respondesse, sem esperar, assustei-me, ao sentir o toque firme de seus dedos no meu ombro.
Para a perdição e rendição completa, eu abri os olhos, enxergando algo além das sombras nas paredes da caverna.
Na mais pura indiferença de olhares ele me transformou em grãos. Grãos insignificantes. O ser da mais pura insignificância. Tão menor, tão pequenino ser, como um recém nascido que berra diante do olhar materno. Sentindo aquele olhar invadir-me por completo eu não pude evitar de responder.
Mesmo com as mãos quentes, meus lábios ainda estavam tão frios, que ainda hesitante e trêmulo, busquei o calor.
Lento e necessitado, deslizando os dedos por aquele cabelo escorregadio, invadindo-o, com um beijo. Durou o suficiente, para saciar aquilo que não podia ser alimentado, ultrapassar, com os dois pés, uma linha que ainda existia, e responder, bem diretamente, qual o verdadeiro sabor daquele veneno.
Como supostamente deveria ser seder a um poder maior, e nesse caso, era Patrick, estava quase destinado a ser; entre um suspiro longo e um vinho esparramado na mesa.
Mal ouvi ele dizer meu nome quando simplesmente cambaleei pelo quarto, afastando de seus lábios com brusquidão e vergonha escorrendo como suor, sem coragem olhar-lhe na face, deslizando as mãos no cabelo, procurando alguma razão entre as orelhas e a nuca.
Sem conseguir pensar em nada, o estômago apertando, só... Fugi. Puxei meu casaco e abri a porta, dizendo qualquer coisa que não me lembro e saindo no meio da chuva.
Ainda não havia absorvido por completo o que havia feito, dando dois passos adiante na calçada, parei imediatamente num sobressalto; eu o deixei sozinho, depois daquilo, depois de ter agido tão estranhamente e ter... Sim, de ter o beijado.
Como uma epifania, repeti o óbvio. Aquilo não podia ter acontecido.
E mesmo assim, eu não evitava de ter curiosidade, de pensar que se aquilo realmente aconteceu ou foi alguma alucinação da minha cabeça, e o que me aguardava nos dias seguintes. O que me aguardava quando tivesse que lidar com ele de novo...
Enfim, não houve grandes mistérios; eu me afastei.
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