𝐂𝐡𝐚𝐩𝐭𝐞𝐫 : 𝟎𝟐

─ Eu ainda consigo te ver. Você sabe disso, certo? ─ minha voz era baixa, embora fosse firme o suficiente para ser ouvida no ambiente.

Kenjaku - ou melhor, Suguru - estava realmente testando todos os meus limites no momento. Por um lado, estar na biblioteca a esse horário da manhã era perfeitamente normal para qualquer tipo de pessoa, já que nunca existe uma hora certa para buscar conhecimento. Mas ficar me encarando sem pausa enquanto se esconde atrás de um livro por mais de trinta minutos é coisa de maluco, e estava começando a me incomodar em todos os sentidos.

─ Claro. É, eu sei ─ ele confessa e fecha o livro com um suspiro, o posicionando na mesa a minha frente para olhar diretamente para mim agora.

─ Então por que continua com isso? ─ resmungo, não prestando total atenção nele enquanto me mantenho concentrada no meu próprio livro em minhas mãos, meus pés apoiados no balcão.

─ Não é óbvio? Preciso ficar de olho em você para garantir sua preciosa palavra.

─ E você não tem nada melhor pra fazer? Que nem sei lá, viver sua vida? ─ viro a página do livro de forma impaciente, me recusando a fixar meu olhar nele por muito tempo. Mesmo contra a minha vontade, sua presença marcante, somada ao fato que eu conhecia, enviava calafrios pela minha espinha ─ Eu já prometi que não vou falar sobre nada, e também não ligo pra quem você é ou deixa de ser.

Para ser sincera, posso até ser considerada uma verdadeira sortuda a esse ponto. Eu nem imaginava que estaria viva para pronunciar tais palavras para ele nesse momento ou que possuiria a grandiosa chance de vê-lo em pessoa novamente, mas também não estou reclamando da situação atual, embora seja bem desconfortável.

Pelo que dizem sobre o submundo do crime, a pessoa que descobre a identidade de um membro importante da máfia e seu paradeiro mais recente é geralmente morto sem piedade, como um animal indefeso no abatedouro. Era exatamente o que eu esperava que acontecesse comigo, mas ao invés disso recebi um stalker estranho que me seguiu nos primeiros horários da manhã.

─ Ah sim, sim. Você continua dizendo isso, mas o problema é que não tenho motivo nenhum para acreditar em você. Então, sugiro que lide com minha presença em silêncio se quiser continuar livre de consequências ─ ele alerta, e a ameaça em sua voz demonstrava que aquilo não era brincadeira, me incentivando a me sentir ainda mais incomodada com seu tom.

A sorte dele é que a biblioteca estava quase deserta, contando apenas com um velho senhorzinho que se refugia em um canto isolado todos os dias para ler bons clássicos até o cair da tarde. Se não fosse por esse fato, eu já teria gritado esse "segredo" idiota para todos os ouvidos possíveis, ou anunciado em todas as redes sociais.

Ele tinha razão, no entanto. Nós dois erámos completos estranhos e a chance de que eu mantivesse sua integridade intacta era consideravelmente baixa, visto que poderia simplesmente vender essa informação ou vazar para a mídia para arruinar a carreira dele - mesmo que essa opção custasse caro para mim -, então não o culpo de forma alguma. 

Com isso em mente, deixo escapar um suspiro frustrado dos meus lábios e volto a olhar para sua figura disfarçadamente, percebendo a sua mudança da posição corporal.

Agora ele estava praticamente jogado na cadeira, com o corpo inclinado para trás e os braços apoiados no encosto enquanto batia uma caneta, que estava com ele desde que chegou, repetidamente na mesa em um gesto que interpretei ser algum tipo de mania estranha.

─ Beleza, entendi. Mas pode pelo menos esconder melhor essa coisa dentro da biblioteca? Você não quer assustar alguém com essa lâmina, não é? ─ levanto a cabeça para apontar para a caneta que ele girava nos dedos, estreitando os olhos.

─ Como sabe que isso é uma lâmina? ─ ele devolve a minha desconfiança, batendo a caneta na mesa com um som único.

Sorrio de lado e retiro um item semelhante ao dele do meu bolso, mostrando para ele ao tirar meus pés da mesa para uma posição mais confortável. Uma lâmina disfarçada, que embora não fosse tão perigosa, ainda era eficiente em certos casos que necessitavam de um cuidado rápido.

Sabia muito bem desse detalhe porque tenho uma coleção dessas em casa, e é fácil reconhecer uma delas quando se tem um exemplar igual. O tubo possui uma característica marcante: uma pequena ranhura na lateral que serve para a lâmina sair.

Fiz isso para que ele soubesse que eu também não estava brincando. Eu havia visto a sua atitude anterior, e não ia deixar que ele pensasse que estava com todo o controle sobre a situação.

─ Acha que não conheço o básico de sobrevivência moderna? Me dê algum crédito, também não sou uma idiota.

Ele apenas levantou a sobrancelha e olhou para o meu item com interesse. É verdade que não sou a melhor das lutadoras e nem mesmo chego perto de saber me defender com tanta precisão, mas quando se fica muito tempo sozinha cuidando de uma biblioteca no centro da cidade, onde a movimentação e o risco de assaltos e ações desonestas são maiores, você aprende a se virar para não precisar ter medo de toda pequena coisinha que pode colocar sua vida em risco.

─ Onde você a conseguiu? ─ ele perguntou.

─ Eu tenho uma coleção ─ respondi, dando de ombros ─ Compro sempre que vejo uma nova, gosto dessas canetas.

Ele sorriu, um sorriso tão estonteante que me fez questionar sua verdadeira natureza, e pela primeira vez eu presenciei sua expressão suavizar para algo mais humano antes que ele me respondesse: ─ Eu também. Na verdade, é raro encontrar pessoas que colecionam lâminas só porque gostam, então é bom saber que ainda existem.

Esse cara estava tentando ser amigável comigo? A grande dúvida pairava na minha mente enquanto ele continuava me encarando. Eu não sabia ao certo, mas tudo indicava que sim, embora aquela conduta fosse completamente fora dos padrões. Bom, pelo menos os meus padrões. Não era exatamente medo que eu sentia diante disso, estava mais para uma sensação estranha e desconhecida, como se a gente não pudesse sequer estar conversando.

Franzo o cenho e desvio novamente o foco pela sei lá qual vez no dia, fechando o livro que eu segurava para colocá-lo ao meu lado enquanto ligava o computador para me distrair com qualquer outra coisa que envolvesse toda a minha atenção. 

Aquela interação definitivamente tirou a grande vontade de leitura que eu tinha no começo, e não importa o quanto tentasse no momento, eu também não conseguiria focar cem por cento nas palavras de cada nova página se estivesse sendo observada assim.

─ Pois é, tudo bem... ─ pronunciei, quebrando o silêncio em uma tentativa de encerrar aquilo antes que começasse ─ Já que tenho que lidar com você em silêncio, que tal colaborar fazendo o mesmo por mim?

Suguru revira os olhos e bufa em descontentamento pela minha falta de interesse em sua resposta, mas não diz mais nada. Em seguida, apoia o queixo na própria mão, com os cotovelos na mesa. Eu fiquei surpresa, considerando o mínimo. Ele era mais calmo do que eu esperava. 

A agressividade é a marca registrada desse tipo de gente, então pensei que estaria em apuros se o desafiasse. No entanto, todos os meus testes até agora haviam sido bem-sucedidos. O tipo de criminoso "obediente" era novo para mim, e eu suponho que seria melhor mantê-lo por perto de uma maneira mais pacífica se queria continuar com meu comportamento ousado.

Entretanto, não demora muito para que ele se movimente mais uma vez e, em um cenário que assemelhava ser de tédio, o moreno se aproxima de mim para espiar a capa do livro que eu havia desistido de acompanhar.

─ O que você estava lendo?

Com tanta insistência, era quase como se estivesse fazendo de propósito para evitar algum clima estranho enquanto me mantinha em seu radar. Isso me levou a pensar qual seria o real motivo para que ele continuasse na minha presença por tanto tempo. 

Não era melhor enviar um de seus guardas para fazer o serviço de me vigiar assim como qualquer mafioso normalmente faria? Além disso, ele era um cantor famoso, com muitas tarefas para cumprir durante o dia. Não havia razões plausíveis para prendê-lo aqui comigo, e muito menos para incentivá-lo a manter um papo.

─ A Paciente Silenciosa ─ respondo rapidamente, fazendo disso a comunicação mais curta que consigo.

─ Um thriller? ─ eu nem sequer notei quando foi que ele pegou o livro sem minha permissão, mas ele analisava a indicação da capa e a sinopse com uma curiosidade genuína ─ Você não parece alguém que lê um gênero assim. Com esse rostinho, eu diria que você tá mais pra uma leitora fanática por romances fofinhos.

─ Péssimo palpite, romances não são muito minha praia.

─ Ah, sério? ─ ele sorri com uma expressão divertida, colocando o livro de volta no lugar enquanto se apoia no balcão para me confrontar ─ Então me fala, qual é o seu livro favorito?

─ Por que eu contaria sobre isso pra um estranho? Descubra sozinho.

O olhar de Suguru era indescritível. Não sei que tipo de conclusão ele esperava de mim, mas certamente não era essa. E antes que ele pudesse continuar a discussão, aquele senhor que eu havia notado há alguns minutos atrás se aproxima do balcão devagar e passa pelo moreno, que imediatamente enrijece o corpo e se vira em uma posição defensiva. 

Vendo essa cena na minha frente, percebi que talvez Suguru não fosse tão tranquilo assim. Sua linguagem corporal sugeria que ele não era acostumado a reagir de forma passiva a eventos repentinos.

─ Minha jovem, você saberia me informar onde encontro o exemplar de A Bela e a Fera? ─ o velho me pergunta com uma voz suave, uma a qual eu já estava acostumada a ouvir diariamente. É até estranho, pois até hoje não sei qual é o nome do dono dela.

─ Claro que sim, senhor. Fica na segunda prateleira da direita no final do corredor dez, mas não tenho certeza se ele ainda está disponível. Uma pessoa já pegou emprestado na semana passada, talvez o senhor tenha a sorte de ter sido devolvido.

O homem acena com a cabeça e se vira para ir buscar o seu requerimento. No entanto, ao perceber Suguru parado ao lado, ele recua e o encara de cima a baixo em uma análise completa. Após alguns segundos, ele volta a falar comigo.

─ Este rapaz é o novo ajudante da biblioteca?

─ Ajudante? Ah não, ele-

─ Sim, fui contratado ontem ─ o moreno me interrompe, seu tom sendo totalmente diferente de antes, evidenciando bem a principal arma que ele utilizava: o carisma ─ Se estiver precisando de alguma informação, o senhor pode me chamar a qualquer momento.

Devo ter aparentado um estado de choque, pois assim como minha pessoa, o homem também parecia desconfiado dessa afirmação quando trocamos olhares compreensivos por breves segundos. Mas afinal, quem era eu para desmentir aquele cara na frente de alguém? Eu certamente não tinha coragem suficiente para isso, já que havia abusado demais da minha sorte. 

No entanto, a pequena intromissão significaria que ele teria mesmo que frequentar aqui todos os dias se estivesse falando sério. Mas não que me incomodasse, no fim das contas. Provavelmente seria uma convivência fácil em todos os casos. Ele fica apenas me olhando como um idiota toda hora, então não vejo problemas em aceitá-lo por perto.

─ Certo, agradeço a disposição ─ o velho sorri com simpatia, não querendo estender com mais perguntas ao compreender a mensagem do mais novo enquanto se afasta, nos deixando sozinhos novamente.

O observando desaparecer entre as diversas prateleiras dispostas, resolvo manter a calma e não comentar nada sobre o que Suguru afirmou anteriormente. Ao invés disso, respiro fundo e cruzo os braços com a sombra de um sorriso perambulando nos meus lábios.

─ Ele está na época de clássicos de contos de fadas ─ murmuro mais para mim mesma, tendo acompanhado a jornada de leitura daquele homem por tempo o suficiente para saber que esse era o tipo que o atraía no momento ─ É adorável, nós temos toques literários bem parecidos.

─ Contos de fadas, hein? Então agora sei o caminho certo pra descobrir qual é o seu livro favorito ─ o moreno declara com uma certa animação que ficava explícita em sua linguagem.

Não consigo evitar de soltar uma boa risada com esse pensamento. De fato, eu amava contos de fada, sim, mas quando era apenas uma criança boba perdida em devaneios. Naquela época, eu acreditava fielmente em príncipes encantados e no poder do amor para salvar o dia. Eram coisas idiotas, mas também confortáveis. 

Porém, atualmente eu sabia o quanto a realidade era medíocre, e que tudo era apenas mera fachada para ilusões. Romances ideais e fantasiosos como aqueles não existem, e nunca vão existir. É exatamente esse ponto que bloqueia a minha criança interior de sonhar com histórias que envolvem "amor verdadeiro".

─ Nossa, você é tão ingênuo... ─ balanço a cabeça em negação, aproveitando a oportunidade para pegar a caneta da mão dele em um impulso assim que sua guarda abaixa, inclinando meu corpo para trás na parte posterior do balcão ─ E essa caneta agora é minha, que pena.

─ Ei, ei! O que você tá fazendo?! ─ ele exclama e tenta resgatar seu pertence, assim como com o documento na noite passada. E da mesma maneira, ele falha miseravelmente quando me esquivo de sua figura.

─ Dentro dessa biblioteca, eu sou a lei. É melhor seguir as minhas regras, estamos entendidos? Sem lâminas enquanto estiver aqui ─ aviso, abrindo uma das gavetas que eu usava para armazenar documentos para jogar a caneta no fundo dela.

─ Suponho que suas queridas regrinhas também valem pra você, senhorita.

De início, eu me sinto perdida e junto as sobrancelhas em confusão com a maneira descontraída de sua postura, mas então uma onda de realização me invade quando meu olhar recai sobre a mão erguida dele, onde minha caneta estava entrelaçada em seus dedos.

─ Quando foi que-

Sem conseguir terminar minha frase, tento imediatamente resgatar minha pobre caneta assim que faço meu caminho até o outro lado do balcão, mas Suguru se afasta com tranquilidade sem ao menos precisar me tocar para me evitar. Certo, não sabia que as coisas voltavam tão rápido assim. Agora estou apenas provando do meu próprio veneno.

─ Sinto muito, sem lâminas na biblioteca ─ ele zomba ao guardar a caneta em seu bolso, uma zona fora dos limites que minhas mãos poderiam alcançar.

Seu sorriso malicioso me logo causa uma sensação de raiva e frustração, a qual me faz estreitar os olhos. Aquele homem seria um completo desastre. Posso retirar e esquecer tudo o que eu disse. Essa com certeza vai ser uma convivência muito difícil.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top