⁸|Não foda com ele, Kate

Não esqueçam de comentar. Amo saber o que vcs estão pensando🖤🤧.

    Eu estou atrasada. De novo.

    Aqui estou eu, ajeitando meu cabelo no espelho do elevador. E não está adiantando de nada. Está muito seco e bagunçado, mas não aquela bagunça sexy que grita pós-sexo alucinante, e sim aquela que diz que um passarinho fez um ninho do topo da minha cabeça.

    Quando fechei a porta depois de me despedir de Brody, peguei meu celular e quase tive uma síncope ao ver que ia dar 10h00. Eu só tomei banho porque estava coberta de terra e ainda podia sentir o suor da noite passada. Nojento, eu sei. Então tomei banho o mais rápido que eu pude, consequentemente esquecendo dos meus machucados nos antebraços e cotovelos. Eu passei pomada depois, mas ainda dói quando flexiono.

    No fim, meu cabelo acabou sendo esquecido porque perdi preciosos minutos procurando um lenço para pôr no pescoço. Brody estava certo e o corte foi superficial, mas eu conheço meus amigos, eles suspeitariam ainda mais de algo, porque eu sei que eles irão.

     Estou terminando de prender meu cabelo com uma presilha que achei na bolsa, quando o elevador para e as portas abrem.

    Eu saio apressada e corro para minha mesa, sentando na cadeira e ligando meu notebook. Talvez ninguém perceba que eu estou duas horas atrasada…

— Onde você estava? — Genevieve sai do seu escritório após abrir a porta. Seus olhos estão arregalados enquanto caminha até mim. — Eu te liguei a manhã toda. Achei que tinha acontecido alguma coisa.

— Eu sei, sinto muito. Eu perdi a hora porque meu celular estava no silencioso. — Não é exatamente uma mentira, mas ainda me sinto estranha pelas palavras que saíram da minha boca.

     Minha melhor amiga fica me olhando por tanto tempo que sou obrigada a desviar o olhar, com medo que ela veja a verdade: que dormi no chão do meu apartamento depois de ser perseguida por um psicopata e… não fui à polícia como qualquer pessoa normal faria.

    Não estou afim de pensar nisso agora.

— Você precisa de algo? Perdi muita coisa? — Abro sua agenda no meu notebook, ainda ignorando o seu olhar.

— Não. Eu só queria saber se a minha melhor amiga estava bem.

     Sorrio levemente para ela.

— Ela está, mas aprecia a sua preocupação.

    Genevieve bufa, mas também está sorrindo um pouco.

— Eros estava saindo para ir ao seu apartamento, mas Anthony disse que você provavelmente estava com um cara.

     Eu me sentiria ofendida por essa ser a primeira coisa que ele pensaria se não o conhecesse bem. Tenho certeza que Anthony só estava impedindo Eros de xeretar demais porque sabia que eu ficaria levemente irritada com sua superproteção.

— Você estava? — A ruiva arqueia a sobrancelha quando fico calada.

    Dou de ombros.

— Talvez.

— Você deu uma segunda chance ao Gregory?

    Faço uma careta.

— Não. A gente simplesmente não combina.

— Então…? — Deus, como ela é curiosa. Não é atoa que somos melhores amigas.

    O telefone na minha mesa começa a tocar.

— Então que eu tenho trabalho a fazer. — Atendo o telefone, fazendo Genevieve resmungar e voltar para sua sala enquanto eu sorrio. — Escritório de Eros Blackburn e Genevieve Prescott. Quem deseja?

Minha sala. Agora.

      Encaro o telefone depois que Khalil desliga e reviro os olhos. Sério, ele precisa melhorar essa atitude.

     Antes de subir para o Gabinete do Diabo, eu passo na sala de Eros para avisar que estou oficialmente viva e ilesa. Ele faz perguntas e me encara com aquele olhar de irmão mais velho, mas eu lhe dou um olhar insolente e mando ele cuidar da própria vida.

     Agora, respiro fundo algumas vezes antes de abrir a porta do Covil.

    A visão de Khalil sentado na poltrona com a paisagem de Chicago atrás dele me recebe.

    É muito injusto como ele consegue ser gostoso de terno e de jaqueta de couro. É como se ele fosse duas pessoas: de terno, ele é um homem de negócios, o CEO da Blackburn Empire. Mas quando está vestido igual um bad boy, ele é apenas um homem comum. Ok, quem eu estou querendo enganar? Khalil Blackburn não seria um homem comum nem se só existissem homens comuns no mundo. Ele sempre seria o diferente, aquele a ser notado por nenhum outro motivo além da sua intensidade desconcertante e beleza obscura.

    Dando graças a Deus por ele não poder ler mentes e ver as baboseiras que estou pensando, caminho até sua mesa e tomo uma das cadeiras de frente para ele.

    Não digo nada. Ele também não olha para mim.

    Esse é o nosso jogo, um que começamos sem nem mesmo percebermos: nós nos ignoramos até o outro ceder. Ele me chamou aqui, e por mais que eu não goste de esperar, não vou ceder. Confesso que tenho dificuldade em tratar Khalil com o mesmo respeito que trato Eros no trabalho. E sinceramente, não me sinto culpada por isso. Trabalho para Eros há quase uma década, e Khalil, apesar de ser o sucessor, só assumiu há três meses. Ele ainda não tem meu respeito, mas tenho certeza que ele não se importa com isso.

    Finalmente, o Sr Estou Muito Ocupado Para Falar Com Meus Subordinados se recosta em sua poltrona e me encara.

     Tento ficar parada diante do seu olhar esmeralda, e não é muito difícil, vendo que isso sempre acontece quando ele me olha por tempo demais. E eu odeio. Às vezes tenho tanta certeza que ele me odeia, mas aí vem esse olhar e eu fico confusa, porque posso jurar que esse não é um olhar que você dá a alguém que você não gosta. É intenso, claro, mas aquecido também. Não com carinho e ternura, mas com desejo. Não um desejo qualquer, do tipo que um homem dá quando vê uma mulher gostosa, mas… mais. Mais intenso, mais desejoso, mais… pessoal.

     Aqueles lábios levemente rosados estão se movendo e eu pisco, retomando o controle do meu cérebro.

— Quero que você seja minha assistente pessoal.

     Pisco mais algumas vezes e me inclino para frente.

— Desculpe?

    Khalil semicerra os olhos, porque o idiota sabe que eu ouvi da primeira vez, mas misericordiosamente ele repete:

— Eu disse que quero que você seja minha assistente pessoal.

    Ok, então eu não estou louca ou ainda bêbada.

    Mas o fato de ele estar falando sério me faz rir. Porque, , ele não pode estar falando sério. Será que ele está bêbado? Hum… Não. Ele tem se mostrado muito comprometido com a empresa. Isso vai parecer estranho, mas confio que ele não vai estragar tudo. Então só resta uma alternativa: ele enlouqueceu. É claro. Isso é tão óbvio quanto a luz do dia.

— Você precisa de um momento, Kathryn? — O tom cortante que ele usa para dizer meu nome faz minha risada cessar aos poucos.

— Desculpe, eu, hã, lembrei de uma coisa muito engraçada — minto, mordendo o lábio para impedir o sorriso zombateiro.

    O silêncio que se segue faz a diversão morrer completamente enquanto Khalil mantém seus olhos em mim.

— Então? — Arqueia a sobrancelha.

— Oh. Não era uma piada?

    Eu posso dizer pela forma que sua sobrancelha contrai que seu comportamento meticulosamente frio está escapando do seu controle e ele está perdendo a paciência comigo.

— Não, Kathryn. Não é uma piada. Eu quero que você trabalhe para mim.

— Hum… Não, mas obrigada pela oferta. Posso ir agora? — Fico de pé, não acreditando que ele me fez perder tempo vindo aqui para…

— Senta. Eu não disse que você podia levantar — seu tom é baixo e rouco ao ordenar, fazendo os pelos da minha nuca se arrepiarem.

— Eu não sou um cachorro — disparo.

    Sinto minha pele corar. Mas não apenas porque estou irritada, mas porque sinto algo inusitado: uma vontade esmagadora de obedecê-lo. Eu sinto isso num lugar que não deveria sentir, o que me envergonha mais do que me irrita.

— Não, você não é. Cachorros são treinados para obedecer e você é muito indisciplinada para obedecer uma simples ordem. — Seu olhar não vacila. — Eu não vou repetir.

     Esse tom, a forma como ele me olha… Não. Eu não vou obedecê-lo, porque ele não está pedindo, está mandando. Ele literalmente me comparou com um cachorro, porra.

    Mas enquanto minha parte racional luta, a irracional já está assumindo o controle e eu prego minha bunda de volta na cadeira.

     Khalil assente, como se aprovasse a minha decisão.

    Eu vou matá-lo e esconder seu corpo em um refrigerador.

— Caso não tenha ficado claro, não foi um pedido. Eu quero que você seja minha assistente pessoal e você será.

— Eu não…

    Ele ergue a mão e eu automaticamente calo a boca.

      Minha pele queima com a raiva.

— Você receberá o dobro do salário que ganha agora. Suas obrigações serão redigidas em um contrato e se tiver alguma objeção, pode dizer a mim, que irei pensar sobre o assunto. Você folgará nos finais de semana e os feriados serão negociáveis, mas você terá que estar sempre com o telefone caso eu precise de você. — Ele faz uma pausa. — Também receberá uma chave do meu apartamento e acesso aos meus cartões de crédito para caso eu precisar que você faça compras para mim, além, é claro, do acesso aos meus e-mails pessoais. Imagino que não seja muito diferente do que você já faz para o meu irmão e sua noiva.

    Percebo que ele já acabou e está esperando uma resposta minha.

— Eu posso falar? — pergunto inocentemente. — Ou isso é contra o seu código de conduta do século passado onde as mulheres não tinham voz?

      Seus olhos se enrugam um pouco, mas ele não chega a sorrir.

     Khalil anue, me concedendo tão gentilmente esse direito.

— Foi um belo discurso e eu tenho certeza que cativaria qualquer mulher – porque, sinceramente, quem seria doida de recusar a oportunidade de fazer compras para um cara adulto e ainda receber por isso? — Uso o meu tom mais insolente e ele semicerra os olhos. — Mas como eu disse antes de você tão sutilmente me calar, eu não estou interessada, então, por favor, guarde o seu comportamento de homem que ficou preso no século XX para outra pessoa. — Faço uma pausa ao ficar de pé, lhe dando um olhar que o desafia a mandar eu sentar de novo. — Agora se me der licença…

     Começo a me virar, mas sua voz alcança meus ouvidos de novo:

— Eros concordou. E como eu disse, Kathryn, não foi um pedido.

     Fecho minhas mãos em punhos e saio do Inferno, deixando o Diabo para trás.

☠️

     — Você disse a Khalil que eu estava disponível para ser assistente pessoal dele? — pergunto a Eros ao literalmente invadir sua sala.

    Eros para de trabalhar no seu tablet e ergue os olhos para mim.

— Ele já falou com você, então.

    É verdade. Eu sei que Khalil não mentiria, seria baixo até para ele, mas uma parte de mim ainda esperava que ele estivesse blefando.

— "Falar"? Ele nem mesmo perguntou se eu queria. — Faz apenas um minuto desde que saí da sua sala então minha raiva ainda é muito recente. — E você ainda concordou com isso, sem falar comigo.

— Eu esqueci.

— Você esque-

    Calo a boca, respirando fundo e balanço a cabeça com incredulidade.

— Você esqueceu. Certo. Há quanto tempo vocês estavam me negociando? Porque isso não foi do dia para a noite, tenho certeza.

— Ele mencionou o assunto semana passada. — Para seu crédito, Eros parece arrependido. Eu não amoleço, no entanto.

    Anuo e cruzo os braços.

— Se você quer se livrar de mim, pelo menos tenha a decência de me contar.

— Porra, Kate. Eu não quero me livrar de você…

— Fica difícil de acreditar quando você me passa para seu irmão como se eu fosse um brinquedo. — Ok, talvez eu esteja exagerando, mas estou me sentindo traída aqui.

     Eros e eu nos encaramos. Quantas vezes discutimos ao longo dos anos? Muitas. E às vezes não acabava bem, mas alguém sempre cedia no final. Dessa vez, no entanto, não serei eu porque Eros sabe que errou ao não me contar. Ao me perguntar, na verdade, porque se eu tivesse sido consultada, eu negaria, assim como fiz com seu irmão.

— Raio de Sol, você… — Genevieve se interrompe abruptamente ao entrar na sala e nos encontrar assim. — Ah. Eu não queria interromper. Volto depois.

    Com a saída da sua noiva, Eros é o primeiro a desviar o olhar.

— Ok. Desculpe. Foi babaca da minha parte não consultar você. Sinto muito.

    Ele está sendo sincero, eu sei que sim, mas ainda estou magoada, apesar de me sentar em uma das cadeiras acolchoadas.

— Você ainda não me disse porque acha que isso é uma boa ideia. — Tiro meus pés dos saltos, reprimindo um suspiro de alívio. Estavam me matando desde que os calcei hoje de manhã.

— Khalil teve nove assistentes em três meses e apenas menos da metade ficou mais de duas semanas. Ele não chegou a dizer, mas isso o está incomodando, então quando ele pediu que você fosse assistente dele, eu achei que seria uma boa ideia porque vocês se conhecem…

— A gente se detesta.

— … e você sabe como lidar com ele. Além de mim, você é a única pessoa que não tem medo de ir contra ele em alguma coisa. Para ser sincero, até eu tenho, às vezes, porque parece que qualquer coisa que eu diga a ele vai causar uma reação errada.

    Eu sei disso e o entendo. Estive aqui durante todas as brigas dos dois nos últimos anos, permanecendo sempre do lado do meu melhor amigo.

— Não é porque eu bato de frente com seu irmão que isso significa que nos daremos bem trabalhando juntos! — Abro os braços, desesperada em como parece que só eu estou sendo racional aqui. — E não, não é infantilidade. É só que vocês são minha família e se as coisas não irem bem entre Khalil e eu, vai afetar tudo. Ou melhor, vai ficar ainda pior. Eu posso lidar com ele agora, mas e se eu nem tão acidentalmente cegá-lo quando o idiota me ofender pela milionésima vez? E eu realmente estou falando sério. Seu irmão desperta o pior de mim.

     Eros expressa diversão em seu olhar. É rápido, mas mesmo assim tenho vontade de atirar meu salto nele.

— Eu sei, mas acredito que vocês podem trabalhar nisso.

— Ele me ignorou por um ano, Eros — digo cansada. Eu preciso de um café. — Depois começaram as alfinetadas. Ele já expressou sua opinião várias vezes de que eu não sou da família. Como vou trabalhar com alguém que me despreza?

    Dessa vez, Eros hesita, seu rosto franzindo com preocupação. Eu posso estar louca, mas ele parece até… culpado.

— É culpa minha esse… comportamento dele.

    Sento-me ereta na cadeira.

— Como assim?

    Eros se recosta na poltrona, muito parecido com seu irmão, enquanto passa a mão no rosto, suspirando.

— Eu disse a ele para ficar longe de você.

— O quê? — acho que grito. Que porra é essa? — Quando?

— Quando te levei para o Natal logo após te contratar.

Por quê?

     Outro suspiro e um leve rubor em seu rosto bronzeado.

— Você tinha vinte e um anos, Kate. Tinha acabado de sair da cadeia. Tudo o que você menos precisava era do meu irmão mais velho fazendo de você mais uma na fila de pessoas que ele já havia seduzido e descartado.

— Ele não…

— Sim. Acredite, eu vi como ele estava olhando para você.

    Quero retrucar mais, mas eu estaria me fazendo de boba. Porque eu também vi a forma como Khalil me olhou. Eu lembro da sensação de sentir o meu corpo aquecido; do desejo. Foi a primeira vez que eu realmente desejei alguém daquele jeito. E ele apenas me olhou. Aqueles lindos olhos verdes esmeralda. Eu soube ali mesmo que aqueles olhos escondiam toda a obscuridade da sua alma.

    E eu quis que aquilo me consumisse.

    E me senti culpada porque aquele era o irmão do homem que havia me estendido a mão e me salvado. E ali estava eu, agradecendo-o ao desejar seu irmão.

    Mas a culpa rapidamente foi esquecida quando Khalil me ignorou no jantar e um ano inteiro depois disso. Cheguei a pensar que tudo foi imaginação minha, então deixei o assunto de lado enquanto caíamos em uma rotina de implicância e insultos.

    Porém, pelo que vejo, seu comportamento pode ter uma explicação.

— E ele te obedeceu? — pergunto finalmente, fingindo não estar pelo menos um pouco ofendida.

— Eu ameacei mandá-lo de volta para a reabilitação.

    Caio de volta na cadeira, descansando minha cabeça no encosto e olhando para o teto.

    Uma dor de cabeça começa a latejar na minha têmpora direita.

— Você sabe, eu podia cuidar de mim mesma.

— Meu irmão não é homem para você. — "Não é", ele diz, e não "Não era". Ou seja, sua opinião é a mesma de oito anos atrás.

— Certo, e você decide isso por quê…?

— Só estava tentando te proteger, Kate. Ainda estou. E se vocês tivessem se envolvido e não tivesse acabado bem? Mas anos se passaram e como você mesmo disse, vocês se detestam, por isso não estou preocupado que isso aconteça.

— Você está dizendo…

— Não foda com ele, Kate.

    Eu estou tão entorpecida pelos últimos acontecimentos que não consigo me sentir devidamente indignada pela sua intromissão, pelo seu pedido – ou isso foi uma ordem? Deus, eu quero gritar com ele por bancar o irmão superprotetor comigo, por ordenar e ameaçar o seu irmão para ficar longe de mim.  Isso é tão homem das cavernas. O que há com os irmãos Blackburn agindo como se estivessem presos em uma máquina do tempo? Tirando Anthony. Eu sei que ele nunca concordaria com isso. Por isso ele é o meu preferido, não esses dois idiotas estúpidos.

— Kate? — a voz de Eros é hesitante. Acho que estou muito tempo em silêncio.

— Você é um idiota superprotetor de merda. E eu estou furiosa com você, mas não tenho forças o suficiente para expressar, então apenas saiba que eu estou furiosa. Você acha que pode mandar na vida das pessoas assim com a justificativa de estar tentando proteger? E quer saber? Eu vou transar com o seu irmão se eu quiser porque você não manda em mim, então da próxima vez que você pensar em decidir o que é ou não melhor para mim, pense se você gosta de ter todas as  partes do seu corpo no lugar.

     Com isso, fico de pé, calçando meus saltos.

     Eros abre a boca, mas balanço a cabeça. Chega de conversa.

— Preciso preparar uns documentos.

    Não espero para ver se ele terá alguma reação e saio do seu escritório.

    Que déjà vu do caralho.

☠️

     A casa dos Blackburn é a minha segunda casa desde que eu parei de me sentir uma intrusa na família. Eles nunca me trataram como se eu fosse, mas às vezes não dava para ignorar aquele sentimento de estar atrapalhando, sabe? De alguma forma, Enrico e Carlota sabiam, porque sempre fizeram de tudo para me deixar confortável e me fazer sentir como um membro da  família.

     Eu tenho passado todos os Natais, Dia de Ação de Graça, feriados de quatro de julho, alguns aniversários e outros feriados aqui desde que não tenho família. Além do Jantar de Família às quartas-feiras – o motivo de eu estar aqui hoje.

— Olá — cantarolo, entrando na cozinha e sendo recebida pelo cheiro de comida. — Fui a primeira a chegar?

— Você é sempre a primeira a chegar, querida. — Carlota sorri para mim enquanto mexe em uma panela no fogão.

    Eu sempre achei ela uma mulher muito linda. Ela é negra, um pouco mais alta que eu, com seu cabelo crespo, agora trançado com várias tranças embutidas que terminam pela metade, deixando o resto solto e formando um black power. Fora sua beleza, ela é, além de tudo, forte e batalhadora. Uma inspiração para mim. Ela é mãe, ex-empresária – desde que fechou seu restaurante quando Enrico ficou doente – e uma cozinheira de mão cheia. Ela passou essa última parte para seus filhos e seu marido, aliás.

— Eu gosto de ser pontual. — Lhe dou um abraço e um beijo na bochecha. — Deus, isso é bolo de cereja? — Me afasto de Carlota e vou até a bancada onde Enrico está decorando o que definitivamente é um bolo de cereja. — Acabei de ganhar minha noite.

    Enrico dá risada, porque sabe que estou falando sério.

— Fiz aquela água saborizada que você gosta. Está na geladeira.

— Já disse que amo vocês hoje? — Também dou um beijo na bochecha de Enrico e corro pra geladeira, onde uma jarra de água saborizada está me esperando. Carlota me entrega um copo e eu ponho a água. — Maçã, cravo e canela — digo após sentir o cheiro. — Obrigada. É a minha preferida.

— Por nada, querida, apesar de eu não entender como você pode gostar dessas coisas. — Carlota faz uma careta quando eu tomo um gole da água. O gosto da maçã, do cravo e da canela enriquecem a minha língua. É leve e refrescante.

— Você aprende a gostar aos poucos. — Dou de ombros, mas não pareço convencê-la, o que me tira uma risada.

    Depois de conversar um pouco mais com eles, ambos me mandam para a sala para eu relaxar. Eu vou, principalmente porque meus pés ainda estão me matando. Eu estou de meias desde que tirei meus tênis na entrada, mas ainda doem. Na verdade, eu toda estou dolorida, com certeza por causa da… luta de ontem. Felizmente estou vestindo roupas casuais: legging rosa choque e um suéter cinza. Foram as roupas que eu deixei de reserva na academia. Para ser sincera, estou ainda mais dolorida porque passei a última uma hora e meia lá para… aliviar a tensão.

    Suspiro de prazer ao sentar no sofá macio da sala e beber mais um pouco da minha água. Minha dor de cabeça passou depois que tomei um remédio, mas obviamente ainda estou cansada. Carlota e Enrico devem ter percebido isso.

    O som da risada de Carlota e da voz de Enrico me alcançam na sala, mas ainda assim a casa está silenciosa para o padrão normal de quarta-feira a noite.

    Percebo que deve ser a primeira vez que estou sozinha e calma. De manhã, eu estava muito estressada por estar atrasada, então depois teve as conversas com Eros e Khalil e eu fiquei mais irritada até ir para a academia e socar alguns sacos de pancadas imaginando que eram os dois irmãos Blackburn idiotas.

    Mas agora, enquanto mais ninguém chega, me vejo repassando a noite de ontem. Me pergunto se realmente aconteceu, mas o corte em meu pescoço – que a gola do suéter misericordiosamente está escondendo – e as escoriações em meus antebraços e cotovelos são provas de que não estou louca.

    Então porque você não foi à polícia?

     Porra, eu não sei. Sei que tenho que ir, qualquer pessoa sabe e faria isso, mas…

     Não deveria ter um "mas".

    Tomo um longo gole de água, esperando clarear minha mente. Eu não faço ideia de quem ele seja. Talvez um louco qualquer em quem eu esbarrei e que decidiu que eu era sua presa. E aquela máscara…

    Você poderia ter tirado. Quando você o atacou de volta, você poderia ter tirado a máscara.

     Essa constatação me deixa congelada porque isso nem me passou pela cabeça. Agora faz parecer que eu não queria saber quem ele é, o que é totalmente mentira. Porque é óbvio que eu queria – quero – saber quem ele é.

     Tem certeza? Essa não foi a maior aventura que você teve em anos? Você não gostou da adrenalina? Nessas duas últimas noites, você estava tentando se distrair, sim, mas você sabia que ele estava lá. Você o sentiu lá, o provocou.

    Não. Eu não fiz nada disso. Eu não pedi pra ele me perseguir, me agarrar e me amedrontar. Eu não pedi por nada disso.

     Se quiser ficar mentindo para você mesma…

     Reviro os olhos, irritada comigo mesma. Talvez eu esteja louca. Quer dizer, acabei de passar alguns minutos discutindo e tentando convencer a mim mesma que não sou tão doente quanto aquele psicopata.

     Felizmente, ouço o barulho da fechadura quando a porta abre e alguns segundos depois a figura saltitante aparece.

— Tia Kate! Olha, eu trouxe o Hércules! — Freya está segurando uma bola de pelo branca com manchas pretas que está mais interessado em morder o seu dedo.

— Oi, querida. Oi, Hércules. — Pego o dálmata quando ela me entrega e ele se apressa em lamber meu rosto.

— Cuidado. Ele faz pipi na gente às vezes. Fede. É uma merda.

    Um pigarreio faz Freya pular e tapar a boca.

— Desculpe! — Ela diz ao seu pai e depois corre para a cozinha, seja para fugir do sermão sobre palavras feias ou porque quer ver seus avós.

— O Hércules gosta mesmo de você — Genevieve comenta ao sentar ao meu lado no sofá enquanto seu noivo segue para o caminho da cozinha.

— Ele é um bom rapaz, não é, Hércules? — Beijo sua cabeça peluda, lhe fazendo carinho.

    Fico entretida com o cachorro por alguns momentos, mas não posso mais ignorar o olhar de Genevieve em mim.

— Fala logo — digo então.

— Ele é um idiota. Não há dúvidas, mas ele te ama e só quer te proteger.

— Ok. Retiro o que eu disse. Não quero ouvir você repetir o que ele já me falou.

     Pelo seu silêncio, sei que ela está contemplando, mas por fim, ela suspira.

— Tudo bem. — Faz uma pausa. — Como você está? A gente não se falou direito desde aquele dia.

     Sim, aquele dia. Meu outro problema e o motivo de eu ter precisado de distração pra começar.

     Tentei ao máximo não pensar nisso e ignorar aquela lembrança ou o que quer que seja, mas não posso fazer isso para sempre.

— Eu… Eu não tenho memórias da minha infância, pelo menos até os meus seis ou sete, não sei direito.

    Genevieve inclina a cabeça para o lado, fazendo sua trança deslizar pelo seu ombro.

— Ok…

— Pois é, eu sei que é um pouco incomum. — Sorrio para Hércules que finalmente parou de me cheirar e se acomodou em meu colo. — Mas eu lembrei de algo naquele dia. Eu não sei… Eu ouvi você gritando e então em um momento eu estava ali e no outro eu estava em um tipo de transe com um flashback bizarro.

     Conto tudo a ela, a "memória" que eu venho revivendo sempre que fecho os olhos e que me persegue em meu sono, me fazendo acordar suando frio com lembranças de uma desconhecida e de sangue. Muito sangue. Na primeira noite, eu acordei tão assustada que achei que meu próprio suor era sangue e mesmo quando acendi o abajur e vi que não era, tomei um banho só para ter certeza.

    Então, sim, há alguma chance de eu estar enlouquecendo.

— Eu nem sei o que dizer… — Genevieve parece horrorizada. — Sua mãe… A que te criou, ela nunca mencionou nada?

— Não. Desde que me lembro, sempre fomos apenas nós duas e ela nunca mencionou que eu podia ser adotada ou meus possíveis pais biológicos. — Balanço a cabeça porque isso tudo parece um absurdo. — Eu não sei o que fazer.

— Já pensou em hipnose? Dizem que é seguro. Você pode lembrar de… todo o resto. Eu obviamente não sou médica, mas talvez você, sei lá, bloqueou sua memória depois de um evento traumático, que no caso seria a morte da sua mãe biológica. Faria todo sentido, né?

     Penso sobre isso. Eu tinha, o quê, seis anos? Ver a morte da própria mãe seria traumático para qualquer um e eu já vi histórias de pessoas que bloquearam a memória para se proteger.

— Faz, sim. Talvez eu tente a hipnose. Eu não sei… Não sei se quero lembrar. — É irônico porque passei minha vida toda querendo entender qual o problema comigo por não ter lembranças da infância como todo mundo e quando finalmente lembro de algo, quero ignorar.

— É um direito seu. Imagino que deve ser muito difícil. — Ela pega minha mão e dá um aperto. — Mas vou estar aqui se quiser seguir com isso ou não.

— Eu sei, obrigada. Vou pensar no que vou fazer e te conto.

— Ok.

    Nessa hora, a porta volta a abrir e nós ouvimos a voz de Anthony.

— Você tá falando sério? Como O Senhor dos Anéis pode ser melhor que Game Of Thrones, cara? Meu Deus, não acredito que sou seu irmão.

— Não de sangue — é a voz baixa de Khalil.

— Babaca.

     Os dois surgem na sala, então. Anthony tem uma expressão descontraída, vestindo roupas casuais, enquanto seu irmão está com a habitual e saturada roupa preta. Às vezes eu acho que ele só tem essas roupas.

— Boa noite, senhoritas. Como vocês estão? — Anthony pergunta, vindo até nós e dando um beijo na mão de cada uma.

— Eu estou bem. E você? — Genevieve pergunta de volta.

— Por que você está todo galante? — pergunto ao mesmo tempo.

— Sabia que me pergunto isso há vinte e seis anos? É um mistério da vida. E eu estou bem, querida cunhada. — Com isso, ele se joga entre nós duas e Genevieve é forçada a chegar para o lado para dar espaço para o corpo dele. Anthony apoia os braços no encosto atrás de nós.

— De onde veio isso. — Cutuco seu abdômen e os gominhos escondidos embaixo da sua camisa visivelmente apertada. Ele está ficando mais musculoso com o passar do tempo.

— O quê? Meu corpo sarado? Eu nasci gostoso, querida. — Ele pisca um olho para mim e eu bufo uma risada.

     Nós continuamos conversando e eu finjo que não há outro Blackburn aqui na sala, como ele fez comigo por anos. Sou uma boa aprendiz, aparentemente.

     Volto minha atenção para a conversa entre Genevieve e Anthony quando o último pega Hércules do meu colo. Ele estava cochilando e começa a rosnar. 

— Ele não gosta de ser acordado, idiota. — Pego Hércules de volta. — Desculpe, garoto. Seu tio é mal educado.

— Chata. Vocês não deveriam…

— Mas o que… — grito quando sinto algo quente no meu suéter. — Droga, Hércules.

    O cão apenas late, nenhum pouco incomodado que acabou de mijar em mim.

— Bem feito. Ninguém mandou mimar o carinha aí — Anthony aponta enquanto Genevieve tenta não rir. Traidores.

     Passo Hércules para Anthony e levanto, fazendo uma careta para a mancha escura e fedida.

     Me apresso para ir ao banheiro, que é no andar de cima.

    Assim que entro, fecho a porta e tiro meu suéter. Eu gostava tanto dele. É quentinho e fofo, mas agora fede a xixi.

    Droga, Hércules.

    Não há jeito de eu voltar a usar isso.

    Pego uma toalha no armário e molho um pouco antes de passar na minha barriga. Vou lavar a toalha depois, é claro, assim como o meu suéter.

    No entanto, meu maior problema é não ter uma camisa. Estou indo abrir a porta para gritar para Genevieve pegar uma para mim no quarto que tenho aqui, quando a porta é aberta.

    E não é Genevieve quem entra no banheiro.

☠️

MEU DEUS COMO EU SOU CADELINHA DO KHALIL.

KSKSKSKSKKSKSKSKSKK. Se esse homem mandasse eu sentar eu ia sentar é no colo dele🙌🏽🙏🏼🤭😏.

Foi o capítulo mais longo até agr e espero que tenham gostado♥️.

Capítulo agora só terça-feira mesmo (a n ser que eu tenha uma crise de generosidade♥️.

Até <3☠️

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2bjs, môres♥

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