cap. três

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— Um dia, os Filhos de Adão e as Filhas de Eva retornaram a Nárnia e salvaram o país do inverno eterno, derrotando a Feiticeira Branca. — A voz de Derien soava baixa, quase um murmúrio, mas cada palavra carregava um peso que parecia ecoar entre as árvores. Ele caminhava à frente de Vell com passos firmes, seus cascos marcando a neve enquanto narrava a história com a solenidade de quem a carregava como parte de si.
Vell, mesmo lutando contra o cansaço e o frio, ouvia com atenção. O tom de Derien parecia conter mais do que simples palavras; havia um tipo de melancolia e esperança que capturavam sua curiosidade.
— E? — Ele perguntou, a palavra escapando de seus lábios em um sopro de fumaça no ar gelado.
Derien parou por um instante e virou-se levemente, lançando um olhar por cima do ombro. Seus olhos brilhavam com uma intensidade que Vell não conseguia decifrar.
— E o inverno chegou ao fim. — Ele deu um sorriso breve, quase nostálgico, antes de erguer o rosto para o céu. A brisa que soprou nesse momento parecia diferente, mais suave, carregando consigo o leve aroma de terra molhada e renovação. — Está sentindo, garoto? — perguntou com a voz mais baixa, como se temesse quebrar o encanto daquele instante.
Vell ergueu o olhar, franzindo as sobrancelhas. Ele não tinha certeza do que deveria sentir, mas algo estava mudando. O frio, embora ainda presente, não parecia tão opressor. A neve sob seus pés já não parecia tão impenetrável.
— É a brisa do verão. — continuou Derien, agora parando por completo e voltando-se para o garoto. — Eu me lembro dela... de como o calor retornava às colinas, do som das folhas balançando ao vento. — Sua voz ganhou um tom distante, quase como se estivesse revivendo memórias enterradas. — Isso foi há muito tempo... cem anos, talvez mais. Eu era jovem, tolo, e o mundo parecia tão cheio de vida.
Vell inclinou ligeiramente a cabeça, intrigado. Ele nunca ouvira o fauno falar sobre seu passado com tanta clareza, e o misto de nostalgia e saudade em sua voz era quase tangível.
— Cem anos? — Vell repetiu, como se tentasse compreender a vastidão do tempo que Derien mencionava.
— Sim. Cem anos, garoto. O inverno é longo, mas nunca é eterno. — Derien fez uma pausa, respirando fundo, como se quisesse absorver aquela brisa com toda a sua alma. — E quando o verão chega... ah, ele traz mais do que calor. Ele traz esperança, vida, e o som das risadas que quebram o silêncio opressor do gelo.
Vell olhou ao redor, tentando enxergar nos contornos da floresta o que Derien parecia sentir tão claramente. Não havia risadas, nem flores brotando ainda, mas, por alguma razão, ele não duvidava. A voz do fauno carregava a certeza de alguém que já vivera o suficiente para conhecer os ciclos imutáveis da vida.
— Então o inverno está mesmo acabando? — perguntou, com um leve toque de esperança em sua voz.
Derien assentiu, um sorriso tranquilo surgindo em seus lábios.
— Está. Só precisamos resistir um pouco mais.
E, com isso, ele voltou a andar, os passos firmes e resolutos enquanto Vell o seguia, o coração aquecido por uma promessa que, mesmo sem provas tangíveis, parecia mais real do que o próprio inverno ao seu redor.
[...]
Derien deixou um riso escapar, suave e espontâneo, como se o próprio ar ao seu redor carregasse algo leve e promissor. Ele olhou por sobre o ombro, observando Vell, que caminhava mais atrás, chutando distraidamente a neve aos seus pés. O garoto parecia perdido em pensamentos, o semblante cansado, mas ainda determinado.
— Com fome, garoto? — perguntou, a voz carregando um tom descontraído, mas com a familiar preocupação de quem já conhecia bem o companheiro de viagem.
Vell levantou os olhos e deu de ombros, seu rosto uma mistura de cansaço e indiferença.
Derien riu novamente, um som que parecia vibrar no ar, quase como uma canção esquecida despertando. Ele virou-se completamente e apontou para o bosque à frente.
— Sabe o que é bom que vem com o verão e a primavera? — Sem esperar resposta, caminhou até uma árvore próxima, seus dedos ágeis retirando um fruto de um galho baixo. Ele ergueu a maçã, que parecia quase brilhar à luz suave do amanhecer. — Maçãs! — exclamou com entusiasmo, lançando o fruto em direção a Vell.
O garoto, pego de surpresa, estendeu as mãos e conseguiu agarrá-lo no ar. Ele encarou a maçã por um instante, o brilho vermelho refletindo em seus olhos, e então olhou para Derien com uma mistura de incredulidade e gratidão.
— Acho que já pode tirar esse casaco pesado. — Derien deu um passo para o lado, os olhos brilhando de satisfação ao apontar o cenário que se revelava à frente. — Não vai mais precisar dele.
Vell, ainda segurando a maçã, caminhou devagar na direção do fauno. Mas foi o que ele viu ao ultrapassar o ponto onde Derien estava que fez seus olhos se arregalarem de espanto.
A neve, antes onipresente e sufocante, havia ficado para trás. O branco gélido deu lugar a um tapete verde vibrante que se estendia até onde a vista alcançava. Árvores imponentes erguiam-se ao redor, suas folhas frescas sussurrando ao toque da brisa morna. Flores de cores exuberantes surgiam em tufos, espalhando um perfume doce e convidativo que preenchia o ar. Era como se o mundo tivesse mudado em um piscar de olhos, trocando o silêncio do inverno pelo murmúrio da vida.
— Bem-vindo a Nárnia, garoto. — A voz de Derien rompeu o momento, carregada de emoção. Ele abriu um sorriso largo, os olhos fixos no horizonte. — A verdadeira Nárnia.
Vell ficou parado por alguns instantes, tentando absorver tudo aquilo. Ele nunca imaginara que o inverno pudesse acabar tão repentinamente, muito menos que o mundo pudesse se transformar em algo tão... vivo. Ele levou a maçã à boca, mordendo-a sem pensar. O gosto doce e fresco do fruto parecia refletir o próprio cenário, e pela primeira vez em muito tempo, um sorriso tímido surgiu em seu rosto.
— Então isso é Nárnia de verdade? — perguntou, a voz carregada de curiosidade e reverência.
Derien assentiu, colocando as mãos nos quadris enquanto inspirava profundamente o ar cálido.
— Sim, garoto. Isso é Nárnia. O inverno não pode apagá-la completamente. — Ele deu um passo à frente, gesticulando para que Vell o seguisse. — Venha, há muito para explorar e ainda mais para entender.
Enquanto os dois avançavam, deixando para trás o limite entre o inverno e a primavera, Vell percebeu que cada passo parecia mais leve, como se o peso que carregava em seu coração também estivesse derretendo junto com a neve.
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