01. World of pain

O sol da Califórnia queimava minhas bochechas quando o carro parou em frente à casa que agora eu teria que chamar de lar. Uma mansão moderna de vidro e aço se erguia diante de mim, imponente e fria, como uma jaula transparente que brilhava ao menor toque de luz. A entrada principal, ladeada por colunas de um cinza metalizado, parecia uma boca aberta, prestes a me devorar. As palmeiras alinhadas ao longo da calçada acentuavam o luxo do lugar, mas nada ali emanava calor humano.

— Vai ficar aí parada, Calista? O mundo não espera por ninguém — A voz de Silver afastou-me de meus pensamentos, e apesar de sua voz suave, havia um tom que arrepiava minha espinha. Ele estava na entrada, vestindo um terno escuro que contrastava com seus cabelos prateados. Seus olhos, sempre calculistas, me analisavam como se fosse uma peça de xadrez que ele estava prestes a mover.

Não respondi, não queria encara-lo, sabia que estava prestes a entrar num mundo de dor, sempre foi assim com ele por perto. Logo peguei minha mochila e dei os primeiros passos em direção ao homem que me aterrorizava desde que minha mãe, impulsionada por dívidas impagáveis, entregara minha custódia a ele. Uma traição silenciosa que ainda latejava no fundo do meu peito.

O interior da casa não era menos impressionante. O piso de mármore branco brilhava sob a luz que atravessava as enormes janelas. Um lustre de cristal pendia do teto como uma ameaça congelada, e as escadarias em curva levavam a um andar superior que parecia longe demais da minha compreensão. Cada detalhe, dos quadros minimalistas às estantes de vidro com prêmios e troféus reluzentes, gritava poder e controle.

— Espero que esteja pronta para o torneio. Desta vez, não aceito nada menos que a vitória —Terry falou, quebrando o silêncio com uma intimidação velada. Seu sorriso era afiado como uma lâmina, cortando qualquer resquício de esperança que eu pudesse ter de escapar daquela nova vida.

Sentia o gosto amargo da derrota antes mesmo de entrar na arena. O cheiro da casa – um misto de madeira polida e couro – se misturava com as lembranças de cada treino que me fez sangrar, cada palavra de ordem que me empurrou além do limite. Era como se os fantasmas do passado tivessem se reunido, sussurrando meu nome, trazendo de volta a imagem da minha mãe se afastando sem olhar para trás. Silver. O karatê. Tudo se fundia em um único temor.

—Vamos, a recepção acabou. É hora de trabalhar. —Terry me virou as costas e desapareceu pelo corredor, e eu soube que aquele era apenas o começo. Eu estava presa, mas não derrotada. Ainda não.

Subi as escadas, cada degrau ecoando como um tambor nos meus ouvidos. O segundo andar era espaçoso e ainda mais opulento, com corredores largos adornados por esculturas que pareciam me observar. Uma porta entreaberta revelava um salão de treino, tatames imaculados, espelhos que cobriam a parede inteira e uma estante com katanas e troféus. Um templo para a dor.

— Calista! — A voz de Terry ressoou pelo salão antes que eu pudesse absorver o ambiente. Ele estava de volta, como uma sombra persistente. — Vista isso.

Joguei o olhar para o uniforme de karatê que ele segurava, de um cinza escuro, impecavelmente limpo, como se ainda não tivesse tocado o suor de quem lutava. Peguei-o sem uma palavra, sentindo o tecido frio contra os dedos. Virei a parte de trás do tecido, vendo um enorme dragão vermelho com linhas finas traçando-o. Era intimidador.

— Lembre-se, a glória não pertence aos fracos — Ele disse, os olhos cinzentos fixos nos meus.

Eu me segurei, sentindo um vulcão de emoções borbulhar dentro de mim. Mas não era hora de explodir. A batalha maior estava por vir, e eu não esperava dele uma recepção diferente. Silver sempre viu em mim além do potencial, ele enxergou uma força, uma raiva que fora acumulada com o tempo, e ele sempre usou disso a seu favor, para que eu fosse seu astro de circo nos tatames.

Vesti o uniforme no vestiário adjacente, um espaço pequeno com paredes de azulejos brilhantes e um espelho que refletia uma versão minha que eu mal reconhecia. A garota de olhos intensos e ombros tensos não era mais a mesma que partira de sua cidade natal. Cada cicatriz mental e fisicamente gravada contava uma história que ninguém ali conhecia.

Quando voltei ao salão de treino, Terry já estava em posição, os braços cruzados, observando cada movimento meu. Ao lado dele, um grupo de alunos do dojô o acompanhava com olhares de admiração e medo, havia um sensei, um homem de traços asiáticos e um sorriso sádico formado nos lábios. Terry nunca suja suas mãos, nem mesmo durante os treinos, ele prefere nos observar sofrer. Desde que alcancemos a vitória, nada mais importa. E tudo isso a custo de que? Uma vingança? Eu é quem devo me vingar por tudo o que ele tem feito comigo nos últimos dezessete anos da minha vida.

— Hoje, veremos o que você realmente pode fazer — Ele afirmou, sua voz ressoando com uma mistura de expectativa e desafio.

Respirei fundo, sentindo o coração martelar no peito. O peso do passado, das promessas quebradas e dos medos reprimidos, parecia dobrar meus joelhos. Mas eu sabia que, se havia um momento para lutar por mim mesma, era agora.

⋆౨˚ ˖

Iron Dragons, é como se chamam. E acho que hoje eu realmente pude provar a fúria do dragão.

Ainda que eu tenha feito alguns amigos pelo percurso, como Axel e Zara — os líderes, que souberam lidar com a novata melhor do que o sensei —, o que passei nessas cinco horas de treino foi equivalente aos anos de treino com Silver. O Sensei Wolf possui métodos que eu sequer poderia dizer serem permitidos.

Ele nos averiguou a cada troca de movimentos, e a cada deslize cometido, ele tinha sua própria maneira de nos ensinar a como não cometermos o mesmo erro. Carregando em mãos uma extensa vareta de madeira densa, nos mostrou de todas as maneiras possíveis a como sentir dor.

Voltar para casa traz à tona todos os meus pesadelos, e intensifica-os, mas talvez esse seja o preço por eu ter sido um nascimento tão inconveniente, afinal. Se minha mãe tivesse controlado seus péssimos hábitos de ser uma grande interesseira, eu jamais viveria o terror que passarei a viver com esse homem, e isso é apenas o começo.

— Cali — Zara me chamou, colocando a mão em minhas costas, o que me fez soltar um estalo com a língua, afinal, eu teria ali alguns novos hematomas graças ao brinquedinho de tortura do sensei —, o torneio é em três dias, precisa ser forte para aguentar esse treinamento. Só a força nos fará vencer.

— Eu adoraria dar o gostinho da derrota para ele — Afirmei com os dentes cerrados, estreitando os olhos na direção de Silver, que me devolveu um sorriso sínico, então voltei a olhar para Zara —, mas descontar a raiva que estou sentindo vai ser muito, muito melhor.

— Vamos, se apressem — Silver bateu duas palmas, reunindo rapidamente todos os alunos até o centro do tatame — Partiremos nessa madrugada para Barcelona. Espero que estejam bastante dispostos para o treino de amanhã, porque será dez vezes pior.

Obra autoral ©

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