ㅤㅤ─── 𝗣𝗥𝗢𝗟𝗢𝗚𝗨𝗘; 𝗚𝗼𝘀𝘁𝗼 𝗮𝗺𝗮𝗿𝗴𝗼.
Bitter heart.
Years ago.
˙ · ٠ • ● 𓃠 ● • ٠ · ˙
O estalar seco da porta ecoou pela imensa sala de estudos quando o mestre de magia saiu, as vestes longas esvoaçando em seu movimento impaciente. Sua silhueta sumiu pelo corredor, deixando para trás um ambiente suspenso entre o alívio e a inquietação. Os aprendizes, sentados em fileiras ordenadas, trocaram olhares cúmplices, alguns voltando rapidamente à leitura de seus pergaminhos, enquanto outros sussurravam encantamentos experimentais, tentando não chamar atenção. O ar era impregnado pelo cheiro de pergaminhos envelhecidos, velas de sebo e um leve toque metálico da magia em prática.
No fundo da sala, porém, onde a luz das janelas mal alcançava, dois pequenos aprendizes estavam alheios a tudo isso. Charlotte e Howl, ambos inclinados sobre um grimório poeirento de capa de couro rachada, examinavam com fascínio um conjunto de runas entalhadas na página amarelada. Seus ombros quase se tocavam enquanto seguiam cada símbolo com os dedos, os olhos brilhando de excitação. Entre eles, sobre a mesa compartilhada, um pequeno girino negro se debatia preguiçosamente dentro de uma poça d’água recém-evaporada da ponta dos dedos de Howl.
—— Está pronto? — sussurrou o menino, com um meio sorriso travesso.
Charlotte apenas acenou, os olhos fixos na criaturinha.
Howl estendeu a mão sobre o girino e murmurou o encantamento. Seu tom de voz era firme, porém brincalhão, como se aquilo fosse apenas um jogo fácil. No instante em que as palavras deixaram seus lábios, uma cintilação azul serpenteou como um fio de névoa etérea entre seus dedos e mergulhou na pele viscosa da criatura. O efeito foi imediato — as patas traseiras começaram a se formar, seguidas pelas dianteiras, e, em questão de segundos, o girino já era um sapo completamente desenvolvido. A pequena criatura, agora robusta e brilhante, deu um pulo ágil, escapando para o centro da mesa com um coaxar satisfeito.
—— Consegui! — Howl exclamou, com um brilho vitorioso no olhar.
Charlotte cruzou os braços e arqueou a sobrancelha. Aquilo parecia fácil demais. Seu orgulho e competitividade falaram mais alto. Sem hesitar, ela se inclinou para o lado, pegando outro girino do aquário, mas sem tocá-lo diretamente — usou um amuleto encantado, uma delicada pinça de cristal azul-claro, feita para manipular pequenos ingredientes mágicos sem risco de interferência. Com precisão, colocou a criatura sobre a mesa e respirou fundo.
Se Howl conseguira, ela também conseguiria.
Charlotte fechou os olhos por um segundo e murmurou as mesmas palavras, sentindo a energia pulsar em sua pele antes de fluir até o girino. O efeito foi instantâneo, mas, desta vez, algo estava diferente.
A criatura começou a se transformar — as patas surgiram, os olhos saltaram, mas então, em vez de parar no tamanho natural, o sapo continuou crescendo.
—— Hã... — Howl inclinou a cabeça. — Isso é normal?
Charlotte franziu a testa, sentindo um pequeno arrepio na nuca. Definitivamente não. O sapo inchava como um balão, sua pele se esticando de forma absurda. O coaxar tornou-se um som estranho, distorcido, como se ecoasse dentro de uma caverna oca. Os outros aprendizes começaram a notar a cena, alguns se afastando cautelosamente, outros espiando por cima dos livros com expressões entre a curiosidade e o pavor.
—— Charlotte, você exagerou na dose — murmurou Howl, segurando um riso.
—— Não seja bobo, eu só...
PLOFT!
O sapo explodiu em uma nuvem úmida e gosmenta, um som grotesco de ar comprimido sendo liberado preencheu a sala, seguido pelo espirro de pequenos respingos viscosos por toda a mesa.
O silêncio que se seguiu foi absoluto.
Charlotte piscou, surpresa. Howl arregalou os olhos, então soltou uma risada contida. Em menos de dois segundos, ambos estavam gargalhando, segurando-se na mesa para não desabar no chão. O choque inicial deu lugar a um divertimento incontrolável, as risadas ecoando pelo ambiente como sinos desajustados.
Mas a diversão durou pouco.
Passos pesados ecoaram pelo corredor, a sombra do mestre se movendo rapidamente pela soleira da porta.
Os dois trocaram um olhar veloz.
Correr.
Howl puxou Charlotte pelo pulso e os dois dispararam porta afora antes que o mestre pudesse entrar, derrubando o grimório no chão em sua fuga. Seus risos se misturavam ao som de seus passos pelo corredor de pedra, e mesmo quando alcançaram o jardim do palácio, ofegantes, ainda sorriam pelo caos que haviam causado.
O ar fresco do jardim os recebeu como um abraço, trazendo consigo o perfume sutil das ervas encantadas que cresciam nos canteiros de pedra. O sol da manhã filtrava-se pelas folhas das árvores retorcidas, criando sombras dançantes no chão de mármore esverdeado pelo tempo. O som distante de fontes mágicas murmurando em sintonia com o vento trazia uma sensação de liberdade que contrastava com a rigidez das paredes de pedra do castelo.
Charlotte e Howl pararam por um instante, as respirações ofegantes entremeadas por risos ainda vibrando em seus peitos. O calor da correria ainda formigava em seus corpos, mas a euforia da travessura bem-sucedida era mais intensa do que qualquer cansaço.
—— Você viu a cara deles? — Howl arquejou, dobrando-se levemente, as mãos apoiadas nos joelhos enquanto tentava recuperar o fôlego. Seus olhos ainda brilhavam com um divertimento quase infantil, como se aquela fosse a maior vitória de sua vida. — Eu juro que um dos aprendizes quase desmaiou!
Charlotte que segurava o pulso dele agora, os dedos tremendo levemente, não de medo, mas da adrenalina e da excitação. A explosão do sapo fora um desastre mágico, mas também… incrível.
—— E o mestre? — ela disse, ofegante, mas incapaz de segurar um sorriso malicioso. O peso da repreensão ainda não os alcançara, e por enquanto, tudo era pura diversão. — Aposto que se tivéssemos esperado um segundo a mais, ele teria nos transformado nos próximos girinos!
Howl jogou a cabeça para trás e riu, um som claro e despreocupado que combinava com o céu aberto acima deles. Com um movimento ágil, ele se jogou na grama macia, cruzando as mãos atrás da cabeça, os cabelos negros espalhando-se sobre a relva como tinta recém-derramada. Ele parecia completamente alheio ao fato de que, dentro do castelo, o mestre provavelmente estava se recuperando do choque e tramando alguma punição para os dois.
Charlotte observou ao redor, os sentidos ainda aguçados pela adrenalina da fuga. O jardim era vasto e isolado, cercado por sebes altas e arcos cobertos de trepadeiras mágicas que se moviam sutilmente ao sabor do vento. Ali, estavam seguros de olhares repreensivos. Com um suspiro satisfeito, sentou-se ao lado de Howl, dobrando os joelhos e repousando os cotovelos sobre eles, sentindo o cheiro fresco da grama úmida abaixo de si.
—— Como você conseguiu fazer aquilo tão rápido? — ela perguntou, olhando para ele de soslaio. Seu tom era quase desafiador, carregado de uma curiosidade que não conseguia ignorar. — Seu feitiço foi perfeito.
Howl abriu um meio sorriso, ainda encarando o céu, como se a pergunta fosse desnecessária.
—— Fácil. Eu só senti a magia, deixei que fluísse — ele respondeu, com um tom casual, como se fosse a coisa mais natural do mundo.
Charlotte franziu a testa. Sentir a magia? Para ela, a feitiçaria sempre fora um jogo de lógica e controle, algo que exigia concentração, precisão e disciplina. Mas Howl… ele era diferente. Parecia dançar com a magia, brincar com ela, sem medo de errar.
—— Você não segue nenhuma fórmula? Nenhum método? — insistiu.
—— E você segue? — Howl desviou o olhar do céu para ela, os olhos azuis faiscando com um misto de desafio e brincadeira.
Charlotte abriu a boca para protestar, mas fechou em seguida. Ele sabia a resposta. Ela tentava seguir, mas algo sempre escapava. Havia um brilho rebelde nela, uma fagulha de caos que a impedia de ser como os outros aprendizes.
E talvez fosse por isso que ela e Howl se entendiam tão bem.
—— Vamos fazer outra coisa — Howl disse abruptamente, sentando-se de um pulo. Seus olhos brilhavam com um entusiasmo incontrolável. — O que acha de testar um feitiço novo?
Charlotte arqueou uma sobrancelha, cruzando os braços com desconfiança.
—— Você quer explodir mais alguma coisa — Ele deu de ombros.
—— Quem sabe? — Ela revirou os olhos, mas sorriu.
—— Está bem. Mas desta vez, eu escolho o feitiço.
Howl se inclinou para mais perto, os cabelos negros caindo levemente sobre o rosto.
—— Estou ouvindo, Lady Charlotte. O que tem em mente?
Charlotte abriu a boca para responder, mas antes que pudesse sequer formar uma palavra, uma voz firme e autoritária cortou o ar como um chicote.
—— Charlotte.
Ela congelou no mesmo instante.
O tom não era de fúria, mas de comando, e Charlotte reconheceria aquela voz em qualquer lugar. Sua mãe.
Suliman surgiu à entrada do jardim, a longa túnica azul-real esvoaçando ao seu redor como um espectro de prestígio e poder. Seu olhar era agudo, como se pudesse enxergar através de cada travessura antes mesmo que fossem cometidas. Apesar de sua presença imponente, Suliman não era cruel, nem mesmo excessivamente rígida. Mas ela era uma mulher de regras, uma conselheira do rei e uma das feiticeiras mais respeitadas do reino. Sua palavra era lei, e Charlotte sabia que não havia espaço para discussões.
—— Você precisa voltar para dentro do castelo — Suliman continuou, os olhos percorrendo brevemente Howl com um olhar avaliador, mas sem surpresa. Claramente, ela já esperava que ele estivesse envolvido em seja lá o que sua filha tivesse aprontado. — Há muito o que fazer. Precisamos partir ao pôr do sol para o reino de Eldoria. O rei solicitou nossa presença para auxiliar na negociação de um tratado mágico.
Charlotte prendeu a respiração por um momento, sentindo o gosto amargo da obrigação apagar a doçura da diversão.
Howl, ao seu lado, manteve o silêncio, mas ela pôde sentir o olhar dele sobre si, analisando sua reação. Ele sabia o que aquilo significava: o fim da brincadeira.
Charlotte hesitou, mas sabia que não adiantava argumentar. Ela se levantou lentamente, dando um último olhar para Howl, que permanecia sentado na grama, agora com um sorrisinho de canto, como se dissesse "te vejo depois".
Suliman se virou sem esperar por mais protestos, e Charlotte a seguiu, sentindo a relva fria sob seus pés, carregando consigo o peso das responsabilidades — e a promessa de que, assim que voltasse, ela e Howl fariam algo ainda mais grandioso.
Um dia depois que havia partido, Charlotte retornava para o Castelo com a madame Suliman, sentindo-se completamente exausta. Ela desejará firmemente ter ficado com Howl, passando horas treinando ao seu lado, como sempre faziam, para realizar seus sonhos de serem feiticeiros formidáveis. Ao invés de ter passado horas escutando palestras dos conselheiros e magos do reino de Eldoria para realizar o tratado de magia. palavras carregadas de política, regras e promessas vazias. A diplomacia nunca fora seu forte.
Assim que a carruagem finalmente parou em frente à escadaria principal do castelo, Charlotte soltou um suspiro baixo, sentindo o peso da viagem escorrer de seus ombros, dando lista para uma pequena felicidade de poder estar em casa. Assim que o cocheiro abriu a porta, ela desceu, os pés tocando o chão de pedra com um leve estremecimento. O vento noturno soprou contra seu rosto, trazendo consigo o cheiro familiar do castelo.
Suliman desceu logo em seguida. Durante toda a viagem de volta, sua mãe estivera calada. Não por frieza, mas por um hábito que Charlotte conhecia bem. Suliman falava quando necessário, e seu silêncio nunca era realmente vazio. Ainda assim, Charlotte sentiu os olhos da mãe sobre si mais de uma vez. Aquela sensação constante de ser avaliada, analisada. Ela se perguntava se a mãe via nela uma sucessora digna ou apenas uma jovem impaciente demais para carregar o peso da magia com a devida responsabilidade.
O silêncio se manteve enquanto ambas subiam a escadaria. Os passos de Charlotte eram leves, apressados, enquanto os da mãe eram calculados, firmes. Assim que chegaram ao topo, diante do grande portão dourado do castelo, Charlotte soltou um sorriso pequeno e travesso para a mãe, como se aquele simples gesto pudesse dissipar qualquer expectativa que recaísse sobre ela.
Antes que Suliman dissesse algo, Charlotte se virou rapidamente e saiu em disparada pelos corredores.
Ela se movia com destreza, os pés deslizando pelo chão polido do castelo, desviando de criados e outros aprendizes sem se importar com os olhares surpresos que recebia. O caminho até os dormitórios era familiar como a palma de sua mão, cada curva, cada tapeçaria pendurada, cada estátua de antigos magos que observavam sua passagem com olhos inertes.
Ela não queria perder tempo.
Queria contar tudo para Howl.
Como havia sido um inferno ficar sentada, ouvindo velhos de barbas longas falarem sobre tratados e política. Como desejava ter praticado magia o dia inteiro ao invés de fingir interesse em cerimônias que, no fundo, não faziam diferença para ela. Ele entenderia. Ele sempre entendia.
Quando chegou diante da porta do dormitório, bateu com força, sem hesitação.
Esperou apenas alguns segundos antes que a porta se abrisse. Mas, em vez do rosto familiar de Howl, um aprendiz qualquer apareceu, o olhar cansado e indiferente.
Charlotte franziu o cenho.
—— Onde ele está? — perguntou diretamente, ainda recuperando o fôlego.
O aprendiz piscou, confuso. Então, seus olhos brilharam levemente com algo que Charlotte não conseguiu identificar de imediato. Incerteza? Pena?
—— Howl… não está mais aqui.
A resposta caiu como uma rocha sobre o peito de Charlotte.
Ela piscou, sentindo o estômago revirar, mas se recusando a aceitar de imediato.
—— O quê? — Sua voz saiu firme, mas não disfarçou o tom incrédulo.
—— Ele fez as malas e partiu. Não disse para onde ia. Apenas… foi embora. — O aprendiz coçou a nuca, um tanto desconfortável.
Ela não sabia o que dizer. Apenas virou-se e retornou ao quarto, sentindo-se completamente sem chão. Sua mente estava um caos — não sabia o que pensar, o que dizer ou como reagir. Howl sempre esteve ao seu lado. Desde que conseguia se lembrar, ele fazia parte de sua vida, como uma constante silenciosa, um porto seguro. Eram melhores amigos, inseparáveis. Ele a ajudava a evoluir a cada dia, incentivava seu crescimento, guiava seus passos para que um dia ela se tornasse alguém de quem Madame Suliman pudesse se orgulhar.
Por isso, era estranho. Estranho demais. Inaceitável, até.
A ideia de que ele simplesmente se fora, sem explicações, sem despedidas, a atingia como um golpe implacável.
Charlotte deixou-se cair ao chão, os joelhos dobrados, as mãos pressionadas contra o rosto, tentando conter as lágrimas. O peso da ausência de Howl esmagava seu peito. Se ao menos tivesse ficado… Se não tivesse partido para Eldoria, talvez pudesse ter impedido sua partida. Ou, ao menos, teria tido a chance de se despedir.
Continued
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top