2. Florescer


Ser e crescer... Peguei-me afundando naqueles pensamentos um dia desses. A pessoa que sou hoje, poderia compreender por completo o processo sempre inacabado de construir a si mesmo? É impossível, eu imagino, vigiar todas as cavidades e raízes, assistir o crescimento contínuo... talvez como ler a própria autobiografia. Não existe um momento preciso que separe o ser antes e ser depois... Simplesmente se é.

Quanto mais os cabelos cresciam, os dedos se alongavam, o tempo encurtava e o coração pulsava mais rápido, eu sentia que tudo ainda era apenas a ponta de uma linha que sequer começara a se tecer. Para mim, o mundo se resumia a Coven e Jony por muito tempo, e por muito tempo eu afundei numa inocência dormente. Crescer significou apegar-se a algo, apegar-se ao mundo. Ironicamente afinal, mesmo que eu não fosse nada apegado a mim mesmo. Como uma criança sem pais, era difícil entender o conceito sem um bom modelo exterior; meu tio era avoado demais para compreender tais anseios e meu ciclo era pequeno demais para alongar suficientemente o olhar.

Então.. O que dizer? Jony veio na hora certa, como uma carta sem remetente. Como os anseios de juventude. Então assisti como aquele rapaz enraizou; em meus dias, meus olhares, meus sorrisos, lágrimas, descrenças e também ideais. E gostava de acreditar que fiz o mesmo por ele.

Os anos correriam e lentamente a criança estranha que um dia eu fora, parecia ganhar novas cores. Observava e se desdobrava, compreensões de mundo vinham a medida que passava a ver a mim mesmo sob os olhos alheios.

Aquela criança colorida floriu, e passou a estender-se. Querer... Muitas coisas. O que posso dizer? Pra mim, pareceu o curso correto, sempre fui ansioso por novos ares, novas vozes e tudo o que pudesse expandir além de mim mesmo. Jony Scaler era a representação física de alguém que, tão perfeitamente, poderia fazer isso.

Ele era apenas incrível. Uma luz resplandecente aos olhos do jovem e tão facilmente admirável que fora, entre seus dedos escorria o mel puro das musas. Não havia fracasso em seu vocabulário e todos estavam sempre com os olhos vidrados em si... Como uma luz ofuscante e única, peça rara em seu altar.

Bom com números, bom com palavras, bom com livros, bom com seus dedos; eu nunca havia conhecido uma criança que tocasse piano. Na verdade, as crianças que eu conhecia não eram excepcionalmente boas em nada fora esportes ou... Correrem e saltarem por qualquer estrutura humanamente possível. Talvez eu tivesse passado muito tempo no ciclo errado.

Estar com Jony naquela época foi um abrir de cortinas, começando pelo momento em que atravessei os portões de sua mansão pela primeira vez.

Após estacionar minha bicicleta de azul descascado ao lado de um arbusto perfeitamente aparado, adentrei pelo portal mágico até o mundo Scaler. Os Scalers não eram insanamente ricos, nunca foram, mas imagine que para uma criança como eu... Todo e qualquer detalhe soava o magistral exemplo da luxuria máxima. Nunca havia visto um lustre de vidro, me perguntando como se pareciam tanto com diamantes (devo ter perguntado para algum empregado).

Estar na rotina constante do herdeiro Scaler surpreendeu aos seus empregados mais do que a mim mesmo. Tânia relaxou sua tez franzida aos poucos, dia após dia, rindo alto pelos seus corredores, e mesmo com algumas caras fechadas, Jony parecia feliz, de certa forma, em poder reclamar da minha falta de modos, enquanto me convidava a inventar músicas de suspense em seu piano gigantesco, Tânia era tão rígida e distante, foi difícil entendê-la a princípio, mas em uma semana ao menos, pensei ter conquistado rapidamente sua confiança.

__Tente não correr tanto, garoto__ Comentou, um suspiro sofrido, com aquele medo de que eu fizesse seu pequeno mestre cair pelas escadas.

Tudo bem que ela estava certa. Não seria superproteção se aquele garoto não parecesse estar a ponto de sair voando com vento. Entretanto, raramente repreendia-o mais que um olhar, assim havia algo de sutil nos seus modos maternais, como se, entre a agressividade de sua presença e a elegância de seus modos, houvesse uma linha que separasse os olhos que tinha para Jony de todos nós. Algo que alguém de fora não saberia interpretar.

Com o tempo tive a impressão de que casa de Jony como um todo era um tanto sombria. Com exceção do jardim colorido e o único lugar onde a energia se assentava; o quarto.

Em seu quarto a luz se esparramava livre, um branco intenso que não queimava ao olhar, combinava com a efervescência das telas na parede. O quão magnífico era aquele lugar? Um santuário de Jony, que aos poucos, podia ser considerado meu santuário também. Jony era uma figura plácida, havia um sentimento de limpo em toda sua essência, então, imagine que um hobby como pintura não surpreenderia só a mim. Ele percebeu minha surpresa e me apresentou à tudo apropriadamente.

Estar ali era como atravessar um longo corrimão. Estávamos sempre nos primeiros degraus e maior parte do tempo, correndo e saltando a uma distância segura, uma ingenuidade e frivolidade divertida, até aqueles momentos onde podia sentar-me a sua frente no mais profundo silêncio, admirar a voz lenta e bem articulada de Jony retumbando pelo quarto, que parecia arrastar-se como raízes, afundando e interconectando no meu/nosso âmago.

Estávamos próximos e nossas mentes não precisavam sempre corresponder as expectativas alheias, precisávamos apenas daquele quarto e de nossos sonhos.

Mesmo que eu não tivesse sonhos até conhecê-lo.

Por boa parte da pré-adolescência eu me fechei no casulo limitado de alguém que não era apto. Simplesmente não apto. Fora uma época divertida, aquela mesma rua cinzenta parecia colorir-se junto comigo. As raízes profundas e intensas de Jony me enroscaram num abraço sutil, mesmo que demorasse alguns anos para eu notasse o quanto.

Em toda minha juventude eu nunca fui bom em nada específico e vivia muito mais pensando do que fazendo.

Não foi por modéstia que eu expressei minha falta de habilidade com qualquer coisa. Eu tentara muitos esportes, e dentre eles o basquete em particular me dá ânsias. Tentara até cantar, e mesmo que não fosse tão ruim, também não era algo de se orgulhar. Todos tinham algo em especial, em que é o melhor, e o máximo que eu poderia me orgulhar seria de meus livros.

Na escola, a escrita em si não era o meu forte, o que eu tinha era boa percepção, gostava de interpretar imagens, cenas, situações e pessoas. Lendo sempre, a criança solitária ganhou galhos, e as pessoas acostumaram a me julgar como um jovem intelectual assíduo, mas eu apenas... gostava de livros. Era-me algo tão natural, que jamais enxergaria como uma habilidade especial. Não me interessava em particularmente obter algo deles, como ficar mais inteligente ou melhorar minhas notas.

... Entretanto era difícil convencer qualquer um disso estando com alguém como Jony.

Ao contrário de mim, o tempo me ajudou a perceber, ele fazia tudo e qualquer coisa pelo mérito, ser o melhor. Os livros que lia eram tão mais "exóticos" do que os meus... e exuberantes e tão pesados. Ele era o que se dizia, um jovem prodígio. Por isso todos tentavam retirar o máximo que podiam daquela aura de sabedoria, enquanto eu apenas desejava saber se, no fundo, ele odiava terrivelmente tudo aquilo.

Enquanto eu corria em busca de identidade, meu amigo jogava com as possibilidades. Constantemente brincava sobre como o mundo podia se encaixar perfeitamente em suas mãos, pois eu não exagero quando digo que, Jony Scaler podia fazer tudo. Tudo e literalmente qualquer coisa com maestria. Era assim que as pessoas o descreviam, e era assim que ele se desenhou diante dos meus olhos por muito tempo... Ou talvez pela eternidade. Embora ele não parecesse se importar, fazia o que julgava útil e se lhe pedissem ajuda, ele usava suas habilidades sem hesitar. Era difícil de imaginar que alguém tão determinado pudesse ter algo a temer do mundo. Era difícil de imaginar que pudesse haver algo em comum entre polos tão opostos como nós, a princípio.

Mas lá estávamos, sentados no chão da varanda, admirando os finos raios de tarde alaranjando o assoalho. Como se nada pudesse importar mais do que apenas aqueles grãos de poeira flutuando na luz.

Lá estávamos, no auge de nossos dezesseis anos, e como o tempo passou lentamente entre nossos dedos só nós podíamos dizer. Disse antes sobre como não havia um sonho em específico em meu horizonte, e isso até aquele momento pareceu-me até despercebido, então imagine, como aquele garoto, a sombra de uma luz tão ofuscante, andando por aqueles corredores tão vidrado em estar próximo o suficiente daquele pedestal, sem jamais tomar iniciativa para criar o próprio.

Apenas imagine como minhas inseguranças e limitações foram tão facilmente questionadas, folha por folha, como um outono sutil, por aqueles atentos e profundos olhos indagadores.

"Você ama a poesia, não é?", e como um suspiro de Jony, minhas frustações soaram tão simples, tão simples que ninguém ousaria dizer.

Ergui os olhos, num espanto tão exagerado como as indecisões geralmente são, o peito apertado a ruminar, como eu jamais diria em voz alta como gostava de ter seus olhos observadores a me guiar. Como precisava daquilo. Como durante tanto tempo, eu flutuei e oscilei, me retraí, me contentei. "Não apto." Era mais fácil assumir a mediocridade, mas "Meus Deus, eu não sou mais uma criança." Encarei seus dedos recém sujos de tinta, tão finos e calejados quanto sempre, se erguerem com uma taça de licor escuro, o pôr do sol iluminando-me como uma metáfora cruel.

No laranja de nossos silêncios, reclinei-me.

"Eu amo a poesia, e amo meus livros. Mas o que isso me torna especial?". Pareceu-nos uma resposta simples. Olhar o passado e simplificar o que sabemos, de uma forma subjetiva ou mais direta, que foi um processo mais do que acontecimento, é difícil.

Num futuro próximo, eu não me tornei um escritor, é claro, somente porque Jony Scaler me perguntou se o que eu amava era tão importante quanto minha ânsia por personalidade, ao ponto que significaria a mesma coisa. A chama da sua observação não me incendiou tão rápido. Mas como sempre, ele estava tão certo.

O que podemos fazer pelo passado é analisá-lo, resumi-lo o menos possível, aceitar os erros e então, admirar; ainda que com a tristeza de quem não pode reviver cada sorriso, cada ingenuidade, porém se permitindo tomar pela nostalgia, com a destreza de quem relê um livro favorito, e sente cada reviravolta como se fosse a primeira vez.

Assim como não se pode desvendar por completo o passado, ninguém pode decidir em um estalar de dedos o que deveria constituir o futuro. Mesmo que se queira concertar um único erro ou preveni-lo, tudo o que decidimos é eternamente cravado no que vivemos. Mesmo quando somos ainda tão jovens e nos perguntamos por que fazemos tal coisa e não aquela?, a resposta é quase sempre, porque tinha de ser assim.

E refletindo sobre isso, a forma como peguei aquela caneta, afrouxei a pequena gravata, os dedos levemente trêmulos pelas doses risíveis de álcool e timidez, o que esperava que as primeiras palavras me dissessem? revelassem o segredo do meu pedestal? Incluíssem, como pensamentos, na narrativa cinzenta de perguntas e respostas que apenas eu poderia segredar? Escrever, a primeira vista, soou assustador. Tão assustador que, encarando Jony pelo canto do olho, só pude pensar em, o quão limitado você se torna ao encarar sua total inaptidão. Conhecê-lo me trouxe meu primeiro amigo, minha inspiração, assim como, minha primeira decepção.

A vida nem sempre, ou quase sempre, pode ser justa. Escrevi, num riso de desespero juvenil, mordendo a ponta daquela caneta com o cuspe da inveja mais amarga que já tocou em minha língua. Ah... O quão ingrato eu soaria dizendo aquilo em voz alta, não é mesmo?

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Não podia deixá-lo ir. Não queria, na verdade. Porque ele era a única pessoa, a única pessoa, assim como eu, que não se importava com ninguém além de si mesmo. Sem compromissos com ninguém, sem segundas intenções, sem amarras. Ele era o único que não podia ir, mas todos sempre iam. Para tão longe e de tão difícil acesso que esperam que você os esqueça. Aqueles que ficam são os cobertos da mesmice, e derramam suas mesmices na rotina, o estranho era perceber que não havia rotina sem ele.

É estranho ver que só se conhece alguém por completo depois de perdê-la. Você revira aquelas fotos, relê aquelas cartas, e é tudo completamente diferente, como se as lesse pela primeira vez.

Assim são as memórias, estanhas; você as têm a tanto tempo que se esquece como enxergá-las, e um sorriso as vezes não é mais um sorriso, talvez ele seja uma lágrima. Aquele olhar tão frio, talvez te desnude com desejo, ou mesmo palavras ditas em ódio, tragam uma declaração de amor.

Memórias são enganosas, por isso somos capazes de reescrevê-las, quando não as desejamos como são. As daquele tempo não são diferentes. As que tenho agora são rascunhos, releituras, comentários silenciosos, é claro, afinal, apesar de tê-las desdobrado tantas vezes aos olhos de Patrick.

Depois que Patrick se foi, eu passei maior parte do meu tempo estudando para entrar na Universidade de Artes de Coven, desde criança eu gostava de pintar. Mesmo eu fosse um jovem de aparência tão fria, o que não posso negar que era, a pintura não era pra ser nada sentimental. Eu procurava algo. Essa ideia de fugir das emoções e ao mesmo tempo tentar compreendê-las... é um tanto hipócrita, concordo. Eu era um adolescente controverso como qualquer outro. E exigente, muito exigente. Nada do que sai de dentro de mim parecia bom o bastante.

E assim eu achava que era para todos.

Como uma criança incapaz de dizer qualquer palavra, de expressar os próprios desejos, enraivecendo-se por dentro, apodrecendo como uma construção envelhecida caindo aos pedaços. Olhando-me no espelho, sem palavras de conforto, sem procurar por satisfação, era como se a imagem se embaçasse e a paisagem acabasse sendo sempre enganosa. A tinta foi uma maneira que encontrei de construir minha própria paisagem.

Eu precisava fazer tudo sozinho. A linha sempre esteve fechada. Por isso, eu não falava nada, mal saia do quarto, mal comia. Por isso também adoeci tão rapidamente. Precisava dormir, relaxar os músculos, respirar. Então a janela de vidro se tornou a minha gaiola, deitado dia e noite naquela cama branca, depois de ter perdido tudo o que me importava. Não havia nada que eu quisesse, o quadro secara sem tinta, as vozes não me alcançavam onde caí. Cada dia andava como um ponto a mais no meu braço, um furo cada vez mais profundo, com rostos cada vez mais desconhecidos e meus olhos entreabertos já não vendo mais que sombras.

Tânia disse-me que não era verdade. As vozes que ouvia, todos os medos que sentia ou mesmo aquela vontade insaciável de não saber de mais nada, de evaporar por completo. Estava tudo apenas na minha cabeça. Sequer os remédios eram reais, eu, talvez, nem fosse também. A verdade é que a única certeza que tinha era que ainda respirava.

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