18. Uma Nova Parte
Escolhendo aquele quadro para exibir, os apreciadores jamais imaginariam quais os pensamentos entranhados entre as pinceladas firmes. Toda uma profundeza de incertezas e vidros varridos pra debaixo do tapete.
O retrato que expunha a feiura por detrás da felicidade repentina que me desenharam. Ah, sim. Muito bem escondido, até de mim mesmo. Afinal, o mundo não para apenas você está pra baixo.
Não foi um passo atrás do outro, diria que se assemelhou mais a uma queda livre. De braços abertos, sem olhar demais, só um movimento impulsivo atrás do outro, até... Afundar os pés no chão. Chegava aos vinte e cinco, quero dizer, estava indo bem demais, até.
Foram anos bons, até diria que meus sonhos estavam se realizando.
Abria bem os braços e caminhava lento, e entre as cortinas, o palco um tanto vazio... Joe me reencontrou.
Naquela época ela não ficou para ver meu eu mais deplorável, também não retornou a tempo de vê-lo se metamorfosear em algo que se distanciava cada vez mais do modelo original. Não foi intencional. Não nos apegamos aos meses em Sheffield, por mais doces que foram, acabara. Nossos passos se distanciaram e estávamos bem. Éramos assim.
Poderíamos ser amigos de novo, mas acho que não estávamos mais dispostos a isso. Não podíamos recuar ou avançar.
Até aquela exposição.
Invadido por um misto de emoções, as faíscas firmes de uma lembrança doce e quase vaga, Joe estava tão... Próxima.
Mesmo que raramente me enviasse cartas, com perguntas repetitivas, vagas e costumeiras, que se espalhavam pelas gavetas. No último ano, sabendo pelos jornais de mais um de meus tempos de bonança no trabalho, ela pela primeira vez trocara as perguntas por uma exclamação: "Quero ver o retrato". Direta e simples.
O retrato obscuro, costurado, descosturado, repintado, que logo após ele partir, mandei expor.
A solidão deplorável do meu primeiro ano sem Patrick. Ela nunca poderia saber o quanto seu desejo me desvendava. Como ela poderia saber? Não, ela não sabia. Mas adivinhara.
Aquela mulher era capaz disso.
Joe vivia bem suas aventuras, e não se abalava pelo tempo. Não, na verdade ver o tempo escorrer nos seus dedos parecia enaltecê-la. Quando a vi entrar por aquela porta, tive a sensação que estava mais bela. Os cabelos crescidos, os trajes pareciam mais finos e o riso mais suave. Parecíamos quase equiparados na idade, mesmo que ela fosse alguns anos mais nova. Fazia apenas menos de dois anos desde a última vez que a vira, como as pessoas podem mudar tanto?
Encamo-nos íntimos. Ia explicando e explicando, pensando que um momento a estranheza daquele reencontro se revelaria por baixo das unhas roídas, esperando seus olhos correrem para bem longe de mim.
Estava próxima e palpável. Se Michael esteve do lado oposto da montanha, Joe estava bem mais perto. Do outro lado da calçada, por exemplo.
Através da neblina, caminhando lentamente debaixo de um guarda chuva, numa imagem ao mesmo tempo assombrosa e misteriosa, como a protagonista de um conto policial. Ela voava facilmente de árvore em árvore, que se esquecera como era pousar num galho novo. Eu disse que ela nunca sabia começar nada.
De um instante impreciso, para um emaranhado estranho de casos, ela voltou para um degrau importante na minha vida, mas dessa vez ela não era apenas um momento em meio a turbulência, que vendo como eu me queimava, com as pernas cruzadas, velava os meus erros.
Assim como incendiava suas certezas, duvidando a cada segundo se um de nós iria recuar a mão, poderia dizer que era bom nisso. Péssimo em continuidades, é claro, acho que nunca mudei nessa parte.
Do outro lado da rua, ela caminhava lentamente em minha direção, no rosto uma expressão familiar, daquelas que se vê refletida em si mesmo, serena e entregue, no fim daquela noite, arrastou-me para o calor de meses atrás, entre seus braços e uma parcela estranha no tempo. Mergulhamos numa fresta temporal, macia e quente, mais caseiro que passageiro, agora tão familiar.
Estávamos amadurecendo, afinal, pensei, observando nossas frestas abertas.
Podia esquecer aquele quadro, por uma semana, finalmente me permitiria. A chuva chegou para regar a grama, cansada de inundar as frestas.
Até que as dúvidas sanaram, e ela me rodeou com suas mãos sem a mínima hesitação, sem se importar de sujar-se de poeira. Doce Joe.
Não saberia dizer o que nos unia tanto a princípio, nós mudamos, é claro, mas nossas histórias poderiam se conectar num único e singular momento de emoção? Perguntando diretamente praqueles lábios, que logo me responderam, nunca haver uma conexão completa, nenhuma relação é construída com certezas, e ela gostava disso. Bem, nunca pensei que um dia poderia gostar também.
Também posso dizer que nos divertimos, genuinamente. Por mais ou menos duas semanas. Ela já bebia muito menos e eu corria muito mais, as mãos amassadas de argila tentando fugir da rotina, e ela se questionando perplexa porque as mulheres inglesas se vestiam tão fora de moda. Poderíamos continuar assim, pressenti.
Joe era pequena e simples, contava histórias breves e ouvia com atenção, seu rosto inteligente analisava e ainda assim, como podia ser tão gentil sempre? Uma pessoa tão crítica tende a ser cruel às vezes, ou talvez era só eu me refletindo no seu temperamento. Gostava disso também, como era cada vez mais difícil me enxergar nas suas qualidades, não menos que em seus defeitos.
Depois disso nós trocamos cartas quase todos os meses. E mesmo as frivolidades se fizeram menos entediantes se podia falar delas no fim do dia. Me senti um mentiroso melhor aos seus olhos, e acho que ela concordaria.
Aqueles sonhos se materializaram na palma da mão. Voltei para a mansão no fim do ano, sem mais medo de encarar os fantasmas nas escadas. Ainda mantive o apartamento por um tempo, porém Joe foi uma razão para me mudar definitivamente.
No ano seguinte ficou um mês inteiro em Coven para passar o aniversário dos pais em família, eles moravam num casebre simples perto do farol, um lugar que a primeira vista não chamaria muita atenção.
Estaria mentindo se dissesse que não fiquei nervoso ao primeiro encontro. Mr e Mrs Chambers me receberam com tanta atenção e cortesia que de certa forma me deixaram menos tranquilo do que deveria. Tomamos chá enquanto Mr Chambers me questionava sobre minha família, a propriedade e até mesmo sobre Tânia, um misto de curiosidade e preocupação, válidos eu diria, porém intimidante. Joe percebeu meu nervosismo e se ofereceu para me mostrar a colina.
Nos dias que se seguiram foi basicamente essa nossa rotina. Caminhada, chá e questões, assim que se satisfizeram, passamos a fase do futuro. Sempre fui muito bom em planejamentos, acho que nesse quesito eles não teriam muito o que duvidar.
Joe e eu éramos igualmente desapegados a convenções, mas isso não significava que não tivéssemos pensado a longo prazo.
"Estou feliz com o que temos." Dizia e repetia, amassando os pés na grama e sua tez no meu ombro.
Ainda assim era realista, sabia bem que poderiam dizer que fui egoísta.
Pensar num futuro ao lado de alguém é principalmente uma questão de estar disposto a mudar.
Acho que foi por isso que seus pais se preocuparam tanto, a princípio.
Assim que os levei para conhecer a mansão pela primeira vez, me percebi tentando manusear as aparências, e cada pincelada programada de honestidade, pragmático demais para obter sua aprovação.
Para o quê, na verdade? Tânia me questionou entre uma ruga em meio a tez e um sorriso questionador, não menos confusa do que eu. Era raro me ver tão absorto num objetivo que não envolvesse apenas eu mesmo. Fico feliz que ela reconheça seu esforço, era o que me dizia, sem certeza que Joe apreciaria ser o alvo de tamanha atenção.
Assim que chegou a Primavera, e sua família conhecia tão bem a mansão para aceitar passar aqueles últimos dias festejando no jardim, Joe me contou que sua irmã estava vindo, Margaret raramente aparecia, mesmo nas datas comemorativas, nessa época morava com sua família em algum lugar remoto no mediterrâneo, então já haviam razões o suficiente para a ansiedade pairar.
Esperei pelo apoio de Joe, claro e definitivo, com as palavras de Tânia se metamorfoseando em minhas ações, e claro, ele veio certeiro, como havia de ser. Conversamos firmemente. Ela queria ficar e eu queria que ela ficasse. Decidimos expor nossa decisão no jantar. Um jantar aterrorizante.
A indiferença deles me fez pensar que tinha desagradado, não importasse o que Tânia me advertisse. Fiquei reflexivo, a comida veio e a conversa fluída sempre para os mesmos tópicos, Mrs Chambers ria sem graça de cada coisa que Tânia dissesse, enquanto fitava os talheres com uma calma misteriosa, enviesando suas perguntas, como se de repente eu já não soubesse responder calmamente apenas um... "quem é você?".
Dava meia noite e Margaret gostava de dançar, e uma hora ou outra trocava de música na vitrola, dancei brevemente com Joe, não era meu forte e devo ter pisado tanto em seus pés que permaneceu sentada o resto da noite.
Falar sobre mudanças pode ser tão difícil quanto fazê-las. Imaginando que aquela indiferença fosse um obstáculo óbvio, mantive o discurso firme, tão firme que o suor descia grosso pelas costas. Porém, as pessoas são imprevisíveis.
A noite toda aqueles quatro olhos me perscrutavam magnéticos, o que pensava ser negação, se desfez em concordância. Brindamos ao que viria. Aos planos, sim. Todos os planos que escrevíamos nas paredes pálidas.
Os pais e as duas filhas preencheram um espaço profundo. Não apenas numa noite, claro. A verdade é que de alguma forma eu sabia que Joe era uma bagagem mais pesada do que se fazia parecer. Talvez, todos nós parecemos mais leves pela superfície, quando não há ninguém corajoso o suficiente para pôr o primeiro pé.
Lembro que naquela semana passara tanto tempo com Margaret nas colinas como se esquecesse de si mesma. Reunindo-se a um pedaço oscilante, estranho e distante, mas ainda assim, tão parte de você como um cenário da infância.
Poderia me identificar com isso, mesmo que nunca mais pudesse ver minha própria irmã, eu tinha Tânia, tão presente em mim quanto naquela casa, ou nas memórias de um quarto de agulhas. Felizmente, ao contrário de mim Joe teve a mais feliz das infâncias, também uma ótima razão para não desgrudar da irmã tão querida pra si.
Assim que Joe se formou não demorou muito para que passasse todos os seus dias na mansão. Gradualmente deixando os armários recheados de vestidos, sapatos finos, olhares distintos mudando móveis de lugar e retirando cortinas velhas. Foi estranho, como usar novos óculos.
Mudanças nos fazem rever a poeira acumulada em lugares inimagináveis. Quase não pensei naquele quadro, onde ele estaria? Me questionei numa madrugada silenciosa.
Até concluir que, bem, que importava?
A galeria permanecia cheia, mesmo que já não fosse para vê-lo.
Estar com Joe me distanciou de um passado mesclado ao presente, foi como se definisse uma linha. Muito menos intimidadora do que qualquer outra anterior.
Ver seus modelos cobrir um mundo de cabides e desenhos borrados, ou mesmo os estranhos penteados que forçava Tânia a experimentar, tudo em Joe me fazia questionar, e pela primeira vez, pensar demais não se fez doloroso.
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