16. Joe
A única razão porque deixei Sheffield quando criança foi Tânia.
Ela não precisou dizer que sabia meu segredo, não havia escapatória, essa era nossa forma de olhar por cima dos livros, fingindo uma autonomia, mesmo que no fundo, eu tivesse aprendido a depender dela. Sim, mesmo que fingisse que não me importava, era inevitável.
A conhecia desde sempre, porém, quando se está no mesmo quarto pálido por tanto tempo, qualquer rosto parece uma novidade.
Ainda que nunca admitiria naquela época, ou em muito tempo, foi por causa dela que permaneci na mansão, em saber que, mesmo de forma diferente, nós sentimos a perda. Ela amava meus pais e minha irmã, ela entendia.
Porém, a linha ainda se extendia; nós morávamos juntos, tínhamos perdas em comum e até nossos olhos eram semelhantes; ambos com nossos limites desenhados e os quartos por dentro. Seria mais que um milagre se apenas sentássemos normalmente para tomar café normalmente. Até sair daquele quarto, usando minhas próprias pernas, mesmo temporário, havia orgulho nos seus olhos, e gostei do que vi.
Talvez ela sempre tenha sabido, e eu era o único que achava que passamos maior parte do tempo no escuro. Tânia não era nada como uma mãe, por meses, não houve cobrança, não houve questionamentos. A mansão era vazia de embates. Silenciosamente, ela fazia mais do que apenas estar ali. Ela... realmente se preocupava. Vigiava, do ponto mais alto, acima, na torre, não porque gostasse de manter a distância, mas porque assim, eu não perceberia e continuaria a viver com meus ares ilusórios de solidão.
Crescido o suficiente para saber, eu fiz o impensável; arrumei as minhas malas e fui embora. Tolo, sem saber que na verdade eu apertava o nó. O apartamento era minha caverna, a mansão a civilização. Assim Tânia não viria a conhecer o pior de mim novamente.
Aquele casaco tão negro e cumprido, sempre jogado por cima das coisas, ela me dera por uma dessas necessidades de acabamento. No meu décimo quinto aniversário, estava embalado e perfeitamente dobrado sobre as minhas malas.
Por que eu sabia que aquilo não era bem uma despedida? Não sei bem, mas quando desenrolei aquele laço e desdobrei-o, enfiando os braços nas mangas, senti como se aquele aquecimento pelo corpo estivesse me dizendo para lembrar, simplesmente não esquecer.
Bem, de alguma forma ela conseguiu, pois em todos aqueles anos foi só o que aquele monte de pano acumulou; lembranças.
Naquele aniversário eu acabei retornando ao meu próprio ponto inacabado.
Foram tantas coisas ao mesmo tempo, vamos pôr em ordem: Eu ganhei aquele casaco, eu sai daquele apartamento, e muito depois voltei pra casa. Sim, está melhor.
Sim, casa, uma casa perdida além mar... Houve aquele ano. Sei que vocês estavam esperando, chegamos.
O que havia em Sheffield? Na minha imaginação, nenhuma razão para voltar. Esperava panos sobre móveis, árvores mal podadas e poeira até não acabar.
Eu voltei, e é claro, haviam outras pessoas lá. A mansão foi vendida pra uma família dois anos antes.
Me decepcionei claro, pois eu queria, pela primeira vez, vê-la sem estar mais lá, morando ali. Não esperava nenhum sentimento especial e também não o tive, caminhei ao redor e apenas fiquei parado, sem atravessar a calçada ou falar com aquelas pessoas, eu não queria fazer nada disso. Só.. Fiquei ali, sem forças pra retornar ao hotel.
Naquela tarde aquele casaco se encheu de poeira, ao absorver sua primeira lembrança. Andando naquelas ruas, eu enfiei as mãos nos bolsos, e me surpreendi ao ver que tinha algo dentro. Era um bilhete, um pequeno bilhete de despedida. Eu não sabia o que esperar, arregalei os olhos, então apenas abri e li em voz baixa: "Você não está sozinho, garoto".
Com as mãos nos meus cabelos, anos atrás, ela sabia que era a única coisa que podia dizer pra mim. Só pra mim. "Não se sinta sozinho...", não. "Não importa onde esteja, você não está sozinho." Tânia era direta, não disse isso pra me confortar, foi somente algo óbvio que achou que eu deveria me dar conta. Com as mãos nos ombros, me disse que podia olhar para o chão as vezes, porque aquele casaco tinha golas altas.
Era pra ser apenas um olá para Sheffield, confesso. Tudo era tão depressivo, quem iria querer ficar tanto tempo assim ali? A chuva veio me levar, pouco depois de ter deixado o cemitério, encharcando-me, me acompanhando até o trem chegar. Quando cheguei no quarto de hotel, estava tão cansado que nem consegui desfazer as malas. Adormeci, sujando os lençóis com toda minha poeira.
O grande mal em visitar o passado é quando não se permite desprender dele. Você acha que está retornando a algum lugar, então percebe que nunca saiu dele.
Em meio a poeira, ainda assim, dei-me com um broto.
Nessa época vi Joe pela primeira vez.
Era a segunda noite, o quarto parecia úmido e alguém do outro lado da parede parecia gostar de caminhadas pelo assoalho, que rangia, céus, como hotéis são odiosos.
Sai para comer num restaurante mediano, o mais silencioso que pude achar. Só haviam mais duas ou três pessoas além de mim, pedi uma codorna cozida e ovos, não comia desde que chegara e mal vi quando sua voz se dirigiu a mim.
Joe tinha curtos cabelos acastanhados, que caíam sobre suas sobrancelhas e testa, numa franja reta, romântica como toda sua existência. Parecia ter sido arrastada pelo vento, a voz calma apresentava um sotaque que não conhecia, mas presumi ser francês. Falava sobre meu casaco, manchado de tinta nas pontas.
Um ar misterioso pairou, como se imagina que um observador desconhecido seja, emanava daquele olhar, que tinha algo de odalisco e familiar que eu não soube descrever bem, que logo se transmutou em uma estranha vergonha, como um embaraço ao perceber-se descoberto.
__ Sim, eu sou um pintor. Jony Scaler, prazer.__ Respondi direto, meio curioso, meio jovial, meio ríspido.
O que ela sorriu fino, murmurando um Joe, seu nome era Joe. A doce Joe, como Patrick passou a chamá-la... E logo eu me acostumaria a chamar.
Chamá-la de menina ou doce pareceria estranho quando nos referíamos a uma mulher adulta, com ares de adulta, mas algo naquela face sempre tão sincera tornava fácil ser amável com ela, e até assumir uma posição de passividade, ao ponto de tê-la, na maioria das vezes, como íntima apenas por trocar algumas palavras. Era uma estudante de moda, ansiava os holofotes, rodeada de atenção e gracejos, o que de forma alguma tirava a essência de sua simplicidade.
Além da ambição, era uma mulher simples e dizia com toda certeza. A simplicidade no excêntrico, como todo bom artista, presumia.
Quando fomos apresentados aquela noite, apertou minha mão e não tirou os olhos dos meus, empolgada, me explicou que passara na galeria central aquela tarde, rodeada do mais requinte, a arte europeia em sua forma mais materialista. O que explicava seu interesse no meu casaco e ofício.
Havia mais paixão em suas frases do que vira em muito tempo, do que sentira em muito tempo, uma pureza e alegria, uma maneira tão sentimental que eu jamais suspeitaria que alguém tão aparentemente quieto fosse capaz. Parecia muito feliz em me conhecer, e me peguei sentindo o mesmo.
Lidando com a viagem que parecia fadada ao fracasso, agradeci por ter encontrado companhia tão agradável. Não sei quanto tempo ficamos ali, só sei que foi muito. Em seguida, ofereci-me para levá-la a sua casa, o que me surpreendeu ela estar num hotel, tão de passagem quanto eu. Ao me despedir, prometi mostrar-lhe o último quadro em que em que estava trabalhando e contei-lhe um pouco sobre como pretendia pintar dali pra frente, falei muita coisa somente por falar, orgulhoso de ter atraído seu interesse, mas ainda assim, ela me ouviu com a maior das atenções.
A verdade é que, quando Michael partiu, permaneci maior parte do tempo sozinho, não estava habituado a falar sobre o processo íntimo do meu trabalho com mais ninguém, mesmo com alguns colaboradores da galeria, naquelas reuniões só falávamos sobre coisas como números e algo do gênero. Nunca estive mais solitário, o que tornou aquela última conversa mais dolorosa. Ele sabia bem, da dependência estranha que nos enlaçou. Provar que não precisava de sua falsa empatia foi uma das razões porque engatei tão rapidamente naquela amizade.
Também ocorreu bem naturalmente, talvez fosse porque estivesse entediado, ou apenas não quisesse pensar no que acontecia em Coven, mas sentia-me muito confortável, mesmo levando em conta que naquele momento Joe era alguém que mal conhecia.
A semana correu rápido, e ela entreteu-me por tempo suficiente, o suficiente para quase esquecer as razões porque preferia enterrar-me naquele hotel do que voltar para a mansão. Caminhando pela cidade, me apresentando seus amigos excêntricos, sua amizade mais parecia um estranho sonho, os meses vinham, meu tédio se tornava leve, nossas conversas mais entrelaçadas, íntimas e até melancólicas, percebia que estranhamente, ela ainda não havia se cansado de mim.
O feitiço não se desfez ao badalar da meia-noite.
Todos nós encenamos papéis. Olhando tudo o que me rodeava não poderia contar nos dedos quantos papéis havia encenado só naqueles poucos meses. O pintor estrangeiro? O intelectual desinteressado? Um confidente passageiro? Poderia ser o que quisesse, se fosse apenas ela a pessoa sentada na plateia.
Com os lábios cansados já de tanto rir das próprias piadas e falar sobre celebridades desinteressantes, então viera aquela estranho momento de distanciação. Um mistério desnecessário rodeando o ar. Percebi o fingimento. Qual a razão para estar ali, se fingiria a superação de algo que me trazia mais medo de encarar do que antes?
Joe não sabia de Patrick até a primeira carta. Não sei porque mostrei pra ela no instante que a vi, podia ter facilmente mentido, mas não. Joe tinha isso, você quer ser verdadeiro com ela, de repente parece fácil, todas as suas palavras automaticamente se metamorfaseiam num momento.
__ Eu fico muito feliz que você tenha alguém assim te esperando lá fora.__ Me disse, simplesmente, como quem te arranha numa área sensível e endurecida.
Era uma época estranha; mesmo que já não encontrasse Patrick no meu campo de visão, terminava aquelas cartas como se estivesse me punindo, logo via Joe fitando-me extasiada com qualquer coisa, então outro garçom vinha me oferecer outra taça de um estranho líquido colorido, mais sorrisos, alguém me apresentara a alguém que não dava a mínima, minha cabeça finalmente começa a doer e tudo gira. Tudo rodopiava, porém lentamente.
Até que escorado em um canto qualquer, silenciei.
Joe foi provavelmente a melhor pessoa que já conheci em minha vida. Com toda sua maturidade e observação, eu nunca estive em perigo. No escuro e caloroso sombreado do seu olhar, eu pude ser tão imprudente quanto quis. Os anos se passaram, nossas vidas se dividiriam e eu jamais esqueceria da sua firmeza de mulher simples.
Porém, nossa juventude era magra e faminta, de formas não tão diferentes.
Não deveria ter me surpreendido com isso, mas me surpreendi. Quando jantamos aquela noite, ela parecia irritada, comigo ou com qualquer coisa que tenha dito, seus amigos estavam ali, a música alta e nossos olhos se encontram, até que... apenas saiu, apressada e mal deu duas palavras de despedida.
Brigar? Me vi confuso. Eu nunca tinha discutido com ela. Apareci no dia seguinte em seu hotel, mas ela não estava la. E no dia depois desse também. Passei os dias pintando a mesma paisagem da minha janela, repetitivo, e tão aparentemente livre, no auge do meu talento, e mesmo assim o mesmo de sempre, sarcástico pensei que talvez isso tenha a irritado, a mesmice. Viu a nossa rotina despreocupada, a alegria forjada de álcool, o estrangular de uma música popular que odiava, nos mesmos acordes, mesmas cores, nos mesmos olhares.
Pensei tê-la decifrado naquele momento de irritação. Logo depois raspei aquela tinta com tanta força que o tecido se tornou inutilizável.
Dois dias depois, após uma festa qualquer de aniversário, Joe esperava-me na sala de recepção, tomando um café. Pediu para subir. Confuso e um tanto irritado, aceitei. Subimos as escadas no completo silêncio, me preparando para suas explicações.
Entrou singela, retirando o chale, pôs-se de frente pra janela, sentada em uma das poltronas, ela pediu-me de repente que sentasse ao seu lado.
Em silêncio observávamos a lua, e eu notei que ela parecia ainda mais irritada do que antes. Franzia a testa, suava frio. Um misto de susto e... Hesitação. Foi então para meu total espanto, ela segurou a minha mão. Manteve-a sobre a minha, não aquecendo-a, confortando ou procurando por abrigo, mas simplesmente cobrindo-a.
Todas as frestas, sentindo todas as suas texturas, sem pedir que a outra fizesse o mesmo por ela. Seu olhar cabisbaixo não se importava mais com a lua e apenas se escondia atrás da franja cada vez mais cumprida. Estava realmente bonita, notei, desviando os olhos para seus dedos. Me percebi hesitante também. Mesmo que estivéssemos tão perto, não nos fitamos. Cada um procurava outra direção, outro pensamento. Nós ainda tínhamos algo de semelhante em face, e depois daqueles meses, aquilo ficara ainda mais evidente.
Ao contrário de mim, ela não era uma mulher solitária, vivia sempre a procura de pessoas, apaixonada por algo, quedando-se de cabeça em um esboço colorido. Ela era vívida, e eu apenas... pó.
Sua eloquência silenciosa era feminina e florescente, era algo belo e natural, a cada segundo ao seu lado me dava certeza que jamais poderia viver assim.
Deixei-me sentir o calor da sua mão por pouco tempo, imersivo e superficial na mesma medida.
Percebendo o seu desejo explícito, levantei-me, sem olhá-la, mas antes de poder dizer qualquer coisa, Joe virou-se pra mim e segurou meu braço, fazendo daquele instante de contemplação uma conversa de olhares. Subiu seus dedos nas mangas da minha camisa, levantou-se e estando definitivamente frente a frente, eu pude ver claramente seus olhos cinzentos, que nunca antes estiveram tão nublados. Novamente, ninguém abaixaria o olhar? Me senti acorrentado, com aqueles dedos longos se enroscando em mim, lenta e lascivamente.
Diante do outro, pela primeira vez Joe desfez o feitiço, não havia papéis; ela abriu a porta e perguntou se podia entrar. Adentrou as cortinas do teatro.
Aqueles olhos não eram mais cuidadosos e gentis, eles analisavam a situação, esperando a minha resposta, ou se me propunha a responder. Mal conversávamos, só o que podíamos fazer era ter suposições. As vezes, as pessoas fazem coisas estranhas assim, quando simplesmente poderiam ir direto ao ponto, geralmente de forma irritante. Porém quando Joe fez isso, meu corpo arrepiou-se, num instante a brisa fria congelou meus pensamentos, e esquentou meu torço.
De uma forma ou de outra, nós nos enfrentamos, achei que estava fadado a acontecer. Desde o primeiro segundo de seu olhar tímido.
Metamorfoseado num olhar ansioso, indeciso, o caótico a procura de saciedade. Inconscientemente eu tentei fugir dele, e ela mais ainda, o que se tornou infantil.
Assim que superamos a barreira do que não dizíamos em voz alta, Joe despiu-se num segundo, da vergonha e das roupas finas, me questionando entre lábios porque nossa amizade não podia manter-se intocada, por que eu deixei ela subir aquelas escadas e derrubar as telas de cima da mesa... Lamentando e se enroscando, com a voz raivosa destoando do desespero da sua pele de encontro a minha.
Logo os lençóis fora do colchão pareciam como cascas, que desmanchavam ao toque, com o desespero que não cabia a nós. Cheio de irritação, medo e timidez, foi tão rápido como a paixão deve ser.
Joe passou a vida toda estando de passagem, finalizando algo, esquecendo de começar. Comigo nunca foi diferente, parecia esquecer sempre de iniciar as coisas, sempre esperando para distribuir seus pontos finais apropriadamente. Tinha a instabilidade como seu grande objetivo de vida.
Assim como eu, ela também não fazia ideia de como lidar consigo mesma, mesmo que sempre estivesse cuidando dos outros, e eu realmente não tinha jeito com pessoas assim. De alguma forma, nós dois juntos era como uma friagem passageira. Mesmo que aquele calor já não fosse tão momentâneo assim.
Deitados imóveis, só o que havia era o fechar dos olhos depois da agitação. Se ela não sabia iniciar, muito menos sabia eu dar continuidade. Eram apenas lençóis, bastava reorganizá-los na cama, mas nem todas as coisas tem lugar próprio para voltar. Nem todas as coisas precisam seguir uma finalidade.
Decidimos que quanto menos pensássemos, seria mais fácil fazer. Quem se importaria qual era o nosso lugar? Para onde estávamos indo ou se na verdade estávamos voltando, nós apenas fizemos o que quisemos, um tanto exaltados demais, porém foi divertido. Naquele último mês, houve leveza, e mais verdade que gostaria de admitir.
Não havia razão para temer um escândalo qualquer; ninguém além de nós dois sabia, queríamos apenas sentir ao outro, redesenhando as marcas, reescrevendo os anseios, trancados num quarto vazio ouvindo nada mais do que a respiração do outro.
Estando ao lado dela não havia mistério. Na verdade, tudo parecia muito simples, como nunca havia sido com nenhum outro alguém. E curto o suficiente para minimizar qualquer dano colateral.
*
*
*
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top