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Quarta-feira, 15 de outubro de 2010
Atlanta, Geórgia

Hannah Isabel

Passa das quatro da tarde, Glenn e eu estávamos indo buscar Giulia na escola. Estamos na rua principal de Atlanta, nesse horário tudo aqui é movimentado. O transito sempre me irritou bastante, principalmente engarrafamentos.

— eu falei que deveríamos ter saído mais cedo. - murmuro, batucando os dedos no volante. Glenn, por outro lado, era a pessoa mais calma e paciente quando se tratava de muitas coisas, alguém precisava ser. 

— entra naquela rua. -  apontou para uma rua estreita, o encarei com dúvida. — confia em mim, a gente vai se livrar do trânsito.

Faço o que ele pede e viro a esquerda, entrando em uma rua mais tranquila quase deserta. Era o inicio de um bairro nobre da cidade. 

— pega a esquerda de novo e depois vire a direita, a gente sai na rua de trás da escola da Gigi e pega ela pelo portão dos fundos.

Glenn é bom em atalhos, é um dos benefícios de ser entregador, saber todos os atalhos da cidade. Ele se gaba disso o tempo inteiro, diz que é o melhor. Ele realmente é, mas eu não vou concordar.

Sigo o caminho que Glenn pediu para seguir, saindo exatamente onde ele disse que sairíamos. Ele desce do carro e adentra a escola em busca da pequena Rhee. Conheço os irmãos Rhee desde que me mudei para Atlanta. Glenn fez um ano de medicina comigo, mas logo desistiu e trancou a faculdade por conta da irmã. Eu me mudei para o mesmo prédio e fizemos amizade, ele deixava a garota comigo as vezes, arrumou um emprego e agora estamos aqui, sendo a família um do outro.

Pouco sei sobre a família de Glenn, ele nunca me contou muita coisa, apenas o básico. Sei que eles tem uma terceira irmã e que ela é a mais velha, um sobrinho da idade de Giulia e que moram em Virgínia. Sei que ele teve uma briga feia com os pais e que por isso saiu de casa com as irmãs e o sobrinho. Não procuro saber de muito porque também não gosto de falar sobre o passado. 

A porta de trás é aberta, uma Giulia alegre e sorridente adentra meu carro. Do outro lado, apenas o Glenn.

— oi, tia Hannah! — ela diz, muito contente.  — você está linda hoje, sabia?

A olho pelo retrovisor interno, sabendo que ela aprontou alguma coisa no dia de hoje e está tentando amenizar a situação com elogios. 

— obrigada, Gigi, mas o que você aprontou na escola dessa vez?

Glenn me entregou um papel, um bilhete de sua professora para ser mais exata. Dizia que ela bateu boca com uma colega de classe e a chamou de "saco de lixo com peruca", "espantalho da série SPN" e finalizou com um "bebês de Rosemary são mais bonitos do que você". Me recordo de todas essas frases, são insultos que Glenn e eu usamos em nosso dia a dia. Outro problema com a escola por conta da minha boca.

— essa do bebê de Rosemary é boa. — ela diz, o sorriso sapeca intacto nos lábios. Glenn e eu a encaramos com um claro olhar de reprovação e ela o murchou no mesmo instante.

— não pode repetir nossas falas na escola, Giulia. Em lugar algum, na verdade. —  seu irmão diz, muito sério. — isso pode me dar problemas.  Eles podem duvidar da minha capacidade de criar você. 

— meu sobrinho reproduziu uma conversa minha e do amigo do pai dele na escola uma vez. — conto, ligando o carro enquanto dei de ombros. — Uma sobre o carro do lixo estar passando para te buscar. — olho para trás ao dar a ré. — fui chamada na escola, eu pedi desculpas pelo inconveniente e afirmei que não iria se repetir.

— e o seu irmão?

Dou risada, lembrando daquele dia. Ainda lembro a maneira como ele nos obrigou a sentar no sofá da sala e  falou por vinte minutos o quão aquilo era errado. Depois de tudo isso, meu irmão nos levou para a sorveteria e tudo ficou bem.

— Rick me conhece, sabe que não foi proposital. Ele ficou bravo com o garoto, mas eu, como uma boa tia, livrei a barra do gatinho. — olho para ele, tentando o tranquilizar. — isso não vai te trazer muitos problemas, é só garantir que não vai se repetir. Além do mais são apenas crianças, todos sabem que repetem coisas algumas vezes.

Glenn deu uma criação perfeita para a irmã. Não a ensina palavrões, violência ou qualquer coisa que possa dar brecha para a mãe dele conseguir pegar a garota para ela outra vez. Ele a educa muito bem, e o mais importante, ele a ama muito. 

— teremos uma conversa séria quando chegarmos em casa, Giulia Rhee. — ele diz, o tom sério e autoritário.

Dirigimos de volta para casa, pelo mesmo caminho que Glenn me ensinou. Antes de ir, passamos na farmácia para ele me comprar aspirinas, pois  em casa estava em falta. Por conta do trânsito já era noite quando finalmente chegamos ao prédio. Deixei o carro na garagem e adentramos, pegando o elevador juntos. 

— me deseja sorte, tia Hannah - ela sussurra ao sair do elevador com o irmão.

Dou risada sabendo que o máximo que iria acontecer era castigo por uma semana. Glenn não seria cruel com a irmã por ela ser uma boa garota.

— boa sorte, meu amor. 

A porta se fecha e dez segundos depois estou no meu andar. Dobro um corredor e entro na última porta. Assim que adentro meu apartamento o celular em meu bolso começa a vibrar. Era minha irmã do meio, Lara. Achei estranho ela me ligar esse horário, ainda mais porque quase não me liga. 

— oi Larinha, sentiu saudades? - brinquei, mas acho que não era um bom momento. A linha estava silenciosa, nada além de sua respiração ofegante. — Lara, ainda está ai?

Lara está calada, mas eu posso ouvir o som de sirenes de ambulância no fundo e pessoas falando, como se ela estivesse em um local público. Em um hospital, talvez.

— precisa vir para King County, agora! - ela me disse, sua voz estava trêmula e quase não saia. Meu corpo arrepia, sentindo uma sensação estranha percorrendo por todo ele.

— o que aconteceu? Camilla está bem? - questionei, me apressando em andar pela casa.

Meu coração batia aceleradamente, eu ainda estava com a porta de casa aberta. Mil cenários possíveis e impossíveis passavam por minha mente agora. Seu silêncio me apavora.

— Camilla está bem, está com  Clara e Peter na casa deles. - suspira pesadamente, como se buscasse forças para continuar a frase. — é o Rick, Hannah. Ele foi baleado em serviço.

O desespero invade meu peito, assim como pensamentos negativos invadem minha mente. A voz parece fugir de minha garganta, assim como eu sinto o nó se formando nela. Minhas pernas bambeiam ameaçando cair e eu busco em que me segure. 

— Lara... ele tá bem? Está vivo? – questionei em um fiapo de voz melancólica, com medo de sua possível resposta.

Ouço o suspiro de minha irmã do outro lado da linha. Cada segundo que passava era como se um touro pisoteasse meu peito, me deixando em desespero e agonia. Meu irmão não pode morrer, eu não suportaria algo assim novamente.

— está em cirurgia há mais de três horas, ainda não temos noticias sobre o caso.  — meu coração se aperta, mas ainda aliviada por não estar morto. — Nós precisamos de você aqui,  o Carl precisa.

Estou ali, parada na sala da minha casa encarando uma fotografia em família onde estou entre Lara e Rick, Lori ao lado do marido e as crianças em nossa frente.  Meus irmãos são tudo 'pra mim, é graças a eles que estou aqui hoje. Rick é o meu coração inteiro que agora está em completa agonia com tudo aquilo. Mas que droga de vida maldita que não me permite uma vida tranquila.

— vou comprar uma passagem para o próximo voo, chego logo.

Desligo o celular sem esperar por resposta, tranco a porta e corro para o quarto. Abro meu guarda-roupas, puxo minha mala e joguei as primeiras roupas que vi  pela frente. Vinte minutos depois eu já arrumei tudo o que precisava e estava na porta da casa do Glenn. Ele atende a porta, me olha preocupado ao ver a mala ao meu lado e Bart em meus braços.

— pode ficar com o Bart por alguns dias? - minha voz sai por um fio, fazendo-me fungar.

— Claro, mas aconteceu alguma coisa? Para onde está indo?

— Rick foi baleado em uma perseguição policial, está em cirurgia - respondo, o óculos escuro nos olhos escondendo o quanto eu estava abalada.

Glenn pega o gatinho de meus braços com rosto meio assustado. 

— tudo bem. Você vai de avião?

— o próximo voo só vai sair amanhã de manhã. São só duas horas na estrada, eu vou dirigindo.

Glenn, mesmo a contra gosto, concorda com a minha decisão.

— me mantenha informado, por favor — diz, deixando um beijo em minha testa.

[. . .]

King County.

Rick e eu sempre fomos próximos e grudados. Ele esteve comigo nos meus piores momentos e foi um irmão mais velho e tanto. Devo a ele toda  minha vida, a grande mulher que me tornei foi graças a ele.  Quando eu decidi sair da casa dos meus pais  só tinha dezesseis anos. Tivemos uma briga feia e Rick me acolheu com muito amor em sua casa. Ele me deu mil e uma opções e deixou que eu escolhesse meus próximos passos. Ele me deu o meu maior presente, meu primeiro sobrinho.

Não sei o que teria sido de minha vida se eu não tivesse o meu irmão, também não quero descobrir o que será. Não quero perdê-lo, nunca, e pensar que ele está em uma mesa de cirurgia me deixa extremamente abalada. Perder outro irmão seria demais para qualquer um de nós. 

Liguei para  Shane avisando que estava na entrada da cidade e ele me enviou o endereço do hospital, ficava no centro. Dirigi pelas ruas calmas de King County e meia hora depois estou na recepção do hospital. Tudo ali me deixava nervosa. 

— oi, com licença,  pode me dar informações sobre o paciente Rick Grimes, por favor? - peço, as mãos apoiadas no balcão. A mulher me olha por um segundo, sorrindo em simpatia.

— a senhora é da família? - ela pergunta, mexendo em seu computador.

— sou irmã dele, Hannah Grimes.

Ela afirma e remexe em seus papeis e depois no sistema do hospital, checando o estado de meu irmão. 

— ainda está em cirurgia, é previsto que ela acabe em uma ou duas horas. A senhora pode esperar na sala de espera ou ir até a cafeteira, como preferir.

Deixo a mulher falando sozinha e sigo a placa que guiava até a sala de espera. Assim que piso na sala, avisto Carl deitado no colo de Lori, Lara e Shane sentados um ao lado do outro. Ando em passos largos, me aproximando deles. Lara me avista e se levanta, me abraçando.

— oi! - falo, a voz fraca e baixa como um sopro. — eu vim o mais rápido que consegui.

Lara me abraçava como se o mundo estivesse caindo, o dela realmente estava caindo, Rick estava caindo. Seus olhos estavam inchados e o rosto branco estava avermelhado, denunciando que ela já havia chorado bastante. A verdade é que eu não estava tão diferente.

— não veio de avião, veio? - Shane pergunta vendo a chave do carro balançar em minhas mãos. Nego com um aceno.

— vim de carro, pegar o próximo avião demoraria muito.

Dou um beijo na bochecha de Shane e me sento ao lado de Lori. Sua aparência é triste, está calada, seu olhar é baixo, os olhos vermelhos e o cabelo desalinhado. Parecia destruída.

— oi, Lô — sussurro, ela sorri fraco e sem ânimo, encosta sua cabeça em meu ombro — como é que ele tá?

— abalado, pegou no sono agora pouco. — acaricia o rosto do filho — não sei o que posso dizer para confortá-lo, porque também não estou confortável.

Lori sempre foi mais próxima a mim do que a Lara, afinal eu morei com ela durante seis anos, Lara voltou para a cidade no ano passado. Ela me conhece tão bem quanto meus irmãos e eu a conheço tão bem quanto conheço meus sobrinhos. Lori está arrasada e com medo, todos estamos, mas ela? Ela está um pouco mais.

Depois de algumas horas sentados naquela sala de espera horrível, um médico finalmente veio nos dar notícias sobre o caso do meu irmão. Infelizmente, não foram tão boas.

— coma? — ela pergunta, a voz se alterando. Toco em seu ombro na tentativa de acalmá-la

— sinto muito, senhora Grimes, mas o seu marido perdeu muito sangue e foi necessário induzí-lo a um coma para a melhor recuperação.

Suspiro, sabendo que não seria fácil.

— por quanto tempo? — ela pergunta

— o quanto for necessário — ele responde — o senhor Grimes tem direito a dois acompanhantes, somente a noite. Temos os horários de visita, onde poderão entrar duas pessoas por vez. Por hoje, eu aconselho que decidam quem irá ficar e amanhã resolvemos tudo com mais claresa.

Lori me olha, os olhinhos pequenos e vermelhos, iria me pedir algo.

— eu quero ficar — ela fala, a voz baixa

— eu fico com o Carl, fico com a Cams se você quiser ficar por aqui também, Larinha — digo, ela sorri agradecida

— obrigada, Hannah. A gente pode trocar amanhã, tudo bem?

Afirmo e beijo sua bochecha, dou um abraço em Lori e elas se despedem de Shane, seguem o doutor até o grande corredor e somem de nossas vistas. Suspiro, olhando para a cadeira em que Carl dormia.

— eu pego ele — Shane diz.

Deixo que ele pegue o garoto e andamos juntos para o estacionamento. Shane coloca Carl no banco de trás, ele ainda dormia, o homem prende o cinto de segurança no garoto e eu jogo a chave do carro para ele.

A casa de Peter e Clara fica há uma quadra da casa de Rick, que fica há dez minutos do hospital. Adentro o carro no banco do passageiro. Shane dirige em silêncio, não estamos com ânimo para conversa e também não quero que Carl acorde, não agora.

Depois de cinco minutos, chegamos a casa dos Monroe. As luzes estavam apagadas, mas a do quarto lá em cima ainda estava ligada, então eles ainda estão acordados.

— fique com o Carl, eu pego ela. — falo abrindo a porta.

Não dou tempo para que Shane responda, apenas saio do carro e caminho em direção a porta da casa de Clara e Peter. Toco a campainha, Peter aparece depois de alguns minutos.

— oi, Pete — forço um sorriso — vim buscar a garotinha.

Ele me dá espaço para que eu entre e fecha a porta logo em seguida.

— vem, ela está lá em cima com a Clara.

Ele me guia escada a cima. Entramos em um dos quartos, Camilla está dormindo no colo de Clara. Sorrio, seu rostinho está tão sereno.

— Larinha e Lori ficaram no hospital, ela me pediu para buscar a Cams

Ela sorri fraco e se levanta com a garotinha nos braços.

— tem notícias do Rick?

Suspiro.

— o colocaram em coma induzido, o estado é grave.

Peter solta o ar, extremamente frustrado. Clara suspira com pesar e me entrega minha sobrinha.

— e quem vai ficar com o Carl?

— eu — respondo, ajeitando Camilla em meus braços — está no carro com o Shane, dormiu faz um tempo.

Depois de contar o básico sobre o estado de meu irmão, Clara me entregou a bolsa de Camilla e me levou até a porta. Agradeci a ela por ficar com a gatinha e fui para o carro. Não coloquei Cams no banco de trás, pois não tenho cadeirinha, então eu a acomodei em meus braços até em casa.

Shane mora três casas depois da de Rick, então ele só me ajudou a colocar Carl na cama e foi para a casa dele. Coloquei Camilla em minha cama, liguei o abajur e me sentei na beirada da cama para verificar o celular, tinha cinco chamadas perdidas do Glenn. Decido ligar, já que ele provavelmente ainda está acordado.

— oi, Rhee — digo baixinho, a voz embargada e sonolenta.

— por que não me atendeu ou ligou antes? — ele pergunta apressado. — fiquei preocupado, disse que ia ligar quando chegasse na cidade.

— deixei o celular no carro, me desculpa. — massageio as pálpebras — cheguei na cidade eram quase dez.

Já passa de meia noite, é tão tarde que só as luzes dos postes estão acessas lá fora.

Explico tudo ao Glenn e aviso que não tenho data para voltar para casa, ele me questiona sobre a faculdade e eu digo que resolvo isso em outro momento, pois agora meu sobrinho mais velho está parado na porta do meu quarto e desligo o telefone.

— cadê o papai? E como chegamos na minha casa?

— sua mãe e tia Lara estão com o papai, então a tia Hannah ficou com os sobrinhos que ela tanto ama — falo, ele dá passos pequenos até mim e se senta ao meu lado na cama

— você não estava na sua casa em Atlanta, tia Hannah?

Sorrio para ele.

— eles me chamam e eu venho correndo — respondo, ele parece entender — pode dormir comigo e a Cams, se você quiser

Não preciso dizer mais nada, ele tira as pantufas e sobe para minha cama, se acomodando em baixo das cobertas. Tiro os sapatos e me engatinho para o meio, ficando entre os dois. Dormimos assim, ele agarrado em mim e Cams esparramada ao nosso lado.

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