𝟎𝟗. SUSPEITO
TRABALHAR COM Stefan não era ruim como eu estava imaginando no começo, na verdade é muito pior do que minha imaginação poderia supor.
Respirei fundo antes de entrar no laboratório naquela manhã. Já fazem três dias desta parceria e ela continua tão insuportável quanto no primeiro segundo. Stefan já estava trabalhando e não fez nenhuma menção de falar comigo, isso definitivamente não é um problema para mim. Caminhei em igual silêncio até a bancada e apanhei meu jaleco, vestindo-o em seguida. Me sentei no local de sempre e apanhei a chave no bolso de minha calça para destrancar a pequena gaveta onde guardo o caderno. Assim que o tinha em mãos comecei a anotar tudo o que havíamos feito no dia anterior.
Alguns minutos se passaram até que eu me desse conta de uma estranha sensação de estar sendo observada. Pelo canto dos olhos, percebi que o homem estava com seus olhos fixos em mim, atentos a tudo o que eu estava fazendo. Eu sabia que ele estava aqui para me vigiar na mais suave das hipóteses, mas imaginei que ele seria um pouco mais sútil. É impossível não me sentir desconfortável.
— Qual era nossa segunda regra? – Questionei, olhando para ele através das lentes grossas dos meus óculos e me referindo a regra de não olhar.
— Eu não estaria olhando se tivesse me dado alguma tarefa – Ele zombou cruzando os braços. Eu revirei os olhos.
— Você nunca seguiu minhas ordens e agora quer que eu lhe diga o que fazer? Acho que tem plena capacidade para fazer isso sozinho.
Foi a vez dele de revirar os olhos:
— Vamos trabalhar juntos agora, doutora, acho que devemos nos esforçar para manter nossa convivência civilizada e nos darmos bem.
— Civilidade é o máximo que terá de mim, não espere que possamos nos dar bem, isso nunca vai acontecer.
— Por quê diz isso com tanta certeza?
— Você ainda me pergunta? – Eu o questionei indignada com sua ousadia em fingir que não havia nada acontecendo. – Você nunca me respeitou dentro do meu próprio laboratório, você traiu minha confiança, agiu como um maldito...
— Você não me conhece – Ele me cortou, seu tom muito mais controlado que o meu. – Não sabe quem eu sou.
— Eu sei exatamente o tipo de pessoa que você é, isso é o suficiente para mim – Ergui meu queixo, meu rosto se transformando em uma expressão de desprezo. – Não quero nenhum tipo de relação com você.
— Está envolvida com pessoas muito piores do que eu, doutora.
Ergui uma sobrancelha e o encarei atenta.
— O que você está insinuando?
Ele se levantou e balançou a cabeça, pude ver em seus olhos que ele estava prestes a desviar do assunto. Também fiquei de pé, determinada a não permitir sua esquiva. Suas palavras me geraram questionamentos e agora que ele começou, ele vai terminar.
— Não importa.
— Não... você começou, agora diga. O que quer dizer com isso? O que tem com essas pessoas que eu ainda não descobri? – Questionei firmemente. Stefan suspirou.
— Se está tão interessada então investigue você mesma, eu já falei o bastante, aliás, não pense que irei me comprometer por sua causa.
Ao dizer isso, ele deixou o laboratório.
ESTÁVAMOS TODOS DE VOLTA àquela sala horrível. Com certeza um dos meus maiores esforços era controlar meu estômago e não vomitar. Eu odeio esse lugar e tudo sobre ele. Simplesmente entrar aqui já é o suficiente para acabar com a maior parte do meu autocontrole.
A máquina estava sendo calibrada para mais uma bateria, é tudo uma preparação para o procedimento cirúrgico que ocorrerá em breve, finalizando o experimento. Se essa cirurgia acontecer será o fim dele, de quem ele um dia já foi, sem nenhuma chance de recuperação ou reversão. A pior parte de tudo isso é que quem deverá fazer esta cirugia sou eu. Sou a única com o conhecimento, eu o criei.
Não vou permitir que isso me tire o foco. Empurrei os pensamentos perturbadores para o fundo de minha mente e voltei minha atenção para o equipamento. A movimentação na entrada anunciou que Fuchs estava chegando trazendo James consigo, além de Stefan e outros agentes. O comportamento de Stefan está exatamente como sempre foi, mas não consigo tirar aquela conversa esquisita da minha cabeça. Por que ele disse aquelas coisas? E o mais estranho ainda foi a forma como ele falou.
Ele não me olhou quando entrou, mas agia normalmente, para mim foi uma satisfação ignorá-lo por completo. Minha atenção se voltou para James e seu rosto inexpressivo, ele se deitou obediente na maca e teve seu braço de metal removido antes que suas pernas e peito fossem presos com grossas tiras de couro. Eu me aproximei com o protetor bucal e ele não precisou de qualquer ordem ou instrução para abrir sua boca e abocanhar o protetor. A maneira como ele conhece tão bem cada passo desse processo faz meu peito doer. Recuei até a maquina e fiquei ao lado de Stefan que também já estava alí segurando sua prancheta.
Os segundos antes que tivéssemos permissão para começar pareceram durar uma eternidade. Assim que foi autorizado, envolvi meus dedos entorno da alavanca e a puxei. Diferente das vezes anteriores, mantive minha expressão profundamente neutra, nada de cerrar os lábios ou fechar os olhos. Me mantive firme cada maldito segundo, mesmo que quisesse gritar, não o fiz. Analisei James e ele estava se mantendo forte. Olhei brevemente para a tela da máquina:
— Nenhuma alteração – Anunciei.
— Desligue – Fuchs mandou em seu tom inexpressivo.
Por uma breve fração de segundo, tive uma troca de olhares curiosa com Stefan, ambos confusos com a instrução. Sem debater, prontamente obedeci. Me voltei para Fuchs e assisti enquanto o mesmo tirava algo de dentro do bolso interno de seu casaco de tweed. Olhei atentamente e identifiquei como um caderno... parecia com o meu diário de anotações.
O caderno tem a capa vermelha e uma estrela preta no centro. Franzi minhas sobrancelhas ao ver aquilo, eu nunca havia visto aquele caderno antes, porém... James sim. Sua reação foi imediata, ele não se moveu, mas seus olhos demonstram algo parecido com medo, isto era claro como água.
— Eu tive uma idéia, algo que pode nos ajudarr.
Falou, seu sotaque alemão se acentuou na última palavra e fazendo meu corpo inteiro se arrepiar com mau pressentimento.
Fuchs abriu o caderno e foleou algumas páginas, até parar em uma específica. Ele pigarreou e então começou a pronunciar palavra por palavra em alemão. Eu não sou nada boa em alemão, mas conheço algumas coisas, cheguei a pensar que eu estava entendendo errado as palavras que ele dizia, mas elas não tinham qualquer conexão umas com as outras.
"Saudade, enferrujado, dezessete, aurora, forno, nove, benigno, volta para casa, um, vagão de carga."
De repente, percebi a mudança brusca de James. Seus olhos endureceram assim como todo o restante de seu corpo que se tornou rígido. Fuchs se voltou para mim:
— Ligue novamente. Na potência máxima.
Senti que estava assentindo com a cabeça, mas o movimento foi puramente mecânico. Me virei para a máquina e liguei o equipamento.
Assim que a maquina foi ligada, algo aconteceu. Antes não ocorria nenhuma mudança significativa nos parâmetros... quase como se James estivesse resistindo, mas agora ele não estava mais. Áreas de seu cérebro onde não havia qualquer sinal de função estava acendendo como uma árvore de natal.
— Alterações registradas no córtex temporal esquerdo e córtex pré-frontal.
Stefan anunciou, seus olhos grudados no monitor.
— Áreas relacionadas a dor – Murmurei. – Óbvio.
— E o sistema límbico – Ele indicou.
Modelação de comportamento e memórias emocionais. Oh, meu Deus...!
James já está programado, só não permanentemente. Ele precisa de ativação e é para isso que aquelas palavras servem. Fuchs quer manter ele para sempre desse jeito, sem a necessidade de palavras de ativação. Ele quer transformar James no Soldado Invernal em tempo integral.
— É suficiente – Anunciei. Por hoje àquilo era o bastante. – Parabéns equipe. Temos o que precisávamos.
Olhei de canto para James enquanto desligava todos os equipamentos. Ele estava em silencio e inexpressivo.
Meus olhos se moveram para o bolso do jaleco de Fuchs, onde eu sabia que estava o caderno vermelho.
Eu sabia que existia algo... eu sabia. Nele deve conter todas as informações que preciso sobre James e assim eu poderei reverter o que fizeram com ele. Se eu conhecê-lo bem, se eu souber quem ele é, poderei criar palavras-chave em oposição as que eles usam aqui para ativar o Soldado.
Stefan se aproximou e soltou as amarras que seguravam James no lugar. Eu dei as costas para todos e comecei a me livrar das luvas e jaleco. Minha cabeça estava trabalhando rápido demais, eu estava pensando a respeito de tudo, e, principalmente, a respeito daquele caderno.
Senti uma mão em meu ombro. Era Fuchs.
— Gostei do que vi hoje. Se continuar assim, terá um futuro brilhante.
Ele tirou sua mão e deixou a sala. Ele não me deu tempo de responder, e eu nem sei se iria responder. Eu estou com nojo demais para isso.
DURANTE O CAMINHO de volta ao meu dormitório, já tarde da noite, estava cruzando um corredor deserto quando escutei algo no mínimo suspeito.
Era a voz de Stefan, estava baixa e ele parecia estar falando com alguém em segredo. Parei onde estava e tentei ouvir melhor, mas ele falava baixo demais, me aproximei lentamente e espiei pelo canto do corredor... ele estava sozinho.
Isso elevou aínda mais as minhas suspeitas, agora ele já não falava mais e pelo que conseguia ver suas mãos estavam fazias. O homem olhou de um lado a outro no corredor, como se de alguma forma tivesse percebido que estava sendo observado. Rapidamente recuei e me escondi atrás da parede, prendendo a respiração para ficar o mais silenciosa possível. Escutei passos e percebi que estava chegando mais perto.
Foi quando alguém o chamou, alguém que veio por ordem de Fuchs. Isso é ainda mais estranho. Os passos recuaram, ele estava se afastando e então sumindo no corredor, soltei o ar com alívio.
Agora, mais do que nunca, posso ver o quão suspeito Stefan parece. Talvez eu deva descobrir um pouco mais sobre ele.
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