capitulo dois

O tempo não existia ali.
Nem o vento. Nem o som.
Apenas a sensação de estar entre duas respirações — um instante que nunca termina.

Nefer abriu os olhos e viu o nada.
Areia pairava ao redor, suspensa no ar como poeira dentro de um sonho.
Acima, não havia céu.
Abaixo, nenhum chão.
Ele flutuava no espaço entre mundos — o lugar onde os deuses falam e os mortais desaparecem.

Por um momento, pensou estar morto.
Mas o silêncio o corrigiu.
Morto não sente o peso da própria vaidade, nem o gosto metálico da lembrança.

"Então é aqui que me trouxeram..."

A voz dele soou como eco distante.
O vazio respondeu — não com palavras, mas com sussurros.
Sons sem origem, vozes milenares misturadas com o próprio pulsar do deserto.

"Nefer De Nile..."
"Filho do sol e da areia..."
"Ousaste tocar o trono dos deuses..."

O som vinha de todos os lados.
Eram vozes que arranhavam o ar, ora doces, ora cruéis.
Nefer ergueu o queixo, altivo, mesmo diante do invisível.

— Se me chamam, é porque ainda me temem.

As vozes riram.
Um riso de muitos ecos, como o tilintar de ouro partido.

"Temer? Não, pequeno faraó. O medo é dos vivos. Aqui, não há nomes."

O chão — se é que existia — começou a se formar sob os pés dele.
Areia, pedra, ossos e fragmentos de templos quebrados compunham um caminho que se estendia até o infinito.
Nefer andou.
A cada passo, via memórias que não eram dele: guerras, coroações, oferendas, o sangue dos reis.

As vozes o seguiam.
Ora pareciam guiar, ora tentar confundir.

"O orgulho o trouxe aqui..."
"O mesmo orgulho que ergue impérios e os destrói."
"Queima como ouro ao sol. Belo. Inútil."

Ele parou.
A risada divina soava como vento contra vidro.
Mas Nefer não recuou.

— Orgulho é o que resta quando todos se ajoelham. — disse, a voz baixa, firme. — É o que diferencia um servo de um nome eterno.

O ar estremeceu.
As vozes silenciaram por um instante — surpresas com a ousadia.
Então, uma nova presença se fez sentir.

Do nada, um falcão de luz desceu, suas asas maiores que o horizonte.
Os olhos — dois sóis ardentes — fixaram-se nele.

"Nefer De Nile..."
"Teu nome será esquecido. A areia engolirá tua história."

Nefer ergueu o rosto.
O reflexo do deus cintilava em seus olhos.
Mas, dentro dele, algo — pequeno e impossível — brilhou mais forte.

— Pois então... que me apaguem.
Mas lembrem-se: mesmo o vento precisa de algo para apagar.
E eu sou o fogo.

O falcão rugiu.
A areia se ergueu como mar em fúria, devorando o espaço.
Nefer fechou os olhos.
E tudo se dissolveu em luz.

[...]

Quando abriu os olhos novamente, havia silêncio.
Mas não era o mesmo.
Era o silêncio depois do som.
Como o eco de algo que o mundo tenta esquecer, mas não consegue.

Nefer estava de pé, no meio do pátio principal da Academia.
O sol tocava o chão dourado.
As estátuas — os mesmos deuses que o haviam banido — pareciam observá-lo, imóveis.

Ninguém notou o instante em que ele voltou.
Os estudantes passavam, rindo, estudando, vivendo.
O mundo seguia.
Mas o ar tremia em volta dele — leve, quase imperceptível.

Ele caminhou entre eles como se nunca tivesse partido.
A marca azul ainda ardia sob o peito, agora mais discreta, mais funda, como cicatriz.
E ao passar pelo espelho de bronze da galeria, viu que o reflexo sorriu antes dele.

Parou por um segundo.
A areia do deserto lá fora sussurrou contra as janelas, como se tentasse chamá-lo de volta.
Mas Nefer apenas murmurou, baixo o suficiente para que só os deuses ouvissem:

— Não podem me apagar.
Eu sou o que resta quando a história dorme.

E então seguiu, sereno, o olhar fixo no horizonte dourado.
Atrás dele, o som distante de asas ecoou — ou talvez fosse só o vento.

Mas nos corredores de Amentet, uma sensação renascia:
a de que o impossível, por um breve instante, havia retornado.

E em algum ponto acima, talvez nas alturas onde os deuses observam o mundo, Hórus desviou o olhar.
Não por medo — mas por respeito.

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