capítulo sete
O sol pendia baixo no céu, espalhando seus últimos fios de luz sobre as casas de pedra e barro da aldeia. As sombras se alongavam sobre os caminhos, e o vento trazia o cheiro das oliveiras, do pão assando nos fornos, do barro fresco e da madeira recém-cortada.
Jesus caminhava lentamente pela carpintaria, sentindo o cheiro da madeira lixada e o calor do martelo batendo sobre as tábuas. José trabalhava silencioso ao seu lado, concentrado em sua tarefa. Mas Jesus não conseguia concentrar-se por completo. Seus pensamentos viajavam para longe, para um lugar que já não existia, mas que ainda vivia em sua memória: Morrigan.
"Talvez hoje ela venha," murmurou para si mesmo, a voz baixa, quase como uma prece. Mas não havia ninguém lá além do vento e da madeira rangendo sob o martelo.
Ele limpou o suor da testa e parou por um instante. Observou o horizonte. A aldeia inteira parecia suspensa entre o brilho dourado do entardecer e as sombras que cresciam ao redor. Cada centímetro de céu lembrava-lhe dela — do manto negro, dos olhos que eram dois mundos distintos, da risada que, uma vez, preencheu aquele espaço de uma forma que ninguém mais poderia.
"Não posso esperar por algo que talvez nunca mais volte," disse ele em voz baixa, como se confessasse um segredo ao vento.
Mas mesmo ao dizer isso, sentiu o coração apertar.
...
Nos dias seguintes, Jesus se dedicava às tarefas, aprendendo com José, ajudando nos móveis, nos consertos, nos detalhes que só um carpinteiro entendia. Cada tábua medida, cada prego cravado, cada ranhura lixada era um exercício de paciência e atenção — mas também, silenciosamente, um momento para ele refletir.
Às vezes, quando olhava para uma tábua reta, pensava no contorno de Morrigan. Como ela andava, leve, quase flutuando. Como seus cabelos escuros se moviam como ondas e seu manto se agitava suavemente. A memória de sua risada surgia como o som de um riacho distante, clara e inesperada, lembrando-lhe da vida que ele ainda não podia tocar.
"Ela era... diferente," pensava, enquanto ajustava a tábua no esquadro. "E ainda assim, tão real quanto tudo que vejo ao meu redor."
Maria passava pelo espaço, carregando pão recém-assado.
— Está bem, meu filho? — perguntou, com aquele olhar que sempre parecia ler o que ele não dizia.
— Estou, mãe — respondeu ele, e sorriu. Mas dentro, sentia o vazio sutil de uma presença ausente, uma sombra que já havia feito parte de sua vida e ainda morava em suas memórias.
...
À tarde, quando as crianças corriam pela praça, Jesus se lembrava de Morrigan brincando com elas, ensinando-as a observar o mundo sem medo, a se alegrar com pequenas coisas, mesmo com a sombra que a seguia. Ela ria, e aquela risada parecia feita de vento e folhas secas, algo que o tempo não podia apagar.
Ele se sentava sobre uma pedra, olhando-as correr. E no silêncio, perguntava-se:
"Ela ainda pensa em nós? Ela ainda se lembra de mim?"
Era um pensamento que o acompanhava como o próprio entardecer: inevitável, silencioso, doce e melancólico ao mesmo tempo.
...
Uma tarde, após ajudar José a reparar um telhado, Jesus parou perto do poço. Observou o reflexo da água e viu, por um instante, o contorno de Morrigan. Não era real, era apenas sua memória pintando a água com as cores do passado. Mas ele sorriu, como se pudesse tocá-la ali, mesmo que apenas com a lembrança.
— Você sempre espera por ela, não é? — disse José, aproximando-se sem que ele percebesse.
— Talvez — disse Jesus, baixando os olhos para a água. — Mas não é esperança, pai. É lembrança. Algo que me faz sentir vivo.
José assentiu, silencioso, entendendo de uma forma que palavras não poderiam explicar.
...
As noites traziam uma calma estranha, quase mágica. Depois do jantar, Jesus subia a colina atrás da aldeia e sentava-se olhando o horizonte. O céu mudava de cor lentamente, e a aldeia ficava envolta em sombras longas, apenas o brilho tênue de algumas tochas queimando nos quintais.
Ele lembrava-se de Morrigan nesse momento: dos olhos que pareciam observar tudo, da forma como o vento brincava com seus cabelos, da suavidade de suas mãos. Um dia, ela havia dito algo que não saía da sua mente:
— O mundo é feito de momentos que passam, mas algumas coisas permanecem — disse ela, sorrindo. — Algumas coisas que não se perdem, mesmo quando a eternidade insiste em nos afastar delas.
Ele suspirou, fechando os olhos. Cada palavra dela era uma pedra lançada no lago do tempo, criando ondas que ainda chegavam até ele.
...
Nos dias de trabalho, Jesus começou a perceber que sua vida inteira estava entrelaçada com aquela lembrança. Cada gesto de cuidado, cada olhar atento, cada palavra dita com paciência — tudo se tornava parte de algo que Morrigan lhe havia mostrado: a beleza da presença, mesmo quando invisível, e a força da conexão, mesmo que passageira.
Uma vez, limpando o pó da carpintaria, ele murmurou:
— Morrigan... você está em toda parte, mesmo quando não está.
E sorriu, meio triste, meio feliz, porque sabia que era verdade. Ela era uma parte de seu mundo que nenhum tempo, nenhum espaço, poderia apagar.
...
As estações mudavam, e Jesus crescia. Tornava-se mais forte, mais atento, mais paciente. E ainda assim, ao entardecer, ele se encontrava olhando o horizonte, como se esperasse ver o manto negro flutuando entre a luz do sol poente.
Às vezes imaginava:
"Ela está em outro lugar. Talvez em outra aldeia, talvez caminhando pelos desertos que não conheci. Mas ainda existe. E a lembrança dela continua viva dentro de mim."
Ele falava com o vento, como se Morrigan pudesse ouvir:
— Eu cresço, mas nunca esqueço. Não a risada, não o rosto, não os olhos. Você me mostrou o que a vida pode ser... mesmo que por pouco tempo.
...
Em certos dias, outros aldeões comentavam com ele, sem saber o que despertava aquele olhar distante:
— Você parece pensar em algo grande, Jesus.
— Estou apenas observando o mundo — respondia ele, sorrindo suavemente.
Mas, no fundo, sabia que o mundo que ele observava estava cheio de sombras e luzes entrelaçadas, lembranças e histórias, e uma delas sempre tinha sido Morrigan.
...
Nos anos que se seguiram, enquanto a aldeia crescia em rotina e simplicidade, Jesus se tornou conhecido por sua atenção aos detalhes, sua paciência com os pequenos, sua gentileza com os outros. Mas dentro dele havia sempre um espaço reservado para alguém que havia caminhado ao seu lado, por pouco tempo, mas com intensidade infinita.
Ele lembrava-se da forma como ela ria das coisas mais simples, da maneira como inclinava a cabeça quando pensava, do peso do silêncio quando não havia ninguém mais para falar. Era uma lembrança viva, tão real quanto o sol que se punha no horizonte, e tão distante quanto o tempo que já havia passado.
— Morrigan... — sussurrava, quando ninguém podia ouvir, — talvez eu nunca a veja novamente. Mas tudo que você me deu... permanece.
E assim, o tempo passou, e Jesus continuou seu crescimento, aprendendo o ofício de José, caminhando pela aldeia, ajudando e observando. Mas cada entardecer ainda trazia a expectativa silenciosa: a memória do manto negro flutuando sobre a aldeia, o brilho dourado e negro dos olhos dela, a risada que ainda ecoava entre as colinas e o vento.
Era uma lembrança de amizade, de mistério, de uma presença que havia moldado seu coração, tornando-o mais atento à vida, mais sensível à beleza, mais humano. Morrigan não precisava estar ali para que ela estivesse com ele, porque a memória era suficiente para inspirar toda uma vida de atenção, de amor silencioso pelo mundo e por aqueles que nele caminhavam.
E assim ele cresceu — forte, atento, sereno — carregando com ele a lembrança de alguém que um dia foi tudo e permaneceu nada mais do que um eco, mas um eco que nunca desapareceu.
[...]
O vento varria os campos secos, trazendo consigo o cheiro da terra queimada e o pó das aldeias abandonadas. Morrigan caminhava sem destino, os pés leves, mas a alma pesada. O manto negro que sempre a envolvera começava a ceder àquilo que o tempo impõe: rasgos surgiam, bordas desfiadas balançando como folhas mortas ao vento, buracos que deixavam a luz do sol tocar a pele pálida e os dedos finos.
Ela não sabia para onde ia. Cada aldeia que encontrava a via com olhos arregalados, e a reação era a mesma: gritos, pedras lançadas, portas batendo. O medo e a raiva dos homens eram dois rios que corriam lado a lado, e ela aprendia, a cada passo, que não havia lugar seguro para alguém como ela.
E, no entanto, Morrigan continuava. Sempre caminhando, sempre observando. O mundo estava cheio de vozes que ela não compreendia, cheios de segredos que jamais lhe haviam sido revelados. Mas havia uma ausência que doía mais que qualquer pedra ou grito: a ausência dele.
Jesus.
O único que a vira, que a compreendera, que falara com ela sem medo. Ela fechava os olhos e lembrava-se de sua risada, suave como água correndo sobre pedras, das mãos que tocavam a madeira com tanto cuidado e atenção, das palavras que não precisavam de explicação porque chegavam direto ao coração. E então, o vazio voltava, gelado, mordendo a alma.
— Por que tudo é tão pesado agora? — murmurou para o vento. — Por que ninguém me entende?
O vento levou suas palavras como se fossem folhas soltas, e Morrigan continuou. Às vezes via sua própria imagem refletida nas poças de água ou no vidro quebrado de janelas antigas. O rosto pálido, os cabelos negros emaranhados, o olhar profundo e vazio. O manto rasgado se agitava ao vento, revelando mais de sua forma, mas não a tornava mais compreensível aos olhos alheios.
Cada aldeia que atravessava era um retrato de medo e desconfiança. Crianças choravam ao vê-la, mulheres murmuravam palavras de superstição, homens brandiam ferramentas como armas. Ela aprendeu a mover-se sem fazer barulho, a desaparecer como sombra. Mas mesmo invisível, deixava rastros: histórias sussurradas, contos de uma mulher de manto negro que caminhava entre os vivos e os mortos, cujos olhos eram como abismos de noite e fogo.
Morrigan parava à beira de rios e olhava para seu reflexo.
— Quem sou eu, se já não posso ser vista? — perguntava-se.
A memória de Jesus vinha como um fantasma de calor em meio àquele mundo frio. Cada entardecer, cada pôr do sol distante, fazia seu coração apertar. Ela lembrava-se dele sentado sobre uma pedra, olhando o horizonte, a paciência refletida no rosto, a esperança tranquila nos olhos. Ela desejava estar lá, desejava poder explicar, desejar poder tocar novamente, mesmo que apenas com palavras.
Mas não podia. Havia um chamado invisível no ar, algo que ainda não compreendia. Sua vida agora era andar entre o medo e a sombra, carregando um fardo de solidão que nenhum outro podia partilhar.
O manto continuava a rasgar-se, pedaços de tecido esvoaçando, lembrando-lhe do próprio estado: fragmentado, gasto, mas ainda resistente. Cada rasgo parecia contar uma história de rejeição, cada fenda refletia a distância que se formara entre ela e tudo aquilo que já amara.
Ela passava por aldeias queimadas ou abandonadas, ruínas de templos e casas, sentindo a energia de cada lugar, o eco do sofrimento, do ódio, da raiva e da perda. O mundo parecia falar com ela em uma língua que só ela podia entender: um murmúrio constante de caos e tristeza. Morrigan parava, tocava os muros frios, os troncos secos das árvores, sentindo a memória de tudo que ali fora, e isso apenas aumentava a saudade do que havia perdido.
Em momentos de silêncio, quando ninguém podia vê-la, Morrigan chorava. Choro silencioso, sem lágrimas que caíssem, apenas um aperto profundo no peito. Ela fechava os olhos e lembrava-se da aldeia onde morava Jesus, da carpintaria, das risadas, das conversas à beira do entardecer. E sentia a dor de nunca mais tocar aquela simplicidade, aquela alegria humana que ela aprendera a amar.
— Ele não me esquecerá — dizia a si mesma. — Mesmo que eu desapareça, ele vai lembrar.
Mas a memória, por mais vívida que fosse, não preenchia o vazio. Morrigan continuava a vagar. Suas passadas eram leves, mas cada passo carregava o peso de séculos de experiências que ela não compreendia totalmente. Entre o medo que via nos olhos dos homens e a raiva que sentia por si mesma por não poder ficar, ela caminhava.
Às vezes, ela se detinha em colinas e observava o horizonte, pensando no futuro que jamais teria. Pensava em Jesus, imaginando-o crescendo, aprendendo, vivendo — talvez esquecendo sua voz, mas nunca a forma do seu sorriso, nunca a risada que fazia o vento dançar. Morrigan fechava os olhos, respirando o ar frio e pesado da noite que se aproximava.
— Eu ainda o seguirei, de alguma forma — murmurava, mesmo sem saber como. — Ele é a única razão pela qual ainda posso continuar.
E então o vento soprava, e Morrigan sentia como se estivesse sendo lembrada, chamada, quase acariciada pelo mesmo toque invisível que um dia a fizera se sentir viva. Mas não havia respostas, apenas passos no chão duro, pedaços de manto que dançavam com o vento, e a certeza de que o mundo a temia, e ainda assim ela precisava continuar.
Cada aldeia, cada caminho, cada ruína tornava-se parte dela. O manto rasgado não era apenas tecido gasto, mas mapa de sua existência. Cada buraco, cada rasgo, cada fio solto carregava a história de quem Morrigan era, de tudo que havia perdido e de tudo que ainda precisava encontrar.
Ela não sabia se algum dia encontraria novamente Jesus. Mas no fundo, algo a mantinha caminhando, mesmo quando o medo e a solidão ameaçavam engoli-la por completo. Havia uma força que não vinha do mundo, nem dos homens, nem das aldeias — uma força que vinha de memórias, de risadas, de olhares que tocaram sua alma antes que ela tivesse de partir.
— Um dia — sussurrou para si mesma, caminhando sobre as colinas vazias, os campos secos e as aldeias que se fechavam contra ela — um dia, ele vai me ver de novo. E então saberei se ainda posso pertencer a algo além deste vento, desta solidão, deste manto que se desfaz.
E Morrigan continuou a andar, sombra entre sombras, manto rasgado balançando, passos leves mas firmes, carregando com ela o eco de uma amizade que nem o tempo poderia apagar, e a dor silenciosa de um mundo que nunca a compreendeu, mas que ela ainda insistia em atravessar.
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