prólogo

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A neve caía implacável sobre a cidade, cobrindo telhados e ruas com um manto branco e frio que parecia sufocar qualquer traço de calor ou alegria. O caos em Nárnia tinha uma única origem: a Feiticeira Branca. Sua presença era um lembrete constante de que o inverno eterno não era apenas uma estação, mas um símbolo de sua tirania.

Dentro de um pequeno casebre na periferia do vilarejo, Vell estava escondido. Seus joelhos pressionavam contra o peito enquanto ele se apertava no interior de um armário desgastado, cujo cheiro de madeira antiga misturava-se ao aroma de ervas secas penduradas no teto. A luz fraca que penetrava pelas frestas do móvel revelava apenas sombras inquietas, mas o jovem não ousava se mover. Seus olhos, arregalados e atentos, observavam pelo vão entre as tábuas mal encaixadas.

Lá fora, os passos firmes da comissão da Feiticeira ecoavam na neve dura, acompanhados pelo som de armaduras rangendo e vozes ásperas que berravam ordens. Os soldados da Feiticeira não estavam apenas patrulhando; estavam vasculhando. A cada batida de porta ou barulho de móveis sendo revirados, o coração de Vell disparava. Ele sabia que, se fosse encontrado, não haveria misericórdia. A Feiticeira não perdoava aqueles que desafiavam sua autoridade – e ele havia sido imprudente o suficiente para ajudar um grupo de faunos fugitivos dias antes.

O armário era pequeno, apertado e mal ventilado, mas oferecia a única chance de sobrevivência naquele momento. Cada som parecia amplificado: o estalo da madeira, o roçar de sua própria respiração, e, mais distante, o uivo do vento que varria a paisagem congelada. De repente, uma voz cortante, quase animalesca, se destacou.

— Verifiquem aquele casebre! Não deixem pedra sobre pedra!

Vell sentiu um calafrio que nada tinha a ver com o frio ao ouvir o comando. A porta da casa foi escancarada, e ele quase deixou escapar um som ao ouvir os pesados passos entrarem. Os soldados começaram a vasculhar o pequeno espaço, movendo cadeiras, derrubando panelas, destruindo o que encontravam no caminho. Cada golpe contra os móveis fazia o coração de Vell pulsar em sua garganta. Ele tentou controlar a respiração, tornando-a lenta, quase inexistente.

O cheiro forte de lã molhada dos mantos dos soldados se aproximava. Um deles parou tão perto do armário que Vell pôde ver as sombras de seus pés através da fresta. O silêncio dentro do esconderijo era insuportável. Segundos se arrastavam como horas.

De repente, um ruído estridente rompeu o momento: o som de algo caindo do lado de fora. Um dos soldados rosnou uma ordem, e eles deixaram o casebre às pressas para investigar a origem do som. Vell permaneceu imóvel, incapaz de acreditar em sua sorte, mas sabendo que não poderia se dar ao luxo de relaxar.

Quando o barulho lá fora se dissipou, ele soltou um suspiro trêmulo e repousou a testa contra a madeira áspera. A neve continuava a cair lá fora, fria e silenciosa como a sombra da Feiticeira, mas por ora, ele tinha sobrevivido.

O som de passos cresceu, cada batida reverberando como um tambor em seus ouvidos. Vell prendeu a respiração, os músculos tensos como se fossem romper. Ele mal ousava piscar. Então, a porta do armário foi escancarada com um estrondo. Um grito de desespero e susto escapou de seus lábios antes que pudesse contê-lo, ecoando no pequeno espaço.

Por um momento, tudo o que ele viu foi a figura recortada contra a luz pálida que entrava pela janela. Suas mãos se ergueram instintivamente, como se pudessem afastar o que viesse.

— Calma, Vell! — disse uma voz firme, mas tranquila.

Os olhos de Vell focaram na figura, e ele reconheceu o fauno que havia ajudado dias antes. Era Derien, suas feições suaves contrastando com a tensão do momento. O fauno segurava a porta do armário aberta com uma mão, enquanto a outra repousava no próprio peito, tentando demonstrar que não havia perigo.

— Tudo bem, eles já foram. — A voz de Derien era baixa, quase um sussurro, mas cheia de convicção. — Você está seguro agora.

O alívio tomou conta de Vell como uma onda morna, e seus ombros relaxaram. Ele soltou um suspiro trêmulo, percebendo só então o quanto seus músculos doíam por terem ficado tão rígidos.

— Você me assustou — murmurou Vell, tentando recuperar o fôlego.

Derien arqueou uma sobrancelha com um meio sorriso que parecia uma tentativa de aliviar a tensão.

— Bem, você parecia precisar de um susto menor, comparado ao que estava esperando. — Ele estendeu a mão para ajudar Vell a sair do armário.

Enquanto Vell se erguia, ainda sentindo o corpo trêmulo, percebeu a expressão séria no rosto do fauno.

— Eles vasculharam cada canto da vila. Estão mais perto do que imaginávamos. Temos que sair daqui antes que voltem.

A realidade do perigo voltou a pesar, mas Vell encontrou nos olhos de Derien uma determinação que o ajudava a conter o medo crescente. Ele assentiu, sabendo que precisava confiar nele.

— Para onde vamos? — perguntou Vell, sua voz mais firme agora, mesmo que o coração ainda martelasse em seu peito.

Derien lançou um olhar rápido para a janela antes de responder:

— Para a floresta. Não temos escolha. Lá, o inverno dela não é tão forte... e temos aliados.

[...]

Vell envolvia-se em um casaco espesso e quente que protegia seus ombros do frio cortante. As botas de inverno rangiam suavemente contra a neve enquanto ele caminhava, cada passo afundando na superfície branca e macia. Uma touca grossa cobria sua cabeça, destacando ainda mais o rubor intenso em suas bochechas causado pelo ar gelado. Nas costas, sua mochila pendia pesada, carregada com provisões cuidadosamente organizadas para suportar uma longa e árdua caminhada. Ele sentia o peso não apenas dos suprimentos, mas também da responsabilidade de sobreviver.

Ao seu lado, Derien caminhava com passos leves e fluidos, como se o frio não tivesse efeito algum sobre ele. Diferente de Vell, o fauno vestia roupas mais leves, com um manto fino que lhe caía sobre os ombros e não parecia oferecer muita proteção. Sua pele, no entanto, era resistente às intempéries, um traço natural de sua espécie. O movimento de suas patas na neve era quase silencioso, como se ele estivesse em perfeita harmonia com a paisagem ao redor.

Derien olhou para os arredores, os olhos atentos a qualquer sinal de perigo, enquanto sussurrava:

— Vamos caminhar durante a noite e descansar durante o dia. — Sua voz era baixa, quase um murmúrio, mas cheia de determinação. — Fale o mínimo, e apenas quando necessário. As árvores... — Ele lançou um olhar para as copas congeladas que se erguiam mais à frente. — Elas escutam.

Vell franziu o cenho, mas não ousou questionar. A simples menção de que as árvores podiam ouvir era o suficiente para arrepiar os pelos de sua nuca. Ele sabia que Derien entendia a magia e os perigos daquela terra muito melhor do que ele.

Quando deixaram o vilarejo para trás, a paisagem se transformou em algo ainda mais desolador. As casas de pedra cobertas de neve deram lugar a vastos campos brancos, com árvores retorcidas que se erguiam como sentinelas sombrias contra o céu cinzento. O silêncio era quase absoluto, quebrado apenas pelo som dos passos de Vell e o leve farfalhar do vento.

Derien, com sua postura ereta e andar confiante, era um guia silencioso, seus olhos escaneando a escuridão à frente. A cada sombra ou movimento, ele parava por um breve instante, como se estivesse sintonizando sua audição para captar sons que Vell nem sequer notava.

— Quanto tempo até chegarmos à floresta? — Vell arriscou perguntar em um sussurro, sua respiração saindo em pequenos vapores que desapareciam no ar gelado.

— Se mantivermos o ritmo, antes do amanhecer estaremos lá. — Derien olhou de soslaio para Vell, avaliando seu cansaço. — A floresta não é segura, mas é melhor do que o alcance dos espiões da Feiticeira.

O jovem assentiu, ajustando a mochila nos ombros. Ele sentia o frio penetrando mesmo através de suas roupas pesadas, mas manteve-se firme. Não havia espaço para fraqueza naquele mundo onde o inverno nunca acabava e o perigo espreitava em cada sombra.

A vastidão diante deles parecia interminável, e Vell percebeu que essa jornada não seria apenas uma travessia física. Era um teste de sua resistência, coragem e confiança no fauno ao seu lado.

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