𝟎𝟒. NÃO CONFIE NELES

É COMO SE não pudesse confiar em ninguém.

Conforme alguns dias passam e as pesquisas evoluem, cada etapa do experimento avança com passos largos. Ao mesmo tempo em que sinto um grande sentimento de satisfação ao ver meu trabalho que por muitos anos foi apenas teórico ganhar forma, também tenho uma persistente sensação de que existe algum tipo de cerco se fechando. Quanto mais penso a respeito, mais me sentido paranóica.

Mais uma noite onde permaneço até tarde no laboratório. Estou sozinha e, mais uma vez, preciso afastar os pensamentos problemáticos que insistem em assolar minha mente. Após esses últimos dias sendo residente do complexo e trabalhando nessas salas, é como se essas paredes cinzas e as brancas estéreis, todas as portas de metal constantemente lacradas e os corredores que estão a todo instante reverberando sons de passos, se tornam fantasmas assombrando nossas cabeças.

Torno a me concentrar no trabalho, correndo para concluir a tarefa e enfim descansar. Estou finalizando um relatório diário. Penso com um pouco mais de empolgação que o dia de hoje foi consideravelmente produtivo, temos avançado e eu percebo que apesar de ainda não gostarem de receber ordens de uma mulher, ainda mais de uma estrangeira, meus companheiros de laboratório passaram a acatar melhor tudo o que digo.

Já está tarde. Estou sozinha no centro de pesquisa, novamente, e minha bancada é a única que permanece iluminada. Finalizo o relatório e o guardo na gaveta do armário de arquivos.

Apago a luz da bancada, não retiro os óculos ou o jaleco, estou exausta demais para isso. Apenas deixo o laboratório e caminho roboticamente através dos corredores em direção ao meu quarto. Por alguma razão, talvez pela exaustão, devo ter virado no corredor errado, ou deixado passar a saída, afinal todos os corredores são exatamente iguais, acabei em uma área que desconheço. Eram mais vazia do que qualquer outro local do complexo o qual eu já estive.
Comecei a voltar, dobrei uma esquina e meus pés pararam imediatamente, quase tropeço para trás ao me deparar com a figura alta e trajada totalmente de preto, o braço de metal reluzindo na pouca luz do corredor.

Eu não ouvi seus passos, ou ele é muito silencioso ou eu estou no limite da distração. Como não notei sua aproximação?

- Boa noite... - Pronuncio uma saudação breve, meu tom de voz sendo moderado. Apesar da surpresa, eu não estava com medo, então precisava demonstrar certa segurança.

O homem usa uma máscara, mas seus olhos são visíveis através das manchas escuras pintadas na pele e os cabelos negros que emolduram seu rosto. Ele não me respondeu, então eu ergui meu rosto, assim como todo o resto do meu corpo, assumindo uma postura rígida.

- Eu já o vi antes - Prossegui, acrescentando: - Saíndo da sala do Fuchs.

Notei um brilho cruzar os olhos azuis gelidos dele como lâminas de uma faca afiada.
Dou um sorriso.

- O gato comeu sua lingua? - Perguntei, minha intenção era soar agradavelmente provocativa. Não tenho muita prática com interações sociais, mas tenho quase certeza de que ele também não. Sei que ele não é provavelmente a melhor escolha para treinar habilidades sociais, mas o que eu poderia fazer quando o homem esta literalmente na minha frente?

Ele não me responde, mas eu sei que ele está me ouvindo, eu sei disso, posso ver os cantos de seus olhos se enrugarem levemente. Se seu rosto não estivesse quase totalmente coberto, eu teria certeza de que ele estava sorrindo.

De repente o ar pareceu mudar, assim como os olhos dele também pareceram endurecer como pedras de gelo. Passos ecoaram através do corredor vindos de trás dele, e ao tentar olhar por cima de seu ombro fui capaz de enxergar uma placa que dizia: ÁREA RESTRITA.

Pouco atrás desta placa haviam uma porta com grades, provavelmente foi daquela porta que ele veio.

- O quê...? - Comecei, mas fui interrompida pelo homem que segurou meu cotovelo com certa força e me puxou consigo para longe daquele local.

Os passos ecoavam cada vez mais alto, mas eu estava sendo guiada para longe deles. Entramos em um corredor escuro e fui prensada levemente contra a parede pelo corpo dele. Os passos pararam por um momento, pelo que posso perceber estão exatamente no meio do corredor onde estávamos parados anteriormente. Alguns murmurios se seguiram e então palavras curtas de concordância foram emitidas. Notei que a primeira voz era a do Dr.Fuchs.

Ergui os olhos para o homem que estava diante de mim, ele estava me olhando fixamente, um sinal mudo para que eu ficasse calada e não fizesse movimentos bruscos. Os passos se afastaram, foram para o lado oposto ao nosso, em seguida pude ouvir o som de portas de metal serem arrastadas e então fechadas.
Eles se foram.

- Era o Fuchs... - Comecei em tom baixo. O homem puxou a máscara que ocultava parte do seu rosto, revelando-o por completo.

Engasguei quando vi seu rosto pela primeira vez, eu iria começar a tossir, mas ele tampou minha boca.

- Não - Foi apenas um murmurio, quase um sopro por baixa da respiração. Sua voz é baixa e grave. Assenti com a cabeça, sinalizando que havia compreendido.

- Ok, desculpe - Também sussurro. - Mas por que foi necessário que nos escondessemos?

Ele apertou os olhos, por um momento foi como se ele estivesse sentindo dor, ou estivesse travando uma árdua batalha interna contra si próprio.

- Não confie neles - Disse finalmente, sua voz soou sufocada. Eu o olhei preocupada, principalmente devido ao teor de suas palavras, mas também por parece que ele estava sofrendo com algo que eu não era capaz de ver.

- Você está bem? - Questionei alarmada. - Você...

Ele balançou a cabeça e me soltou, afastando-se repentinamente em seguida, como se minha pele tivesse queimado suas mãos. Eu o olhei confusa, mas antes que pudesse repetir a pergunta ele já havia me dado as costas e se afastava com passos duros e pesados, deixando-me sozinha.

CONSEGUI ENCONTRAR o caminho de volta para meu setor, e então logo estava em meu quarto. Minha cabeça parecia pronta para explodir de tantos questionamentos e especulações que estão rondando minha mente.

Por que ele me diria aquilo?

Quando o encontrei pela primeira vez deixando o escritório de Fuchs, ele não abriu a boca, parecia tão rígido e automatizado. Dessa vez eu percebi quase imediatamente que algo estava diferente, mais humano? É, essa é a palavra... Humano.

Talvez alí fosse apenas uma área restrita e estar naquele local me traria problemas, então ele decidiu me ajudar, evitando que fosse descoberta. Acontece que isso aínda não explicaria seu alerta final e nem a forma como sua postura ficou esquisita de uma hora para a outra.

"- Não confie neles."

Balanço a cabeça, sentindo ela doer novamente com a pressão.
Apenas mais um tempo, apenas isso... assim que a pesquisa estiver feita eu irei seguir em frente e tudo isso poderá ficar no passado.

Só mais algum tempo.

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