ᴛᴡᴇɴᴛʏ ᴏɴᴇ - 𝘴𝘵𝘳𝘦𝘯𝘨𝘵𝘩 𝘮𝘦𝘮𝘰𝘳𝘪𝘦𝘴
Episódio vinte um,
𝘴𝘵𝘳𝘦𝘯𝘨𝘵𝘩 𝘮𝘦𝘮𝘰𝘳𝘪𝘦𝘴
San Fernando, Valley,
1965
O calor parecia quase palpável naquele dia, um peso que pairava sobre San Fernando, sufocante e implacável. Dentro da lanchonete, o som abafado do tráfego do lado de fora competia com o zumbido suave do ar-condicionado, que parecia incapaz de vencer a batalha contra o clima. A luz do sol entrava pelas frestas da janela, um raio persistente que atingia diretamente os olhos claros de Gilliard. Ela inclinou a cabeça ligeiramente, tentando escapar do brilho, mas a sensação de cegueira temporária não era pior do que o incômodo que sentia ao seu lado.
Jeremy estava sentado próximo demais. Ele vestia um casaco vermelho pesado, um contraste desconfortável com o calor do ambiente, mas parecia intocado pelo clima, como se o mundo ao redor não tivesse poder sobre ele. Seus dedos se moviam incessantemente sobre a coxa de Gilliard, em um toque que ela odiava, mas que parecia inevitável. Era quase mecânico, como se ele fizesse isso sem pensar, ou talvez apenas para marcar território na frente de seus amigos. Ela havia afastado a mão dele três vezes, mas ele continuava, insistente, como se não houvesse nada errado em transformar aquele espaço público em algo tão invasivo.
Gilliard respirou fundo, tentando desviar sua atenção para a conversa. Talvez, se ela mostrasse interesse, ele parasse.
— Semana que vem é a vez de acabar com Notre Dame. — Jeremy comentou, a voz alta o suficiente para dominar a mesa, ignorando completamente as tentativas de Gilliard de afastar sua mão.
Ela mordeu o lábio, reunindo coragem para falar.
— Por que acabaram com Stanford? — perguntou, tentando parecer indiferente, mesmo que o desconforto queimasse em seu rosto e em sua pele.
As palavras saíram hesitantes, e ela imediatamente percebeu o erro. Os dois garotos sentados à frente de Jeremy começaram a rir, uma risada debochada que parecia ecoar dentro da lanchonete.
— Eu... senti pena deles. — ela completou, sua voz diminuindo à medida que o riso deles crescia.
Jeremy virou a cabeça para ela, com um sorriso que parecia meio divertido, meio cruel.
— Mas que tipo de pergunta é essa, Gill? — Ele balançou a cabeça, rindo enquanto sua mão subia mais pela perna dela. Ele não parecia nem ao menos tentar disfarçar o movimento. — São rivais. Nós não mostramos compaixão.
Ela congelou quando sentiu os dedos dele passarem pelo algodão da calcinha. Era um toque que não deveria estar ali, um toque que a fazia querer gritar, mas que ela engolia como se fosse sua culpa. Sua respiração ficou mais curta, e seus olhos fixaram-se no copo à sua frente. Ela não sabia o que fazer. Ele estava errado, claro, mas e ela? Ela tinha concordado em sair com ele, aceitado estar ali. Será que isso significava que ela não tinha o direito de recusar?
Esse era o preço de ser uma garota fácil, não era?
A vergonha era quase paralisante, uma onda de calor que queimava seu rosto e fazia seus ombros encolherem. Ela queria afastar a mão dele, mas a presença dos outros dois garotos fazia isso parecer impossível. Eles a observavam de relance, e ela podia sentir o julgamento implícito em seus olhares. Depois de alguns segundos, Jeremy recuou, mas o alívio foi breve.
Um movimento ao lado chamou sua atenção. Um garoto mais velho, talvez alguns anos a mais que Jeremy, aproximou-se da mesa. Ele vestia um avental gasto e um chapéu que parecia deslocado, mas seu sorriso tímido era gentil. Ele segurava uma bandeja com talheres e se inclinou para colocá-los na mesa.
Jeremy imediatamente afastou a mão da perna dela, como se tivesse sido pego em flagrante, mas sem qualquer vergonha no rosto.
— Obrigada. — disse Gilliard rapidamente, quase num sussurro, pegando os talheres antes que ele os colocasse na mesa. Era um gesto automático, mas carregado de gratidão.
O garçom hesitou por um instante, olhando diretamente para ela. Era como se ele tivesse percebido algo, mas não soubesse o que fazer.
— O que você tá olhando, otário? — Jeremy rosnou, sua voz cortante e cheia de desprezo.
O garoto recuou de imediato, encolhendo os ombros e baixando a cabeça.
— Me desculpa. — murmurou, se afastando sem erguer os olhos novamente.
Assim que ele saiu de perto, os risos voltaram à mesa, mais altos e cruéis do que antes.
— Ouvi dizer que a mãe dele se matou. — um dos garotos do outro lado comentou, com um tom baixo o suficiente para parecer confidencial, mas alto o suficiente para todos ouvirem.
— É por isso que ele é essa aberração ambulante. — Jeremy gargalhou, inclinando-se para a frente.
— Para, Jeremy... — Gilliard tentou, mas sua voz saiu fraca, quase apagada.
Ele se virou para ela, os olhos estreitando-se em irritação.
— Cala a porra da boca, Gill. — Ele não gritou, mas a autoridade na voz fez seu corpo encolher.
Antes que ela pudesse reagir, a mão dele voltou para a coxa dela, dessa vez apertando com mais força. Gilliard colocou a mão sobre a dele, tentando empurrá-la, mas ele resistiu, a força dele superando a dela. Ela olhou para os outros dois, que agora encaravam diretamente. Eles sabiam. Eles viam. E não faziam nada além de rir. O constrangimento era esmagador. Ela desistiu, soltando a mão dele, que finalmente recuou com um sorriso de superioridade.
— Tá toda animadinha com o esquisito, né? — Jeremy zombou, inclinando-se para trás no banco. — Vai lá, abre o circo pra ele.
Os amigos riram alto, e Gilliard sentiu seu estômago afundar.
— Vai que você engravida de novo. — Jeremy disse, venenoso.
— É, e nasce uma mini aberração. — completou um dos outros, a gargalhada cortando como uma faca.
As palavras a atingiram como um soco no estômago. Seus olhos fixaram-se na mesa, e ela mordeu o lábio com força, tentando conter as lágrimas que ameaçavam escapar.
Ela odiava aquele assunto. Odiava lembrar do bebê que tinha em casa. As vezes, só queria que a considerassem normal.
Gilliard estava tentando encontrar algum resquício de controle dentro de si, ainda sentindo o peso da humilhação e das palavras de Jeremy ecoando em sua mente. Os risos dos amigos dele tinham diminuído, mas o desconforto permanecia impregnado no ambiente.
Foi então que a porta se abriu, e um homem alto e de postura impecável entrou. Ele vestia um uniforme militar impecável, o tecido verde-oliva realçado por medalhas brilhantes e uma insígnia no peito. Seu quepe projetava uma sombra sobre o rosto sério, mas seus olhos examinavam o lugar com precisão. O som de suas botas ecoava pelo chão de ladrilhos da lanchonete, atraindo a atenção de todos.
Ele parou ao lado da mesa de Jeremy, os braços cruzados atrás das costas em uma postura rígida. Com um sorriso cordial, mas firme, inclinou levemente a cabeça na direção deles.
— Boa tarde, senhores. — disse, sua voz grave e carregada de autoridade. Seus olhos rapidamente analisaram os garotos, parando em Jeremy. — Vejo que têm o porte físico ideal. Perfeito para o treinamento militar. Jovens como vocês podem fazer a diferença.
Jeremy trocou olhares com os amigos, franzindo a testa com um sorriso irônico. O militar, alheio ou indiferente ao desdém, continuou:
— É incrível o que um homem pode se tornar com disciplina e direção. — Ele sacou um panfleto de um bolso lateral, colocando-o firmemente na frente de Jeremy. O papel tinha um tom verde intenso e trazia a imagem de um soldado em perfil, com o rosto resoluto e o uniforme bem alinhado.
O militar tocou o panfleto com o indicador, inclinando-se ligeiramente sobre Jeremy.
— Esse poderia ser você. — disse, com uma convicção quase hipnótica. — Então, o que me diz?
Jeremy pegou o panfleto, tentando esconder o desconforto por trás de um sorriso cínico. Ele balançou o papel no ar, como se estivesse analisando com interesse.
— Inspirador. — respondeu, a voz carregada de sarcasmo mal disfarçado. — Vamos pensar no assunto.
O militar manteve a expressão neutra, inclinando a cabeça ligeiramente.
— Senhorita. — disse, olhando para Gilliard com um leve gesto de respeito antes de se virar.
Sem mais uma palavra, ele caminhou até a porta dos fundos e saiu com a mesma postura impecável com que havia entrado. O som de suas botas desapareceu, deixando para trás um silêncio momentâneo, quebrado apenas pelo som do ar-condicionado e o barulho distante do trânsito.
Jeremy olhou para o panfleto em suas mãos, os amigos contendo risadas enquanto observavam sua reação. Finalmente, ele soltou uma gargalhada alta, rasgando o silêncio como se o momento anterior nunca tivesse acontecido.
— Um propósito verdadeiro! — ele zombou, jogando o panfleto no chão como se fosse lixo. — Quem eles acham que enganam?
Os amigos dele explodiram em risadas, e Jeremy chutou o panfleto amassado para baixo da mesa. O sorriso de deboche em seu rosto parecia ainda mais insolente agora, como se o breve momento de tensão tivesse sido apagado completamente. Ela riu com ele, tentando se encaixar.
Kreese estava abaixado no canto da lanchonete, com a vassoura na mão e um pano de limpeza pendurado no ombro, quando o panfleto caiu no chão. Ele viu o papel deslizar perto de seus pés e, automaticamente, pegou-o com cuidado. O verde vibrante e o papel amassado o intrigaram.
Por um momento, as palavras pareciam saltar da página, capturando sua mente em um turbilhão de pensamentos. Ele se imaginou, mesmo que vagamente, em um uniforme, marchando com disciplina, encontrando um propósito maior do que esfregar o chão de uma lanchonete e suportar os olhares de desprezo dos clientes. Como seria a vida se ele seguisse aquele caminho? Se ele pudesse se transformar em alguém que as pessoas respeitassem?
Antes que pudesse se perder mais em seus pensamentos, a voz autoritária de seu chefe ecoou pela lanchonete:
— Kreese! As mesas não vão se limpar sozinhas! Anda logo, forte o trabalho!
Kreese deu um leve sobressalto, voltando à realidade com uma expressão fria.
— Sim, senhor. — respondeu em um tom controlado, enfiando o panfleto dobrado no bolso de seu avental. Ele pegou o balde cheio de água com sabão que estava ao lado e começou a caminhar pelo corredor, rumo às mesas que precisava limpar.
Enquanto ele andava, distraído com seus próprios pensamentos, o som da risada de Jeremy e seus amigos vinha em ondas distantes, mas ele evitava olhar na direção deles. No entanto, Gilliard o viu primeiro. Ela o observava por cima do ombro, seus olhos ainda fixos nele desde que ele havia pego o panfleto. Havia algo em sua postura — talvez na maneira como ele segurava o balde ou em seu olhar endurecido — que parecia determinado, até intrigante. Por um breve momento, seus olhares se cruzaram.
Jeremy percebeu. Ele viu o olhar dela pousado em Kreese e, como se movido por um ciúme mesquinho e infantil, decidiu agir.
Com um sorriso malicioso no rosto, Jeremy estendeu o pé no caminho de Kreese no exato momento em que ele passava pela mesa deles.
O tempo pareceu desacelerar quando Kreese tropeçou. O balde escorregou de suas mãos, a água ensaboada se espalhou no ar e caiu como uma onda, cobrindo Kreese completamente enquanto ele desabava no chão. O impacto fez um barulho alto, e um silêncio constrangedor tomou conta da lanchonete por alguns segundos.
Jeremy e seus amigos explodiram em gargalhadas.
— Nossa, que espetáculo, hein, garçom? Quer uma toalha ou prefere nadar? — Jeremy zombou, fingindo nadar com os braços para reforçar sua piada.
Kreese permaneceu no chão por um instante, encharcado e completamente humilhado. Ele apertou os lábios e desviou o olhar, tentando engolir a raiva e a vergonha. Seus olhos passaram rapidamente por Gilliard, que parecia desconfortável e envergonhada pelo que havia acontecido. Ele não esperava compaixão, mas o olhar dela não era de escárnio, e isso, de certa forma, o afetou mais do que os risos ao seu redor.
A vergonha pesava em seus ombros, mas ele respirava fundo, tentando manter o controle.
Gilliard, sentada ao lado da janela, observava a cena com o rosto sério. A indignação crescia em seu peito ao ver a humilhação explícita. Sem pensar muito, ela tentou sair do banco onde estava.
— Gill, o que você tá fazendo? — Jeremy perguntou, já irritado, movendo o corpo para bloquear a saída. Ele estava sentado na beirada do banco, e ela precisaria passar por cima dele. — Não vai querer se meter nisso. Deixa o garçom cuidar da bagunça dele.
— Sai da frente, Jeremy. — A voz dela era firme, os olhos duros.
— Tá falando sério? Por causa dele? — Jeremy esbravejou, o tom ácido. Mas ela não respondeu. Gilliard colocou uma das mãos no encosto do banco e passou por cima dele com um movimento ágil, ignorando o olhar incrédulo de Jeremy. Ele soltou um palavrão baixinho, frustrado, mas não tentou impedi-la.
Ela caminhou rápido até Kreese e se agachou na frente dele, tentando ajudar. A água escorria pelo uniforme dele e pelo chão ao redor, mas Gilliard não pareceu se importar.
— Você tá bem? — perguntou suavemente, estendendo a mão para ele, seus olhos buscando os dele.
Por um instante, Kreese a encarou. Ele estava encharcado, humilhado, e a última coisa que queria era a ajuda de alguém — principalmente ali, com todos assistindo. O orgulho ferido e a raiva em ebulição dentro dele falaram mais alto.
Ele se afastou bruscamente, derrubando a mão dela no processo.
— Eu não preciso da sua ajuda. — A voz dele era fria, quase cortante. Ele se levantou sozinho, ajeitando o pano encharcado que ainda estava no ombro.
Gilliard ficou de joelhos por um momento, surpresa e visivelmente desconfortável com a reação dele. Algumas pessoas na lanchonete estavam assistindo à cena, algumas cochichando, outras apenas observando, e o constrangimento aumentou.
— Kreese! — A voz do chefe cortou o ambiente mais uma vez, ríspida e cheia de irritação. — Quantas vezes vou ter que dizer? As mesas não vão se limpar sozinhas!
Kreese respirou fundo, mantendo os punhos cerrados ao lado do corpo. Ele encarou o chão por um instante antes de responder
— Sim, senhor.
Ele pegou o balde, agora vazio, e se afastou rapidamente, indo em direção ao balcão para reabastecê-lo. Mesmo enquanto caminhava, sentia os olhares de todos queimando em suas costas.
Jeremy, por outro lado, ainda estava no banco, vermelho de raiva. Ele virou-se para Gilliard, que voltava para a mesa com passos tensos e cabeça baixa.
— Qual é o problema com você? — ele resmungou em voz baixa, mas cheia de irritação.
Gilliard apenas o ignorou, sentando-se novamente e cruzando os braços, enquanto Kreese desaparecia para o fundo da lanchonete.
Gilliard estava irritada, exausta da briga com Jeremy. O calor da discussão ainda queimava em suas veias, o som de suas palavras cortantes ecoando em sua mente. Ela estava em pé, no estacionamento do restaurante, enquanto ele gritava algo sobre ela nunca encontrar alguém melhor. A raiva fervia dentro dela, mas Gilliard não queria mais perder tempo. A tensão entre eles era palpável, um jogo de palavras cruéis que não levaria a lugar algum.
— Você acha que esse encontro foi alguma coisa? — Gilliard disparou, com uma risada seca que soava mais amarga do que qualquer coisa que ela poderia dizer. Seu rosto estava quente de raiva, o olhar furioso. — Foi uma merda, Jeremy. E sabe o quê? Nunca mais quero ver sua cara.
Jeremy, com os punhos cerrados, deu um passo à frente. Sua expressão era de desprezo absoluto, como se ela fosse a coisa mais desprezível que já cruzou o caminho dele. Ele parecia prestes a explodir.
— Você é uma puta! — Ele rosnou, a voz carregada de veneno. — Vai ser difícil encontrar alguém melhor que eu, com a bagunça que é sua vida. A putinha grávida e filha do prefeito.
As palavras dele caíram sobre Gilliard como pedras, cada uma delas pesando mais do que a anterior. O estômago dela se revirou, mas ela não ia ceder. Gilliard não era mais a garota que engolia tudo passivamente, que aceitava os insultos. Não. Ela olhou para ele com frieza.
— Vai se foder. — Ela disse, a voz mais calma do que deveria ser. — Vai embora, Jeremy. A carona é sua.
Ela não se mexeu. Ficou ali, o olhar fixo nele, desafiadora. Jeremy parecia hesitar por um segundo, esperando que ela voltasse atrás, que se rendesse. Ele a encarou, mas Gilliard não vacilou. Ela manteve a postura, sentindo o peso da raiva se dissipar aos poucos. Ele parecia esperar que ela fosse pedir desculpas, que se arrependesse da sua decisão. Mas isso não aconteceria.
Com um último olhar de desprezo, ele se virou e entrou no carro, partindo sem olhar para trás.
— Puta. — ele disse uma última vez e ela se arrependeu de não ter dado um tapa no rosto dele enquanto teve a chance.
Gilliard o observou desaparecer na estrada. O estacionamento estava finalmente quieto, mas o silêncio parecia mais ensurdecedor do que qualquer grito. Ela ficou ali, respirando pesadamente, tentando se acalmar, tentando entender o que acabara de acontecer.
Ela sentiu um peso nas costas, mas não era mais a raiva de Jeremy. Era uma sensação de vazio, uma falta de controle. Gilliard sabia que sua cabeça estava girando, cheia de pensamentos desconexos, uma mistura de raiva e frustração.
A noite tinha sido um desastre, e a sensação de que nada estava sob seu controle era esmagadora. Ela pegou sua bolsa, com os dedos trêmulos, e então seus olhos caíram sobre o cigarro que ela sempre carregava por perto, escondido em um compartimento da bolsa. Não sabia por que, mas naquele momento, sabia que precisava de algo para aliviar a pressão.
Ela tirou o cigarro e acendeu-o com o isqueiro. A chama iluminou seu rosto por um segundo, e ela puxou a fumaça com força, sentindo o gosto amargo e forte invadir seus pulmões. Era como se aquele único trago fosse capaz de apaziguar a tensão que ela sentia em cada centímetro do corpo.
A fumaça subiu para o céu, lentamente, enquanto ela soltava o ar, fechando os olhos por um momento, tentando acalmar sua mente caótica. A ansiedade que ela carregava estava, aos poucos, sendo drenada, e o alívio era quase palpável.
Foi quando um som a fez parar. Um barulho metálico, um estrondo vindo da direção dos fundos do restaurante. Gilliard largou o cigarro, sem perceber, e olhou rapidamente para a porta velha e desgastada. Ela podia ver, na penumbra, uma figura familiar. John Kreese. Ele saiu de dentro do prédio, com o uniforme típico de sempre, embora agora parecesse um pouco mais limpo.
Talvez fosse outro uniforme, mas ele parecia mais seco do que de quando ele caiu em contraste com o ambiente sujo ao redor. Ele carregava alguns sacos de lixo, um movimento mecânico, como se estivesse acostumado a esse tipo de tarefa, não importando o que acontecia ao redor.
Gilliard, ainda em choque pela presença dele, o observou em silêncio. Ele não a notou, completamente absorto na tarefa de carregar os sacos de lixo. Ela estava tão perdida na cena que nem percebeu que estava fumando ao lado da lixeira até aquele momento. O cheiro de fumaça misturava-se com o odor de lixo, mas, para Gilliard, parecia um contraste quase poético — uma tentativa de se desligar da situação, de esquecer a raiva e a frustração que ela sentia. Ela sentia que, de alguma forma, estava em um lugar que não pertencia a ela. Tudo ao seu redor parecia desconectado, sem sentido.
Kreese não olhou para ela uma única vez. Ele estava focado em sua tarefa, sem perceber a presença de Gilliard. Ele movia-se com uma calma imperturbável, como se fosse parte daquele cenário sujo e bagunçado, completamente alheio ao que estava acontecendo.
Gilliard, por outro lado, não conseguia tirar os olhos dele. Era como se ele fosse uma âncora no caos de sua mente. Ela sentia que estava paralisada, incapaz de agir, de mudar qualquer coisa em sua vida. Ela sentia um desconforto estranho, uma sensação de ser observada, mas ao mesmo tempo invisível.
A fumaça do cigarro de Gilliard subia lenta e pesada no ar quente, cada trago preenchendo seus pulmões e a afastando da tensão que ainda lhe queimava por dentro. Quando ela soltou o fôlego, o ar ficou denso, misturado ao cheiro forte do cigarro e ao ambiente abafado dos fundos do restaurante. Kreese virou-se de imediato, como se soubesse que ela iria falar algo. O simples gesto de ela exalar a fumaça a fez tomar coragem.
— Me... — ela começou, quase hesitante, mas a necessidade de se fazer ouvir a empurrou a continuar — Me perdoe por mais cedo.
Ela mesma se surpreendeu com a suavidade das palavras. Não era como se quisesse se desculpar, mas algo nela desejava a atenção de Kreese, uma validação silenciosa que o gesto dele, de aparente respeito, parecia oferecer. Gilliard não sabia o que exatamente estava acontecendo com ela, mas estava disposta a seguir esse estranho impulso.
Kreese a olhou por um momento, como se tentasse entender suas intenções. Então, como se tivesse encontrado uma resposta em suas ações, ele respondeu de maneira casual, seu tom quase tranquilo.
— Não foi sua culpa. — Ele bateu as palmas das mãos uma contra a outra, limpando o avental, como se quisesse parecer mais apresentável para ela. — Seu namorado que não é tão legal quanto você.
A palavra "namorado" foi um estalo para Gilliard. A memória de Jeremy, a frustração com ele, a raiva contida, tudo isso veio à tona. Ela não tinha mais paciência para aquele tipo de relação. E, sem pensar duas vezes, soltou a verdade que queimava na garganta.
— Não é meu namorado. — Ela disse, erguendo os ombros de maneira quase defensiva, mas com uma leveza que parecia desafiar tudo ao redor. Ela deu um passo à frente, o cigarro entre os dedos como uma espécie de trégua entre os dois. — Aquele babaca estava com a mão na minha calcinha até você chegar.
As palavras caíram no ar como uma bomba silenciosa. Kreese, visivelmente surpreso, deu um passo para trás, como se a sinceridade brutal dela o tivesse atingido. Ele não sabia o que esperar daquela mulher, mas certamente não era isso.
Ela não se importava em dizer o que pensava. Era autêntica de uma maneira quase assustadora, como se tivesse perdido o medo de ser quem era. Ele nem sabia quantas garotas em San Fernando seriam capazes de se expor daquela forma.
Ele não sabia o que dizer, mas, em um impulso, apenas balançou a cabeça.
— Enfim... meio que obrigado por aparecer e fazer seu trabalho... Sabe? Aparecer com o cardápio. — Gilliard completou, sua voz mais suave, mas com a mesma energia provocativa.
Ela deu uma risadinha sem graça, como se estivesse se divertindo com a situação, mas também se sentindo desconfortável com a situação toda. Era por isso que as pessoas a chamavam de vadia, ela pensava. Porque não conseguia controlar sua língua.
Kreese riu, uma risada baixa e cheia de implicações, antes de passar a língua entre os dentes, o que fez Gilliard sentir um tipo de atração estranha por ele. Havia algo nele que a desconcertava, algo que ela não conseguia ignorar.
— Acho que eu deveria ficar honrado então. — Ele disse, sua voz carregada de sarcasmo, mas também de uma certa admiração silenciosa.
Ela sorriu de lado, dando de ombros como se estivesse se divertindo com o jogo. Seus olhos azuis brilharam de maneira sedutora, uma expressão que ela usava instintivamente, sabendo exatamente o efeito que causava.
— É, talvez devesse. — Ela disse, revirando os olhos de uma forma que parecia despretensiosa, mas que só aumentava a tensão entre eles. Ela então ofereceu-lhe o cigarro, seu olhar desafiador, mas também curioso. — Quer?
Ela sabia que não deveria estar fumando, especialmente porque ainda estava amamentando. Mas isso não importava agora. Ele não sabia disso. E, para ser sincera, nem queria que soubesse. Não queria que ele a visse como uma mãe. Não com aquele olhar de interesse que ele estava começando a lançar sobre ela. Porque ele claramente não a conhecia.
Kreese sorriu com uma leveza desconcertante, antes de olhar para a porta do restaurante uma última vez, mas sua decisão foi clara. Ele se aproximou dela, pegando o cigarro com os dedos e dando uma tragada profunda. O gesto dele era quase natural, como se ele tivesse feito aquilo milhares de vezes antes. Ele exalou a fumaça com calma, finalmente devolvendo o cigarro para ela. Gilliard sorriu, sentindo a adrenalina aumentar em seu corpo. Ela puxou mais uma tragada, seus olhos azuis agora fixos nele.
— Seus olhos... — Ele disse, a voz mais suave, como se estivesse procurando as palavras certas.
Ela o olhou, curiosa, mas não deu a ele o prazer de saber exatamente o que estava pensando.
— O que tem eles? — Ela respondeu, tentando disfarçar a surpresa. Não sabia o que esperar dessa conversa, mas sentia que algo estava mudando ali, algo que ela não podia entender.
Kreese finalmente a encarou com a intensidade que ela estava esperando. Seus olhos escuros eram profundos, quase como se quisessem desvendar cada segredo que ela guardava. Ele a estudou por um longo momento, seus olhos percorrendo cada linha do rosto dela, cada detalhe.
— Acho que... — Ele hesitou, como se estivesse tentando encontrar o caminho certo para o que queria dizer. Então, com mais confiança, ele finalmente completou: — Acho que são os olhos mais azuis que já vi na vida.
A frase ficou no ar entre eles, uma confissão sincera que fez o coração de Gilliard bater mais rápido. Ela não sabia como responder, mas, por um instante, se esqueceu do mundo ao redor.
O som das palavras dele ecoou em sua mente, e tudo o que ela queria era manter aquele momento, essa sensação de ser vista, de ser notada.
A fumaça entrou em seus pulmões e, por um momento, o mundo pareceu girar, como se ela fosse engolida por uma sensação intensa. Os segundos seguintes foram nebulosos, a raiva de Jeremy sumindo, sendo substituída por uma urgência que ela mal conseguia entender. Gilliard sentiu-se deslocada, mas ao mesmo tempo, um desejo inesperado queimava em seu peito.
Ela olhou para Kreese, seu corpo ainda quente da fumaça que ele havia exalado. Era estranho, como se aquele homem fosse o antídoto para a confusão dentro dela. Em um piscar de olhos, a raiva que sentia por Jeremy, e até mesmo a dor da ausência da sua mãe, desapareceram.
O beijo aconteceu quase sem aviso.
A mão de Kreese, de maneira instintiva, foi para seu pescoço, puxando-a para mais perto, e o contato fez um arrepio percorrer sua espinha. Gilliard não hesitou, seus lábios se encontraram com os dele, e a pressão entre os dois foi intensa, como se cada segundo fosse uma eternidade comprimida. Ela sentiu o calor dele, o gosto da fumaça misturado com algo mais profundo, algo que ela não conseguia identificar.
Mas então, Kreese parou, seus olhos escuros se estreitando, e por um segundo, ele parecia distante, como se estivesse lendo sua mente. Ela sentiu uma frustração súbita e quase impaciente, mas antes que pudesse dizer algo, ele falou:
— Espera... Eu preciso saber seu nome.
A pergunta era simples, mas Gilliard sentiu como se fosse uma ruptura no fluxo daquilo tudo. Ela nunca tinha realmente se importado em contar a alguém quem ela era, seu nome sempre estava ao alcance das mãos, sempre sido uma informação compartilhada de maneira automática, graças a sua familia e sua reputação.
Mas ali, com ele, parecia mais profundo. Ele queria saber de verdade, como se quisesse entendê-la, e isso a fez hesitar. Ou o Kreese aberração, o garoto da mãe suicida, recém-chegado na cidade era o único que não a conhecia.
Ela olhou para ele por um instante, o calor de seus corpos ainda se misturando, e sua garganta se apertou, como se o simples ato de responder fosse algo vulnerável.
— Lia... Quero dizer, Gilliard. Meu nome é Gilliard, meu pai me chama de Lia. Mas é, ... é Gilliard MacGyver. — A palavra saiu de sua boca em um suspiro, uma confissão sem saber por que sentia a necessidade de fazer isso.
Kreese sorriu, uma expressão quase suave, mas ainda misteriosa. Ele parecia gostar daquela revelação, mas havia algo nos seus olhos que deixava claro que ele queria mais. Ele queria ver além da superfície.
— Tudo bem... MacGyver, então. — Ele sorriu de volta, o sorriso malicioso e curioso, antes de a puxar novamente para o beijo. Mas antes que ela pudesse responder ou reagir, ele parou, novamente interrompendo o momento. A voz dele era grave, e ele se afastou ligeiramente, como se fosse uma pausa antes de uma descoberta importante.
— Sou o Kreese. — Ele disse, sua voz suave e assertiva.
Ela deu uma risada leve, quase zombando de si mesma, de como ele havia se apresentado.
— Eu sei. — Sua mão foi rapidamente para o avental dele, puxando-o para mais perto. A verdade é que ela não queria mais interrupções. Não queria mais pensar, não queria mais se preocupar com qualquer coisa. Ela o puxou para ela, seus corpos se alinhando, e o beijo voltou a acontecer, mais urgente, mais quente.
Kreese, no entanto, jogou o cigarro no chão, pisando sobre ele com força, talvez sem perceber o gesto, mas como se estivesse apagando algo, algo do passado ou talvez até algo que eles deixaram para trás naquele instante. O som do cigarro se apagando foi abafado pelo som dos seus corações batendo mais rápido, pela tensão crescente entre eles.
Ela não se importava mais com nada. As palavras não importavam. O passado não importava. Só existia o presente. Só existia o corpo dele contra o dela, os beijos vorazes, a troca de respirações pesadas. E, por um momento, nada mais parecia real, exceto aquele fogo que queimava dentro deles dois.
Reseda,
2021
O dojo estava silencioso, com a luz suave refletindo nas paredes de madeira, criando um ambiente intenso e carregado. A brisa da manhã mal conseguia entrar pelas janelas pequenas, mas, dentro daquele espaço, o ar estava denso, como se estivesse impregnado com as palavras e a filosofia de um novo líder. O lugar que um dia foi a casa de Johnny Lawrence agora estava sob o domínio de Kreese. E, naquele momento, ele era a verdadeira força ali.
Kreese se posicionava no centro, com os braços cruzados, seu olhar varrendo a sala, cada um dos jovens que estavam ali, de olhos fixos nele, absorvendo suas palavras. Ele falava com uma autoridade crua, implacável, que parecia cortar o ambiente como uma lâmina afiada. Não era mais o dojo de Johnny. Não era mais o lugar de treinamento onde as regras eram baseadas em empatia e autoaperfeiçoamento. Agora, as regras eram mais simples, mais diretas, e, para muitos, mais difíceis de engolir.
— A vida nem sempre é justa. Às vezes o mundo pode ser cruel. E por isso você tem que aprender a ser cruel também. A fraqueza é inaceitável. A briga na escola foi uma vergonha. Vocês perderam os soldados e perderam a batalha. Mas vocês não vão perder de novo. O Dias era um dos nossos. O que fizeram com ele, fizeram com todos nós. E isso não vai ficar sem resposta. Não vamos mostrar compaixão. Não vamos mostrar fraqueza. Vamos atacar de volta e vamos acertar firme. Ficou claro? — A voz de Kreese ecoava pelas paredes, seu tom áspero como o som de uma pedra raspando contra concreto.
Todos estavam em silêncio, absorvendo cada palavra. Mas era Aaron quem estava imersa no peso do que ele dizia. Os olhos dela estavam fixos, não em Kreese, mas nas novas palavras escritas nas paredes do dojo, sob a luz que fazia as frases parecerem quase abrasivas.
"Atacar primeiro, atacar com força, sem compaixão."
As palavras estavam gravadas com precisão, como se a parede fosse um lembrete constante do que era exigido ali, do que era esperado de cada um que estava ali. Aaron se manteve em silêncio, mas seu olhar percorreu a parede lentamente. As palavras estavam como uma tatuagem mental, gravadas em sua mente com uma dor fria e distante.
Ela sentia um peso crescente dentro de si, uma compreensão do que aquele novo dojo representava. Aquela filosofia não era para os fracos. Aqueles que estivessem ali precisavam ser implacáveis, precisarão cortar qualquer traço de compaixão, de insegurança, de hesitação.
Kreese, observando a sala, percebeu que a resposta de Aaron viria, não só pela maneira como ela se comportava, mas pelo brilho determinado em seus olhos.
Ela encarou as palavras mais uma vez, absorvendo o peso delas. A filosofia de Kreese agora era dela. Ela sabia disso. Sua postura se endireitou, sua respiração se acalmou, como se o ar ao redor tivesse se transformado e se tornado mais pesado, mais carregado de uma energia única.
E então, com uma firmeza que rivalizava a de Kreese, ela olhou para ele, seu sorriso confiante se moldando em seus lábios.
— Sim, sensei.
A sala estremeceu com a sinceridade e a força da resposta dela. O ambiente parecia ter mudado de repente, como se o ar tivesse se tornado mais denso, mais carregado de uma eletricidade palpável. Aaron sabia que a partir daquele momento, ela não voltaria atrás. Ela aceitaria essa filosofia. E não havia mais espaço para fraqueza. Não era mais uma opção.
O ambiente da reabilitação era limpo e organizado, com um aroma discreto de lavanda no ar. Daniel mantinha a postura firme, mas com um olhar avaliador, enquanto Johnny parecia completamente deslocado, com as mãos nos bolsos e uma expressão de quem preferia estar em qualquer outro lugar.
— Foco, tá bom? — Daniel murmurou, já antecipando os comentários de Johnny. — Viemos a negócios, não a prazer.
— Relaxa, Larusso. — Johnny fez uma careta. — Esse lugar não tem nada a ver com prazer.
Antes que pudessem avançar para a recepção, uma voz familiar cortou o ar, carregada de surpresa e irritação:
— Larusso? Lawrence?
Os dois se viraram ao mesmo tempo, encontrando Jay J, o pai de Aaron, saindo de uma sala lateral. Ele estava mais limpo e bem cuidado do que das últimas vezes que o haviam visto, mas a tensão em sua expressão permanecia a mesma.
— Jay J? — Daniel falou, tentando processar a presença dele ali. — O que você está fazendo aqui?
Jay J cruzou os braços, com uma postura defensiva.
— O que parece? — Ele rosnou. — Tô tentando me consertar. Não que isso seja da conta de vocês.
Johnny, que até então estava em silêncio, soltou uma risada curta e debochada.
— Consertar, é? Não sabia que consertavam egoístas. Isso é novidade.
Jay J lançou um olhar afiado para Johnny, se aproximando com passos firmes.
— E eu não sabia que bêbados fracassados como você ainda tinham coragem de andar por aí. Parabéns pela superação, Lawrence.
— Olha quem fala, o exemplo de pai do ano! — Johnny retrucou, sem hesitar, inclinando-se ligeiramente para frente, como se desafiasse Jay J a continuar.
— Já chega! — Daniel se colocou entre os dois, erguendo as mãos para afastá-los. Ele se virou para Jay J, tentando manter a calma. — Não esperava te ver aqui, mas... fico feliz que esteja tentando melhorar.
Jay J bufou, seus ombros relaxando levemente.
— Feliz? Você não sabe nada sobre mim, Larusso.
— Sei o suficiente pra saber que Aaron não quer saber de você. — A voz de Daniel soou firme, mas não agressiva, como se ele quisesse que as palavras fossem um alerta.
Jay J desviou o olhar por um momento, como se as palavras tivessem acertado um ponto fraco. Quando voltou a falar, sua voz tinha uma nota de vulnerabilidade que era rara nele.
— Minha filha... como ela tá?
Daniel hesitou, mas respondeu com firmeza:
— Ela está bem.
Jay J soltou o ar, visivelmente aliviado.
— Que bom... que bom que ela tá bem. — Ele fez uma pausa, olhando para o chão antes de continuar. — Ele prometeu pra mim.
— Prometeu? — Johnny perguntou, franzindo o cenho. — Quem prometeu?
Jay J levantou o olhar, mas respondeu com um desdém quase casual:
— O Kreese.
O nome caiu como uma bomba. Daniel ficou estático, enquanto Johnny deu um passo à frente, como se quisesse exigir uma explicação.
— O Kreese? O que diabos ele tem a ver com isso? — A voz de Johnny estava carregada de raiva e incredulidade.
Jay J deu de ombros, como se não quisesse se aprofundar no assunto. Ele ajeitou o casaco e começou a se afastar, mas antes de sair, parou para lançar um último olhar.
— Larusso. — Ele assentiu brevemente, quase como uma despedida respeitosa.
Quando seu olhar pousou em Johnny, no entanto, a expressão mudou para um rosnado irritado. Ele saiu sem dizer mais nada, deixando os dois em um silêncio pesado.
— Kreese? — Johnny repetiu, quebrando o silêncio, sua voz carregada de desprezo. — Isso só pode ser piada.
— Não sei o que ele está tramando, mas não pode ser nada bom. — Daniel massageou as têmporas, claramente preocupado. Ele olhou para Johnny e respirou fundo. — Vamos. A Shannon tá esperando.
A porta da casa de Tory estava diante de Aaron novamente, mais uma vez depois de várias tentativas frustradas.
Cada visita parecia mais dolorosa que a anterior. A porta, aquela barreira imutável, continuava a resistir à sua presença, sem sequer uma resposta. As tentativas eram quase mecânicas agora, como se fosse um ritual de dor repetido. Ela sabia que não deveria esperar nada de volta, mas, ainda assim, algo dentro dela se recusava a desistir. A amizade delas sempre foi algo forte, algo que valia a pena, mas, cada vez mais, ela sentia que estava lutando sozinha.
— Tory, qual é?! Sou eu... — Aaron disse, sua voz se saindo entre a impaciência e a preocupação. Ela cruzou os braços, encarando a porta com o olhar fixo, como se pudesse forçar uma resposta apenas com sua presença. Sua mão bateu na madeira com um som seco e firme, mas o eco vazio que respondeu só aumentou a sensação de vazio que a cercava. Ela mordeu o lábio, tentando segurar a frustração que estava prestes a transbordar. A sensação de rejeição era difícil de engolir.
— Você pegou condicional? — ela tentou novamente, quase como se quisesse achar uma desculpa para justificar o silêncio de Tory. — Por favor, me diz o que aconteceu, eu... Tory!
O desespero agora era claro em suas palavras, uma mistura de raiva e preocupação. Mas, de novo, o silêncio. Ela bateu na porta mais forte, como se isso fosse trazer a amiga de volta à realidade. Nada. Apenas o som abafado da casa ao redor, como se Tory estivesse lá, mas ao mesmo tempo, tão distante.
Aaron sabia que ambas estavam na merda. Mas sentia que Tory estava ainda mais afundada. Ela já tinha se livrado da condicional. Era só trabalho voluntário, uma ficha manchada, mas nada demais. Kreese tinha dado um jeito nela, mais uma vez. Ele sempre dava, com suas mãos sujas, mas Aaron tinha o que queria. E ela preferia pensar que isso tudo tinha uma utilidade para ele, algo que ela ainda não compreendia completamente.
Ela não sabia o quanto estava sendo manipulada, não queria saber. Só queria acreditar que ele a ajudava porque ela ainda tinha algo a oferecer. No dojo, ela tinha um propósito. Fora dali, tudo parecia desmoronar. A faculdade era uma piada para ela. Como poderia pagar por isso? Ela se sentia estúpida até por pensar nisso.
Ela colocou a mão na testa, frustrada. O peso das escolhas que ela estava fazendo estava começando a se mostrar, e ela não sabia mais como lidar com isso. Ela olhou novamente para a porta, o silêncio esmagador entre elas. Não sabia o que mais fazer. Não sabia mais como chegar até Tory.
— Eu vou embora... Só, por favor, responde minhas mensagens... — ela falou, a voz agora mais suave, mas o tom ainda carregado de preocupação. Ela estava quase desistindo, mas algo em seu peito ainda insistia. — Tory, tô preocupada...
Ela deu um passo para trás, desanimada, a sensação de impotência mais forte que nunca. O silêncio parecia uma resposta final, e Aaron não sabia o que mais poderia fazer. Já estava pronta para virar e ir embora quando, de repente, o som veio de dentro. A maçaneta da porta se mexeu, um som tão pequeno, mas que fez o coração de Aaron disparar. Era um sinal. Mas, quando a porta finalmente se abriu, o que ela viu foi uma sombra cansada. Tory apareceu na moldura da porta, com o olhar pesado, o rosto marcado por noites mal dormidas, o sorriso que tentou forçar não escondia o quanto ela estava esgotada.
— O Miguel acordou? — a voz de Tory veio baixa, quase como se ela estivesse tentando se proteger com aquelas palavras. Aaron engoliu a surpresa, tentando não demonstrar o alívio imediato.
— É... — Aaron falou, os olhos arregalados, mas sem conseguir esconder o alívio que sentia. — Isso é bom. Finalmente...
Tory deu um passo atrás, seu olhar se desviando, como se quisesse fugir de algo mais. Aaron viu a luta dentro dela, e foi aí que algo no fundo da sua garganta se rompeu.
— Eu tô tendo pesadelos... — disse Aaron, sua voz agora suave, quase em um sussurro. Ela sentia o peso daquelas palavras. — Eu entendo agora, Tory, o que a gente fez... O que aconteceu com a gente. Eu só queria que você soubesse que, se precisar conversar, eu estou aqui. Eu...
Ela hesitou. O olhar dela se encontrou com o da amiga, mas não havia nada ali além de silêncio. Ela não sabia se era o medo, o arrependimento ou simplesmente a falta de palavras, mas uma sensação de impotência tomou conta dela. As palavras não saíam da forma que ela queria, e, mesmo assim, a dor era forte demais para ser contida.
— O sensei disse que você pode voltar ao Cobra Kai quando quiser... Nós sentimos sua falta. Eu sinto sua falta, Tory.
O silêncio entre as duas era quase palpável. Era o tipo de silêncio que grita, que pesa mais que qualquer palavra dita. Aaron não queria ver mais uma vez a porta se fechando entre elas, então deu um passo para trás, seu corpo quase tremendo de raiva e frustração. Ela sabia que não havia mais nada a fazer ali. A sensação de impotência era esmagadora.
Mas, enquanto ela virava as costas para se afastar, um som veio da porta. A maçaneta se mexeu, o barulho de uma hesitação que não havia sido ouvido antes. O coração de Aaron disparou no peito. Ela ficou ali, imóvel, como se aquele pequeno gesto fosse a resposta que ela tanto esperava. Mas, no momento seguinte, o som da porta fechando de novo foi o suficiente para esmagar suas esperanças. Ela sabia o que aquilo significava. Tory estava ali, ouvindo. Mas não tinha forças para se abrir. Aaron sentiu o peso daquela rejeição de novo, uma dor diferente, mais profunda.
Com um suspiro pesado, ela olhou para a porta mais uma vez, sua respiração se tornando mais lenta. Ela sabia que não podia forçar nada. Não ali, não agora.
Com o coração pesado, ela virou as costas e foi embora. A dor de não ter sido suficiente para sua amiga se abrir para ela se arrastou a cada passo que ela dava, mas Aaron sabia que, por mais que tentasse, só Tory poderia fazer a escolha de voltar a confiar.
O jardim da reabilitação Malibu Canyon era amplo, bem cuidado e silencioso. Pequenos caminhos de pedras serpenteavam entre árvores floridas e bancos estrategicamente posicionados para aproveitar a vista das montanhas ao longe. Daniel e Johnny caminharam pelo espaço, com o primeiro claramente mais à vontade do que o segundo.
— Por que diabos a gente veio até aqui? Robby nem deve estar por perto.
— Porque você claramente não sabe onde procurar. — Daniel retrucou. — Além disso, pode ser útil conversar com alguém que entende o que o Robby está passando.
Antes que Johnny pudesse responder, ambos pararam ao avistar Shannon, sentada em um banco mais adiante. Ela estava com as mãos cruzadas no colo e os olhos perdidos na paisagem, mas logo percebeu os dois se aproximando. Levantou-se devagar, ajeitando a blusa simples que vestia, e lançou um sorriso cordial.
— Shannon?
Daniel foi o primeiro a falar, com um tom surpreso. Johnny ficou um passo atrás, as mãos nos bolsos, mantendo uma expressão neutra.
— Daniel! — Shannon sorriu ao vê-los. Apesar do tom tranquilo, havia uma leve surpresa em seus olhos. — Que bom ver você.
— Você também. — Daniel retribuiu o sorriso.
— Fala pra Amanda que eu agradeço o óleo de lavanda que ela mandou. Me ajudou muito com a insônia.
— Ainda está aí nas reuniões de grupo, nas quartas? — Daniel perguntou casualmente, aproximando-se mais.
— Estou sim. — Shannon assentiu. Seus olhos então passaram para Johnny. — E você, Johnny?
Ele balançou a cabeça em um pequeno aceno.
— Oi. — Sua voz era baixa, mas carregada de um leve desconforto.
— Você parece bem — Shannon perguntou com gentileza, o tom quase hesitante.
— Você também. Obrigado.
Houve uma pausa momentânea. Shannon parecia hesitar antes de mudar de assunto:
— Bom, quando o Daniel disse que queria falar com o Robby, eu realmente não esperava ver vocês dois juntos.
— É isso aí. Faço tudo pra achar nosso filho. — Johnny respondeu com firmeza, cruzando os braços e inclinando-se ligeiramente para a frente.
Shannon olhou para ambos com uma expressão pensativa antes de suspirar:
— Eu queria uma folga desse lugar. Podia procurar por ele, mas minha conselheira falou que era melhor eu não ir.
— Sua conselheira? — Johnny arqueou uma sobrancelha, o sarcasmo óbvio em sua voz. — Acho que tá queimando seu dinheiro.
— Olha, Johnny, a reabilitação fez maravilhas por mim. Funciona pra muita gente, na verdade. — Shannon rebateu, mantendo o tom firme, mas sem perder a calma.
Daniel interveio, tentando dissipar a tensão:
— Ótimo. Fico feliz que esteja melhor.
Johnny bufou, olhando em volta com desdém.
— Férias numa clínica não é pra mim. — Ele deu de ombros.
Shannon cruzou os braços, um sorriso provocador nos lábios.
— Você fala isso porque a sua ideia de férias é ir a um show de Monster Truck.
Johnny ergueu o queixo, como se aquilo fosse um elogio.
— Aí, o Camiossauro foi demais! — Ele respondeu com entusiasmo.
— Você adorou cada minuto. — Shannon provocou.
— Eu estava fingindo. — Ele fez uma expressão séria, mas havia uma centelha de humor em seus olhos.
— Eu sei quando você está fingindo.
Daniel, visivelmente impaciente, levantou as mãos.
— Tá bom, gente, já chega. — Ele se voltou para Shannon. — Você tem alguma ideia de pra onde o Robby pode ter ido depois que pegou o carro?
Shannon suspirou, parecendo relutante antes de responder:
— Eu só sei que quando o Robby se metia em encrenca, aqueles idiotas não estavam longe.
— Que idiotas? — Johnny perguntou, o cenho franzido.
— Tem um que parece o Chris Brown, e o outro é meio... sei lá, latino. Tirando quando ele não estava com a Aaron, né? Eles eram meio inseparáveis.
— Então é o Deb e o Lloyd. — Johnny murmurou, cerrando os punhos.
— Bom, com a Aaron ele não estaria, ja que a confusão aconteceu por causa dela.
— Não foi por causa dela. — Johnny revirou os olhos e balançou a cabeça, defendendo a garota — E nem se ela
soubesse nos diria agora.
— O que ta insinuando, Johnny? — LaRusso reclamou
— Esqueça. — ele disse com um sorriso provocativo — Como é que a gente vai achar esses imbecis?
— Eu sei onde eles estão. — Daniel disse, com determinação, já começando a andar.
Shannon os observou se afastar, uma mistura de preocupação e cansaço em seu olhar, antes de se sentar novamente no banco. O sol brilhou por entre as árvores, mas a tensão parecia se intensificar a cada passo dado pelos dois homens em direção à saída.
O dojo estava cheio, mas o foco de todos parecia convergir para o centro do tatame, onde Aaron e Falcão trocavam golpes. Ele se movia com cautela, como se estivesse treinando com alguém feito de vidro. Aaron, porém, desviava e bloqueava sem esforço, o rosto fechado em uma expressão de irritação.
— Falcão, para de brincar. — Ela resmungou, erguendo os punhos novamente.
— Não tô brincando. — Ele respondeu, hesitando.
— Minha costela já sarou, para de ser marica. — Ela o provocou, um sorriso desafiador surgindo no canto dos lábios.
— Não tô sendo marica. Só tô preocupado.
Aaron parou, abaixando os braços. Seus olhos fixaram-se nele, frios, e ela apontou para si mesma.
— Tô bem. — Ela declarou, categórica. — Não tá vendo?
Falcão suspirou, mas em vez de responder, tocou o canto do próprio olho, indicando a cicatriz que ainda estava no rosto dela. Avermelhada abaixo do olho, deixando claro que ficaria ali por algum tempo. Mais tempo do que Aaron gostaria.
— Não é por causa da costela.
Aaron revirou os olhos, claramente impaciente.
— Vai, pega pesado. — Ela ordenou, dando um passo para frente, quase o desafiando a atacá-la.
Falcão bufou, mas cedeu. Avançou com mais intensidade, desferindo golpes rápidos, obrigando-a a recuar e defender com mais vigor. Ele tentou mobilizá-la, mas Aaron, ágil, aproveitou uma brecha. Com uma rasteira bem executada, ela o derrubou no chão e caiu sobre ele, prendendo-o com o próprio peso. Suas mãos seguraram o punho dele, como se estivesse pronta para desferir o golpe final.
— Ganhei, viu? — Ela provocou, um sorriso triunfante iluminando seu rosto. — Ainda sou boa.
Antes que Falcão pudesse responder, o som de passos firmes ecoou pelo dojo. Kreese emergiu do escritório, suas botas negras parecendo marcar o ritmo de sua autoridade. Ele caminhou lentamente, avaliando cada um dos alunos antes de parar no centro.
— Hoje treinaram duro. — Ele começou, sua voz grave preenchendo o ambiente. — Antes de dispensá-los, tenho um presente. Quero que conheçam um amigo.
Com um gesto lento, ele tirou algo do bolso. Era um pequeno rato cinza, que se debatia levemente em sua mão. Aaron instintivamente deu um passo para trás, franzindo o nariz com nojo. Sem perceber, segurou o kimono de Falcão ao seu lado. Quando notou o gesto, soltou imediatamente, ajeitando o kimono com um movimento rápido, como se nada tivesse acontecido.
— Ele é tão fofo! Qual é o nome dele? — Bert perguntou, a voz leve.
— Me digam vocês. — Kreese respondeu, como se fosse óbvio.
— Falcão Júnior? — Falcão sugeriu, animado, apontando para o rato.
— Credo, Falcão. — Aaron murmurou, revirando os olhos.
Enquanto isso, Bert, o mais novo do grupo, aproximou-se com curiosidade, os olhos brilhando de admiração.
— Clarence? — Bert sorriu.
— Gosto desse nome. — Kreese sorriu sadicamente
— Posso alimentar ele? — Bert perguntou
Kreese deu um sorriso enigmático, desviando a atenção para um canto do dojo. Lentamente, ele puxou um pano preto que cobria uma caixa de vidro. Debaixo do pano, uma cobra imensa descansava em um terrário, o corpo enrolado em si mesmo, mas os olhos predadores atentos ao ambiente.
— Não. — Kreese bateu a mão no vidro e a cobra se mexeu — Mas pode alimentar ele.
Aaron sentiu um arrepio percorrer sua espinha. Seus olhos alternaram entre Bert e Kreese, tentando processar o que estava acontecendo.
— O que ele gosta de comer? — Bert perguntou, segurando o rato com mais força devido ao nervosismo
— Clarence — Kreese respondeu com frieza, o tom casual, quase cruel.
Os olhos de Aaron se arregalaram levemente, mas ela rapidamente disfarçou. Ela olhou para Falcão, buscando algum apoio, mas ele parecia absorto, observando a cobra com fascínio perturbador.
— Anda logo. — Kreese ordenou, o tom afiado.
Bert hesitou, segurando o rato como se fosse um amigo precioso.
— Não dá. — Ele finalmente murmurou, a voz trêmula. — Não consigo.
— Está tudo bem, Bert. Não precisa... — Aaron interveio, sua voz firme. Ela deu um passo à frente, ficando ao lado do garoto.
— É, Bert. — Kreese disse a interrompendo e dando de ombros — Não tem problema se opor.
Kreese estreitou os olhos, virando-se para encará-la.
— Alguém mais se opõe? — Ele perguntou, a voz fria, escaneando o dojo.
Um por um, alguns alunos levantaram as mãos. Kreese explodiu.
— Estão fora da equipe! Saiam.
— Não. — Aaron disse, firme, cruzando os braços.
Kreese virou-se para ela, o olhar incendiário. Ele deu um passo à frente, ficando frente a frente com ela. Seus olhos se encontraram, como se fossem dois lutadores antes de um combate. Aaron manteve a postura, ereta, sem recuar
— Fraqueza. — Ele declarou, cortante. — Fraqueza não tem lugar no Cobra Kai.
Aaron deu um passo à frente, seu corpo inteiro tensionando.
— Ele não vai fazer isso. — Ela afirmou, sua voz firme.
Todos os olhos se voltaram para ela. Kreese virou-se lentamente, seu olhar fixando-se nela como uma lâmina prestes a perfurar.
— O que você disse? — Ele perguntou, a voz baixa, mas carregada de ameaça.
Aaron não vacilou. Ela deu mais um passo, ficando cara a cara com ele. Apesar da diferença de altura, a intensidade em seu olhar parecia nivelar o campo.
— O Bert não precisa fazer isso. — Ela repetiu, cada palavra carregada de convicção. — Vai pegar sua mochila. — ela disse pro menino que mesmo com medo, a obedeceu
Por um momento, o dojo inteiro parecia ter parado. Até aqueles expulsos, que estavam prestes a ir embora. Kreese inclinou a cabeça levemente, como se estivesse avaliando-a. Ele viu algo em seus olhos — uma chama, uma determinação que ele reconheceu imediatamente. Era o mesmo olhar que a mãe dela tinha quando ousou desafiá-lo tantos anos atrás.
A raiva que ele sentia foi substituída por algo mais complexo. Orgulho. Admiração, talvez. Mas ele não demonstrou nada disso. Em vez disso, ele deu um passo à frente, reduzindo ainda mais a distância entre eles.
— Você acha que pode desafiar minha autoridade? — Ele perguntou, a voz baixa, quase um sussurro, mas carregada de peso.
— Não acho. — Aaron respondeu, mantendo o olhar fixo no dele. — Apenas... me dê o rato. Me dê o rato!
Kreese permaneceu em silêncio por um momento, antes de dar um pequeno sorriso. Ele colocou o rato nas mãos dela e gesticulou para o terrário.
Aaron não desviou o olhar. Com passos firmes, ela caminhou até o terrário, abriu a tampa e colocou o rato dentro. A cobra atacou instantaneamente, e o som foi suficiente para fazer alguns alunos se encolherem. Aaron, no entanto, não vacilou. Apenas sentiu o corpo involuntariamente se estremecer.
Quando ela se virou para encará-lo novamente, Kreese deu um leve aceno, quase imperceptível, mas que carregava uma mensagem clara.
— Muito bem. — Ele disse, finalmente. — Fraqueza não tem lugar aqui. Força, sim. Mas o garoto está fora.
Aaron sustentou o olhar dele por mais alguns segundos antes de voltar para seu lugar no tatame, o coração martelando no peito.
O escritório de Kreese era austero, com paredes cobertas por medalhas e fotos antigas que emanavam uma sensação de história e autoridade. Falcão entrou hesitante, mas logo endireitou a postura, tentando demonstrar a confiança que sabia ser esperada dele ali dentro. Kreese estava sentado atrás da mesa, polindo uma faca de combate com movimentos calmos e metódicos. Sem levantar os olhos, ele falou:
— Ficou triste pelo seu amiguinho?
Falcão hesitou. Seus olhos vacilaram por um instante antes de se firmarem novamente.
— Não, sensei.
Kreese ergueu os olhos lentamente, fixando-o com um olhar penetrante.
— Pode falar francamente, filho. Essa é a hora certa de fazer cortes?
Falcão respirou fundo, buscando as palavras certas.
— É... Tem menos alunos depois da briga na escola.
Kreese soltou um riso breve, sem humor, e se inclinou para frente.
— Essa é uma adição por subtração. Uma cobra de verdade não tem pena da refeição.
O silêncio que seguiu era pesado, cortado apenas pelo som distante dos outros alunos treinando no tatame. Falcão se mexeu desconfortavelmente, mas manteve os olhos em Kreese.
— Tem algum problema com isso? — Kreese perguntou, seu tom mais firme.
— Não, sensei.
Kreese se recostou na cadeira, satisfeito com a resposta.
— Ótimo.
Falcão relaxou um pouco, mas sua curiosidade o fez arriscar:
— Eu só... Eu só não entendo o plano. Com o Miyagi-Do fechando, a gente pode conseguir novos alunos.
Kreese deu um sorriso enigmático, como se já tivesse antecipado essa pergunta.
— E vamos conseguir. Na hora certa. Mas antes... — Ele parou, girando lentamente a faca sobre a mesa antes de olhar para Falcão novamente. — Antes temos que fortalecer a nossa base.
— Fortalecer? Como? — Falcão perguntou, confuso.
Kreese se inclinou novamente, a intensidade em seu olhar tornando impossível para Falcão desviar.
— Com o Diaz fora, precisaremos de um novo campeão. Alguém sem medo.
Falcão assentiu lentamente, absorvendo as palavras e sentindo um lampejo de orgulho.
— Mas já temos isso. A Aaron é a melhor, sensei.
Kreese ergueu uma sobrancelha, como se estivesse testando algo.
— Você não me ouviu. Precisamos de alguém sem compaixão.
Falcão engoliu em seco, mas não conseguiu conter um pequeno sorriso, se perguntando se Kreese estava se referindo a ele. Ele assentiu novamente, mais confiante.
— Aham.
Kreese o observou por um momento antes de inclinar a cabeça para a porta.
— Então pode mandar a Aaron entrar.
Falcão deu um passo para trás, assentindo novamente antes de sair. Ele parou na porta por um momento, lançando um último olhar para Kreese, como se buscasse mais alguma pista sobre o que ele estava pensando. Sem receber nada além do silêncio, Falcão abriu a porta, chamou Aaron e saiu.
Aaron entrou com passos cautelosos, o ambiente pesado a envolvia como uma corrente invisível. Kreese estava em pé agora, as mãos cruzadas atrás das costas, observando-a com a mesma intensidade que havia usado com Falcão. Quando ela parou no meio da sala, ele deu um pequeno sorriso.
— Ficou com pena dos que saíram? Por isso achou que poderia falar comigo daquele jeito?
Aaron apertou os lábios, tentando mascarar sua hesitação.
— Não, sensei. É só que...
— Só o que, criança?
A resposta saiu rápida, mas ela sabia que sua tentativa de parecer firme soava falsa. Kreese inclinou a cabeça ligeiramente, avaliando-a.
— Nada.
— Hm. — Ele deu um passo à frente, sua presença dominando o espaço entre eles. — Tentando não parecer tão idiota quanto já está se sentindo, hein?
Aaron desviou os olhos por um segundo, mas logo os voltou para ele.
— Eu... Eu não deveria ter me oposto.
Kreese sorriu, mas não havia calor no gesto.
— Não deveria mesmo. Mas não é algo que você pode controlar. Está no seu instinto.
Ele deu um passo mais próximo, suas palavras se tornando quase um sussurro.
— Por que você está aqui, MacGyver?
Aaron hesitou, tentando encontrar a resposta certa, mas seu tom saiu mais fraco do que ela queria.
— Pra aprender karatê. Pra...
Antes que pudesse completar, Kreese a derrubou com um movimento rápido, quase imperceptível. Aaron caiu de costas no chão, o impacto ressoando pela sala. Ela olhou para ele com surpresa e um toque de indignação, mas Kreese apenas deu um passo para trás, olhando para ela de cima.
— Pra aprender. — Ele repetiu, o tom cortante. — E pra ser a melhor.
Aaron se levantou rapidamente, a vergonha queimando em suas bochechas. Kreese continuou, sua voz firme, mas menos ameaçadora.
— Você acha que sabe o que quer, mas não sabe nada. Aqui, eu te ensino a sobreviver. Não a lutar por pena ou compaixão, mas porque o mundo lá fora não vai ter isso por você. Porque o mundo lá fora nunca teve pena de você.
No mesmo instante, Aaron sentiu a garganta fechar, seu peito se apertar e sua respiração se esvair.
Aaron ficou em silêncio, absorvendo cada palavra. Quando ela abriu a boca para falar, Kreese ergueu a mão, silenciando-a, mas ela não obedeceu.
— Sinto muito. — ela disse desviando o olhar, não querendo decepcionar — Bert é muito novo, fiquei com medo dele se machucar.
— Não peça desculpas, MacGyver. Aprenda. Faça melhor.
Ele deu um último olhar para ela antes de se virar para a janela. Aaron estava envergonhada. Não queria decepciona-lo.
Aaron permanecia no lugar, tentando controlar a respiração após a queda. A tensão entre eles ainda era palpável, mas a intensidade na postura de Kreese diminuiu levemente. Ele cruzou os braços, inclinando a cabeça para avaliá-la com uma curiosidade fria.
— Sabe alguma coisa da Nichols?
A pergunta pegou Aaron de surpresa. Agora parecia o mesmo homem que conversara horas a fio com ela no abrigo, o mesmo que tem se certificado de que sua casa estivesse em bom-estado, que ela estivesse bem. Ela desviou os olhos rapidamente, mexendo nos dedos nervosamente antes de responder:
— Não...
Kreese ergueu uma sobrancelha, analisando sua hesitação, mas não pareceu surpreso.
— Ah, entendi. — Ele deu um pequeno sorriso. — Precisamos dela.
Aaron hesitou, seu rosto corando levemente. Ela sabia que devia ter tentado mais, mas a situação era complicada demais para ela admitir.
— Já fui lá. — A voz saiu quase como um murmúrio. — Ela não quer conversar comigo.
Kreese soltou uma risada curta e seca, claramente debochada.
— É? Talvez porque vocês duas acabaram com a vida de um garoto.
A provocação bateu forte, e Aaron mordeu o lábio, tentando conter a raiva e a culpa que borbulhavam dentro dela.
— Não foi desse jeito. — Ela se defendeu, mas sua voz não tinha a firmeza que ela queria.
— Claro que foi — Kreese retrucou imediatamente, sua expressão inabalável. — Você sabe que foi. Não sinta vergonha disso.
Aaron abaixou os olhos, incapaz de negar. Ela engoliu em seco e concordou com um leve aceno de cabeça, como se admitisse que ele estava certo, mesmo sem querer.
Kreese se aproximou um pouco, diminuindo a distância entre eles, mas sua voz estava mais calma agora, quase calculada.
— Vou até a casa da Tori. Vou conversar com ela.
Aaron o encarou, surpresa.
— Acha que vai convencê-la?
Ele deu de ombros levemente, como se a questão fosse irrelevante.
— Não sei. — Um leve sorriso surgiu no canto de seus lábios. — Mas a gente pode tentar.
Aaron assentiu lentamente, mas havia um brilho de esperança em seu olhar.
— Se conseguir... Vou ser muito grata.
Kreese a observou por um momento, seus olhos avaliando cada nuance de sua expressão. Ele deu um passo à frente, estreitando a distância entre eles, e apontou um dedo em sua direção, gesticulando para que ela se aproximasse mais. Relutante, mas obediente, Aaron deu um pequeno passo adiante.
— Sei que vai. — Ele disse com um sorriso quase paternal, mas havia um peso em suas palavras que não podia ser ignorado. — Apenas não me decepcione, criança.
Aaron manteve o olhar fixo nele, sentindo o peso da expectativa. Ela assentiu novamente, mais firme desta vez, antes de Kreese fazer um gesto com a cabeça, indicando que a conversa tinha acabado. Ela deu um último olhar para ele antes de se virar e sair do escritório, sentindo que o peso nas costas só havia aumentado. Mas pelo menos ali, ela era livre. Sem julgamentos, e pela primeira vez, tinha alguém que colocava as expectativas nela.
Alguém que ela faria se orgulhar.
___________________
10338 palavras
amo esse capítulo, amo a avó da Aaron.
Alguma teoria??? Contem pra mim
tudo oq passa na cabeça de voces!
Quero saber tudinho.
Bjs, até amanhã!
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