capítulo seis

A aldeia respirava calma ao amanhecer. O vento trazia o cheiro das oliveiras e da madeira recém-cortada, e o canto distante dos pássaros preenchia o espaço entre os muros de barro e os caminhos de pedra.
Na carpintaria, Jesus já trabalhava com José, martelando, lixando, medindo. Cada tábua tinha seu próprio som, e cada batida de martelo era uma pequena lição de paciência e tempo.

Morrigan apareceu naquele mesmo dia, como sempre, devagar, os pés descalços tocando o chão de pedra com leveza. O manto negro se movia sem esforço, e os olhos — um negro profundo, outro dourado como o primeiro raio de sol — pareciam absorver cada detalhe do mundo.

— Bom dia — disse Jesus, sem olhar surpresa.
Ela ergueu o rosto e respirou devagar, cansada.
— Bom dia — respondeu, a voz rouca como folhas secas sendo sopradas pelo vento.

O primeiro encontro, há meses, ainda parecia recente na memória de ambos.
Mas agora havia confiança. Morrigan já se sentia confortável na presença dele, e Jesus havia aprendido a compreender o peso do silêncio dela, sem medo ou pressa.

— Você dormiu bem? — perguntou ele, enquanto lixava a madeira.
Ela hesitou, olhando para a luz que entrava pela janela.
— Dormi o que se pode dormir quando se carrega séculos.

Ele sorriu, inclinando a cabeça.
— Mesmo assim, você está aqui. Isso já é muito.

...

Ao longo das semanas, a rotina se encheu de pequenas alegrias.
Jesus e Morrigan caminhavam pelas ruas da aldeia, explorando cada cantinho, observando o mercado, o poço, as crianças correndo entre as casas.
No começo, as crianças se afastavam, temendo o manto negro, o ar silencioso que a acompanhava. Mas Morrigan, com gestos suaves, começou a cativá-las.

Ela se ajoelhava para mostrar pequenas flores, ensinava como cada pedra tinha um som quando jogada no chão, deixava que os meninos a imitassem em passos silenciosos.
E, pouco a pouco, riam juntos.

— Você dança estranhamente — disse uma garotinha, rindo.
— Talvez — respondeu Morrigan, com um sorriso que só aparecia entre as crianças. — Mas o vento me ensina.

Jesus observava, sorrindo, sentado na soleira da carpintaria.
— É verdade — disse ele, — você dança com o vento melhor que qualquer um que eu conheço.

A moça ergueu os olhos para ele, surpresa, e por um instante, o mundo parecia suspenso.
— Você também dança, Jesus?
— Apenas com a madeira e as palavras.

...

Os dias se tornaram mais longos, preenchidos por conversas e pequenas aventuras.
Jesus mostrava a Morrigan como ajudar José, como medir uma tábua corretamente, como escolher a melhor madeira para cada tarefa.
Ela ria quando errava, admitindo com humildade, e ele se alegrava com cada pequena vitória dela.

Certa tarde, sentaram-se sob uma oliveira antiga, depois de um dia inteiro de trabalho.
O vento soprava quente, e as folhas sussurravam histórias que só Morrigan parecia ouvir.

— Você acha que algum dia entenderemos tudo isso? — perguntou ela, olhando para o céu azul.
— Talvez não — respondeu ele — Mas entender nem sempre é necessário. Às vezes, basta caminhar com alguém ao lado.

Ela desviou o olhar, mas algo em seu peito se aqueceu.
— Caminhar com você... — murmurou ela — é estranho. É como se eu finalmente pertencesse a algo que não é meu.

— Então pertence ao presente — disse Jesus. — O presente é o que podemos segurar, mesmo quando o passado nos pesa e o futuro assusta.

...

As crianças começaram a se aproximar mais.
Às vezes, Morrigan sentava-se no chão da praça e elas corriam para brincar com ela, sem medo.
Ela as deixava, ensaiando um sorriso, mostrando que nem tudo que é escuro precisa assustar.
Jesus ria delas, participava das brincadeiras, mas sempre mantendo a curiosidade e o cuidado que tinha por Morrigan.

— Você é como uma sombra engraçada — disse um menino, tentando imitar o jeito dela caminhar.
— Sombras também podem sorrir — respondeu Morrigan, baixinho, quase se surpreendendo por dizer aquilo.

E Jesus, ao lado, comentou com suavidade:
— Elas são alegres. Mas não escondem nada. Talvez por isso você goste delas.

Ela olhou para ele, sem dizer nada, mas os olhos brilhavam de um modo que só ele parecia notar.

...

Certa vez, enquanto caminhavam pelos campos, Morrigan falou sobre tudo o que tinha visto — ruínas, guerras, inundações, cidades destruídas.
Jesus a ouviu em silêncio, absorvendo cada detalhe, sem horror, apenas entendimento.

— Você já viu o mundo morrer — disse ele.
— Mais vezes do que posso contar — respondeu ela, — e ainda assim, estou aqui.
— Então talvez esteja aqui para ver o que ainda pode nascer — disse ele.

Ela o olhou, desconfiada, mas sentiu a verdade naquelas palavras.
— Talvez você seja o primeiro que me entende — murmurou.

Jesus sorriu, sem saber exatamente o peso do que ela disse, mas sentindo que algo profundo estava se formando entre eles.

...

Com o passar do tempo, Maria e José já a aceitavam plenamente.
José pedia que Morrigan ajudasse na carpintaria, oferecendo instruções, mas também liberdade.
Maria preparava pão para ela, arrumava sua cama, e comentava com o marido:
— Ela é parte da nossa família, de um jeito que não entendemos, mas que faz sentido.

E Jesus, ao vê-la, sentia que a amizade se fortalecia com cada gesto de cuidado e cada conversa.

— Você já percebeu — disse Jesus certa tarde, enquanto levavam lenha para o poço — que há muitas formas de ser feliz?
— Talvez eu nunca tenha sido feliz antes — respondeu Morrigan, — mas posso aprender.
— Então vamos aprender juntos — disse ele, sorrindo.

...

Havia dias de silêncio, momentos de contemplação, quando ambos se sentavam no topo de uma colina, observando o sol se pôr sobre a aldeia.
Falavam pouco, mas cada olhar, cada gesto, dizia tudo.
Jesus mostrava a ela a beleza nas coisas simples: o brilho de uma pedra molhada, o canto de um pássaro, o som da água no poço.
Ela, por sua vez, lhe mostrava a profundidade daquilo que ninguém mais via: a memória do mundo, a sombra que carregava, o peso da eternidade nos pequenos detalhes.

— Você não teme o tempo? — perguntou ela, em uma dessas tardes.
— Não — respondeu ele. — O tempo é apenas o que precisamos para aprender a amar.

...

Uma noite, Morrigan dormiu na casa de Jesus.
Ela estava exausta das caminhadas e do calor do dia, e Maria insistiu que ela ficasse, preparando uma cama simples com cobertores e travesseiros.
Jesus permaneceu ao lado, sentado na soleira, olhando para ela dormir.
Havia serenidade naquele momento, algo que nenhum dos dois precisaria nomear.

Então, em silêncio, a presença se revelou.
Um anjo surgiu diante de Morrigan, visível apenas para ela.
Sua luz era suave, branca como a primeira aurora, e sua voz, um sussurro impossível de negar:
— Morrigan, chegou o momento de partir.

Ela se ergueu lentamente, sentindo o coração apertar.
— Mas... e ele? — murmurou, olhando para o rosto de Jesus, ainda sereno, ainda adormecido.
— Ele entenderá quando o tempo chegar — respondeu o anjo. — Você fez o que devia.

Morrigan respirou fundo.
— Não quero deixá-lo — disse, a voz falhando. — Não agora.

O anjo tocou seu ombro, suave como vento.
— Parte. Mas o laço que existe entre vocês nunca será quebrado.

...

Naquela noite, antes de partir, Morrigan se aproximou da porta do quarto de Jesus.
Ele estava acordado, olhando para ela com aquela calma que só ele possuía.

— Morrigan — disse ele, suavemente — você vai embora?

Ela assentiu, sem conseguir dizer nada mais.
— Não... ainda não sei quando voltarei — murmurou, os olhos marejados.
— Tudo bem — respondeu ele, sorrindo. — Não chore.

Ela sentiu as lágrimas surgirem, mas ele, com delicadeza, as enxugou com a ponta dos dedos.
— Eu te vejo de novo — disse ela, quase num sussurro. — Prometo.

Ele inclinou a cabeça, um sorriso suave nos lábios:
— E eu estarei esperando.

E naquele instante, Morrigan compreendeu que, mesmo que parte do mundo a chamasse, ela nunca deixaria o coração do amigo.

Ela se afastou, sem olhar para trás, mas sentiu o calor do sorriso dele atravessar todas as sombras que carregava.
E pela primeira vez, a eternidade parecia leve.

O manto negro flutuava atrás dela como fumaça, e o vento da aldeia parecia sussurrar:
"Mesmo na ausência, a amizade verdadeira permanece."

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