﹙ⲁ﹚ capítulo dois ─── sinais de um (possível) arrependimento.
N
o caminho para o casarão, eu estava um pouco atrás deles. Uma das minhas mãos segurava firme a alça da mochila, os dedos apertando com força. A outra mão, solta, tremia levemente, sem motivo aparente. À minha frente, Shanyqua caminhava ao lado de Lila, enquanto Nath, Jorel e Leandro seguiam mais à frente. Ricardo estava ainda mais adiantado, carregando todas as malas como se aquilo fosse um tipo de desafio pessoal.
Quando finalmente estávamos proximos do casarão, paramos ao ver um pequeno panfleto dobrado sobre o chão. A garota de laços se agachou para pegá-lo, desdobrando-o com curiosidade. Assim que o papel se abriu, o careca loiro - Ricardo - fez uma expressão de surpresa, como se tivesse descoberto algo inesperado.
──── Acampamento Lua da... O que é isso aqui, gente? ──── Ela leu em voz alta enquanto virava o papel, revelando que se tratava de um mapa. ──── Isso aqui vai ser útil!
Hesitante, me aproximei dela. Bem, talvez em três ou quatro dias que eu passei fora do acampamento, algo tenha mudado para que esse mapa agora esteja aqui. Fiquei ao lado de Nath, mantendo uma distância suficiente para não causar desconforto.
──── Espera, a gente alugou isso tudo? ──── Jorel perguntou, quase colando o rosto no papel, antes de levantar o olhar para Nath.
──── Sim! ──── A empolgação dela era óbvia no sorriso e no tom da voz. Eu apenas sorri de leve, sem realmente achar graça.
O que me incomodava era outra coisa. Como Jorel, de todos os seres, conseguiu alugar algo assim sem sequer verificar o lugar antes de trazer todo mundo? Uma decisão dessas só podia ser o prenúncio de mais problemas. Mas Jorel era assim, o próprio problema.
──── E como você alugou isso sem conhecer antes? ──── perguntei, desviando o olhar do mapa para encará-lo diretamente.
Jorel apenas me olhou de volta, mordendo o interior da bochecha como se estivesse tentando encontrar uma resposta.
──── Sei lá ──── resmungou, dando de ombros. Mas sua expressão mudou ao perceber os olhares confusos - ou impacientes - de todos. ──── Mas vai ser irado!
Nath virou o mapa para nós, exibindo-o como se fosse a solução para tudo.
──── Olha, gente, é um mapa! ──── exclamou, levantando-o no ar, animada.
E Jorel com um sorriso convencido, apontou para todos nós.
──── Gente, anoiteceu... pique-esconde! ──── propôs, as mãos levantadas como se tivesse acabado de inventar a ideia mais genial do mundo. Eu já sentia a irritação crescendo.
──── Deixa eu ver ──── pediu Lila, aproximando-se com curiosidade e estendendo a mão. Nath entregou o mapa sem hesitar. Lila o analisou por alguns segundos antes de comentar: ──── Nossa, esse lugar é enorme!
──── Vocês não viram o lago? Lá é gigantesco. ──── Acrescentei, quase em um sussurro.
Lila me lançou um olhar de canto, seus olhos brilhando com algo que parecia admiração.
──── Você deve conhecer esse lugar como ninguém, né? ──── disse ela.
Sorri de leve, mas senti minhas bochechas queimarem. Nunca fui muito sociável. Talvez fosse esse um dos motivos do meu afastamento. Estar ali com todos, mesmo depois de tudo, ainda era estranho. Ainda mais sabendo o que aconteceu. Saber que nunca me perdoaria pelo que fiz.
A voz de Nath me tirou dos pensamentos.
──── O dinheiro do papai ajudou muito. ──── Ela disse casualmente, cruzando os braços como se aquilo explicasse tudo.
Revirei os olhos, cruzando meus próprios braços em um gesto involuntário. Parte de mim amava metade desse grupo. A outra parte? Nem tanto.
──── Gente, que porra de "dinheiro do papai"? Por que vocês não alugaram um lugar menor? Dava pra economizar! ──── Shany reclamou, sua voz carregada de irritação e um toque de desespero. Eu odiava o fato de ninguém dar ouvidos a ela.
Um detalhe que me veio à mente enquanto ouvia a discussão: na cabana anterior, Leandro e eu encontramos algumas balas - de arma, quero dizer. Ele as guardou no bolso, dizendo que poderiam ser úteis. Se ele realmente tivesse uma arma, talvez fosse.
Suspirei. Eu só queria ir embora e passar o Natal com meus avós. Mas ali estava eu, no meio do nada, sem nenhuma chance de retorno imediato.
──── A gente viajou três horas. Era só ter pago um Airbnb ──── apontou Leandro, sua impaciência começando a transparecer.
──── Exatamente! ──── concordamos eu e Shany ao mesmo tempo.
Pensar que eu tinha pago três Ubers para chegar até aqui só aumentava o meu cansaço.
De repente, Jorel resolveu abrir a boca de novo, com sua usual falta de noção.
──── Qual foi a coisa mais legal que vocês já fizeram na vida? ──── perguntou, seu tom levemente sarcástico.
Shany estreitou os olhos, enquanto Nath parecia confusa com a pergunta repentina.
──── O quê? ──── A de tranças questionou, como se não tivesse entendido.
Jorel repetiu a pergunta, mas eu e Shany permanecemos em silêncio. Eu revirei os olhos novamente, já cansada da sua insistência.
- Pensaram demais. Vamos viver! ──── concluiu ele, com um sorriso satisfeito, como se tivesse acabado de nos dar a chave para a felicidade.
Eu só conseguia pensar que o caos estava prestes a começar.
──── Eu sou pobre, cara. Vivi pouca coisa! ──── Shany murmurou, gesticulando com uma mistura de desconforto e resignação. Eu revirei os olhos, mas não por causa dela, e sim pela completa falta de noção de Jorel.
Às vezes, parecia mesmo que ele fazia questão de ser o centro das atenções, sempre com suas ideias e atitudes questionáveis. Mas sejamos honestos: como alguém aluga um acampamento sem nem saber como ele é por dentro? Como ele sequer conseguiu essa façanha? Era inacreditável.
Tinha que ser muito, mas muito burro para achar que isso ia acabar bem.
Eu deveria ter dado um jeito de ir embora quando ainda tinha a chance. Pelo menos, teria poupado a mim mesma o desgaste de lidar com as consequências das idiotices dele.
Enquanto todos ainda conversavam, já perto de decidirem finalmente subir e entrar no casarão, percebi Jorel se aproximando de Ricardo. Este último parecia exausto de carregar todas aquelas malas, mesmo que, para ele, isso fosse algo tão corriqueiro quanto respirar.
Jorel, claro, parecia querer aprontar. Ele se aproximou com um sorriso travesso, pronto para empurrar Ricardo, mas o movimento mal começou e já foi interrompido. Ricardo virou o rosto quase imediatamente, erguendo uma sobrancelha, confuso.
──── O que você tá fazendo? ──── perguntou, o encarando com a mesma expressão de alguém que não tem paciência para brincadeiras.
──── Braço quebrado. Sabe como é, né? ──── Jorel deu de ombros, recuando com um sorriso despretensioso.
Nath riu, e, para minha surpresa (e desgosto), uma risada escapou de mim também. Não consegui evitar.
Foi então que percebi os olhos dele em mim. O olhar de Jorel parecia queimar em silêncio, fixo por tempo demais. Um sorriso pequeno e quase imperceptível cruzou seus lábios finos.
Eu congelei, sem reação. Tudo o que consegui fazer foi devolver um sorriso torto, completamente sem jeito.
A sensação que me atingiu foi desconfortavelmente familiar, trazendo uma onda de nostalgia que eu preferia não reviver.
Eu não quero sentir isso. Não de novo.
A primeira a abrir a porta foi Nath. Contudo, seu rosto rapidamente se contorceu em uma expressão de confusão ao perceber que a porta já estava aberta.
──── Gente, já tá aberto! ──── ela avisou, virando-se para nos encarar com uma mistura de surpresa e preocupação.
──── O que é muito estranho. Por que precisaríamos de uma chave se já está aberto? ──── Lila questionou, sua voz carregando um tom de suspeita. Concordei com um leve aceno de cabeça. Ela tinha razão, era estranho.
──── Eu não sei ──── Jorel respondeu na defensiva, levantando as mãos como se isso bastasse para encerrar o assunto.
──── Talvez alguém já tenha entrado aqui antes ──── Leandro sugeriu com um dar de ombros, como se isso fosse a coisa mais normal do mundo.
──── Limpar, né? ──── Nath disse, tentando parecer prática. Leandro, com seu mullet desalinhado, apenas concordou com um aceno curto, os braços cruzados como de costume.
Leandro ergueu uma sobrancelha, desconfiado, antes de se virar para Jorel.
──── Essa é a casa que você alugou? ────
Jorel, sem perder tempo, rebateu:
──── Cara... eu aluguei! ──── O tom exagerado dele fez ecoar pelo hall. Visivelmente nervoso.
Eu resmunguei baixinho e decidi não prolongar a conversa inútil. Entrei no casarão, ignorando-os enquanto deixava minha mochila pesada em cima de uma mesa próxima. Meus ombros, finalmente livres, agradeceram.
Logo depois, Leandro também entrou, deixando Jorel tagarelando sozinho na porta. O resto do grupo veio logo atrás, suas vozes se misturando em murmúrios de curiosidade enquanto olhavam ao redor.
Assim que meus olhos se ajustaram ao ambiente, notei a iluminação alaranjada que preenchia o espaço, lançando uma luz acolhedora sobre tudo. As paredes de madeira polida, o piso impecável, os móveis com tons leves que lembravam a primavera - era tudo incrivelmente limpo e organizado. Um aroma suave pairava no ar, algo agradável, mas indescritível.
Shanyqua começou a caminhar em direção à sala de jantar, que também dava acesso à cozinha, acompanhada por Lila. Eu fui logo atrás, mas antes peguei minha mochila. Não ia correr o risco de deixá-la largada por aí. Vai saber, né?
Shany ficou pela sala de estar, já que todos concordaram em explorar a casa com calma. A ideia era conhecê-la melhor e garantir que estava segura para passarmos a noite.
Lila seguiu para a cozinha, e decidi ir junto. Não fazia sentido ficar parada, apenas observando.
No entanto, no meio do caminho, meus pés congelaram no lugar assim que ouvi a voz de Shanyqua. Instintivamente, girei os calcanhares, confusa, e caminhei até onde ela estava. Parei ao lado da garota de tranças, tentando entender o que havia chamado tanto minha atenção.
──── Desaparecimento de estudante intriga a polícia: o sumiço da jovem Regiane Jorge, de 21 anos, na região do Parque Ecológico Hadoque... ────
A voz de Shanyqua, que lia em voz alta o que estava escrito no jornal, ecoava pela sala. A cada palavra, meu coração disparava como se quisesse escapar do peito. Um gosto metálico invadiu minha boca, embora eu não tivesse nenhum motivo aparente para sentir isso.
Era como se algo no fundo da minha mente tentasse emergir, mas eu não conseguia alcançar. Uma lembrança perdida, talvez.
Sentia algo diferente, perturbador. Cresci assistindo a canais de notícias e programas sobre crimes, fascinada pelas histórias e investigações. Mas agora parecia... errado. Como se, de repente, a linha entre o espectador e a vítima tivesse sido borrada.
──── Isso é bizarro... ──── Minha voz saiu trêmula, bem diferente do que eu planejava. ──── Pra Caralho.
Lila, que até então estava ocupada tentando organizar as comidas na cozinha, se virou para Shanyqua, com uma expressão de curiosidade e apreensão no rosto.
──── Amigas, isso é muito estranho ──── A mística falou, o tom de apreensão claro em sua voz. Eu a encarei, tensa. ──── Não fica sozinha nessa casa.
Cruzei os braços, nervosa, dando alguns passos para trás.
──── É o seguinte: a gente vai morrer, então precisamos sair daqui... agora ──── Shanyqua avisou, sua voz firme enquanto encarava todos ao redor. Bem, agora Leandro também estava lá.
Shanyqua havia lido aquele jornal tão alto que até os quadros religiosos provavelmente ouviram.
Meu olhar percorreu o ambiente, até que focou na cozinha. Inclinei ligeiramente a cabeça ao notar a geladeira caída no chão. Instintivamente, cutuquei Lila, que estava um passo à frente de mim.
──── Ei, Lila, se liga ──── Apontando para a geladeira assim que consegui chamar sua atenção.
──── Gente... a geladeira não tá normal ──── Lila chamou a atenção de todos, observando a geladeira com uma expressão estranha.
──── Eu acho que é a arquitetura do lugar ──── Foi a vez de Leandro falar, tentando parecer racional.
──── Não faz sentido uma arquitetura derrubar uma geladeira! ────
Lila respondeu como se fosse óbvio, apontando exageradamente para a geladeira.
Eu já não estava mais prestando atenção naquela conversa. Me afastei, ajeitando a mochila no ombro enquanto caminhava.
Na sala de estar, parei assim que vi Nath e Jorel conversando.
──── Eu não queria incomodar seus amigos, mano. Acho que eles não estão gostando de mim ──── Ele falou, e embora eu não tenha conseguido identificar o tom de sua voz, não tive coragem de me aproximar. Fiquei apenas parada no caminho, ouvindo de longe.
──── A Ariella realmente não vai com a sua cara... mas fica um pouco mais na sua, e calmo ──── Nath tentou tranquilizá-lo, colocando a mão no ombro livre de Jorel.
──── Mas ela, eu até entendo. Depois do que eu disse pra ela depois do show, até eu me odiaria... mas ela também não é inocente... ────
Ele continuaria, se não fosse pelo barulho alto que eu fiz ao pisar em uma tábua de madeira.
──── Vai se foder! ──── Resmunguei baixo, olhando para o chão, mortificada com a distração.
──── Ariella? ──── Nath me encarou, confusa, com um tom quase acusador.
Eu tinha o dom de sempre arruinar tudo.
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