cap. doze

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Eles festejaram.

A celebração pela morte de Aslan e de Vell fora ensurdecedora. Risinhos de escárnio e gritos de vitória ecoaram pela noite enquanto os corpos eram deixados para trás, abandonados como troféus macabros. A camiseta de Vell estava empapada em sangue, o tecido outrora branco agora era uma mancha escura e grotesca. Seu corpo flácido, pálido como a própria morte, parecia menor do que nunca, quase como se o peso da vida tivesse sido arrancado dele à força.

Ainda estava escuro quando Lúcia e Susana se aproximaram. A grande festa havia terminado há poucos minutos, e o silêncio da madrugada invadira o lugar. As tochas foram apagadas, mergulhando a área em uma penumbra pesada, onde a única luz vinha do céu sem lua e das brasas ainda fumegantes.

Lúcia segurava um pequeno frasco de cristal, dentro dele o brilho suave da flor-de-fogo pulsava, como uma última fagulha de esperança. Ela olhou para o frasco, hesitante, como se aquele brilho fosse sua única chance de desafiar o destino.

— É tarde demais — disse Susana, a voz rouca, quase um sussurro. — Eles se foram.

Lúcia ergueu os olhos para a irmã, lágrimas escorrendo pelo rosto sujo.

— Eles sabiam o que estavam fazendo — continuou Susana, tentando soar firme. Mas a rigidez em sua voz falhou. Como poderia consolar Lúcia, quando nem ela encontrava consolo em si mesma?

Lúcia desviou o olhar para Vell. Ele estava pendurado pelos braços, o corpo imóvel balançando levemente ao sabor da brisa. A cabeça tombada para frente escondia o rosto ferido sob os cabelos negros e despenteados. Era um retrato de derrota, de um sacrifício que ainda parecia impossível de aceitar.

— Vamos tirá-lo dali — Lúcia disse de repente, sua voz um fio de determinação em meio à dor.

Sem esperar resposta, ela caminhou até Vell, suas mãos trêmulas começando a mexer nas cordas que prendiam os pulsos do menino. Susana, relutante, seguiu-a. Enquanto Lúcia cortava as amarras, Susana segurava o corpo flácido do garoto. Ele era incrivelmente leve para alguém de 12 anos, como se o peso de sua existência tivesse sido drenado.

Assim que as cordas cederam, o corpo de Vell caiu suavemente nos braços de Susana, que o deitou ao lado de Aslan. O grande leão permanecia imóvel, seu corpo robusto ainda preso por grossas cordas, enquanto a crina dourada se espalhava ao redor dele como uma auréola apagada.

— Olhe — sussurrou Lúcia, apontando para algo no canto.

Pequenos ratos começaram a surgir. Suas patas rápidas e delicadas percorriam o corpo de Aslan, mordendo as cordas que o prendiam. Era uma cena estranha e improvável: criaturas tão pequenas e frágeis desafiando as amarras que aprisionavam o Rei de Nárnia.

— Eles estão soltando ele — Lúcia disse, sua voz carregada de esperança e surpresa.

Susana ficou em silêncio, observando os pequenos animais trabalharem com uma dedicação quase sobrenatural. Talvez, naquele momento, ambas perceberam que a história ainda não havia terminado.

...

As duas meninas permaneceram ao lado dos corpos até que o sol finalmente começou a surgir no horizonte. A luz dourada se espalhava preguiçosamente pela planície, como se o próprio amanhecer hesitasse em tocar aquele cenário de desolação.

O silêncio era opressivo, quase ensurdecedor, quebrado apenas pelo som ocasional do vento entre as árvores. Foi Susana quem finalmente teve coragem de falar, sua voz um sussurro rouco que parecia desrespeitar a solenidade do momento:

— Temos que ir — disse, com os olhos fixos no céu que clareava. — Precisamos avisar os outros sobre a guerra.

Lúcia, sentada com os joelhos dobrados junto ao corpo, balançou a cabeça em negação.

— Não podemos deixá-los aqui. — Seus olhos vermelhos de choro se voltaram para as árvores ao redor. Havia algo nelas, algo vivo. — As árvores... elas falam.

As duas olharam para as majestosas árvores que as cercavam. Os troncos grossos pareciam respirar, as folhas farfalhavam de maneira que mais lembrava um sussurro, como se o bosque todo tivesse consciência.

Susana se levantou, com o semblante sério, e caminhou até a árvore mais imponente e amistosa, cujos galhos se curvavam ligeiramente em sua direção, como se a escutassem. Ela parou diante do tronco, ergueu o queixo e falou com firmeza:

— Mande uma mensagem para os meus irmãos. — Sua voz era uma mistura de comando e súplica. — Diga que Aslan e Vell estão mortos. Que a Feiticeira Branca os matou e que ela está vindo. A batalha se aproxima.

Por um instante, nada aconteceu. Susana quase duvidou que as árvores tivessem compreendido, mas então uma brisa suave começou a soprar. O ar parecia carregar um perfume de terra fresca e folhas novas. Pequenas folhas começaram a se desprender dos galhos da árvore, girando como dançarinas delicadas ao sabor do vento. Lúcia observou, fascinada, enquanto elas subiam e desciam em direção ao céu, como se estivessem sendo guiadas.

— Estão levando a mensagem — disse Lúcia, a voz cheia de reverência.

Susana permaneceu ali por um momento, encarando a direção em que as folhas haviam desaparecido, até que se virou e voltou ao lado da irmã, sentando-se novamente perto dos corpos de Aslan e Vell.

— A mensagem foi enviada. — Susana falou com uma calma forçada, mas a tensão em seus ombros revelava sua inquietação.

Lúcia olhou para o rosto inerte de Aslan, a grande crina dourada ainda brilhando fracamente à luz do amanhecer. Ao lado dele, o pequeno corpo de Vell parecia ainda menor, quase frágil demais para carregar o peso de tudo o que havia acontecido.

— Eles não mereciam isso — Lúcia murmurou, a voz embargada.

— Ninguém merece. — Susana respondeu, mas seus olhos estavam fixos no horizonte, onde sabia que a guerra os aguardava.

O silêncio voltou a envolvê-las, mas agora ele parecia diferente, carregado de presságios e resoluções que não poderiam ser adiadas por muito mais tempo.

[...]

Em algum momento entre o fim da noite e o primeiro raio do amanhecer, Susana tomou sua decisão.

— Precisamos ir — disse ela, com firmeza, olhando para Lúcia.

Dessa vez, Lúcia não discutiu. Embora relutante, sabia que a irmã estava certa. Elas não podiam ficar ali para sempre. O mundo lá fora clamava por suas ações.

As duas começaram a se afastar da Mesa de Pedra, seus passos ecoando em meio à penumbra do início do dia. Haviam avançado apenas alguns metros quando um estrondo ensurdecedor cortou o ar, seguido por um tremor que as fez tropeçar. Assustadas, ambas se viraram para trás.

A Mesa de Pedra estava partida ao meio, como se uma força invisível a tivesse destruído. Rachaduras profundas cruzavam sua superfície, e os pedaços maiores pareciam quase prestes a desabar completamente. Mas o mais chocante era o que não estava mais lá. Os corpos de Aslan e Vell haviam desaparecido.

— O que... o que aconteceu? — Susana exclamou, o coração disparado.

Por um momento, ambas ficaram paralisadas, sem conseguir processar o que seus olhos viam. Mas então, os primeiros filetes dourados do sol começaram a iluminar o horizonte. À medida que a luz se espalhava, ela alcançou um arco brilhante ao longe, delineando uma figura imponente.

Aslan.

O grande leão estava de pé, radiante como nunca antes. Sua juba dourada capturava a luz do amanhecer, cada fio brilhando com uma intensidade quase sobrenatural. Havia algo novo nele, algo mais majestoso e poderoso, como se sua morte e ressurreição tivessem ampliado sua grandeza.

As duas meninas mal contiveram a alegria.

Aslan! — gritaram em uníssono, correndo na direção dele.

Jogaram-se em seus braços, abraçando-o com toda a força que tinham. Ele as envolveu gentilmente, sua respiração quente trazendo um conforto que Lúcia e Susana não sabiam que ainda podiam sentir.

Susana foi a primeira a falar, a voz embargada de incredulidade:

— Mas... nós vimos o punhal. Nós vimos você morrer!

Aslan inclinou a cabeça, olhando para ela com olhos cheios de sabedoria e compaixão.

— Se a Feiticeira entendesse a magia mais profunda inscrita na Mesa de Pedra — disse ele, com a voz grave e ressoante —, saberia que quando uma vítima inocente, voluntária, sem mácula de traição, oferece sua vida, o feitiço é quebrado. E até mesmo a morte pode ser revertida.

Lúcia olhou ao redor, seu coração ainda apertado por outra ausência.

— E Vell? — perguntou ela, a voz quase um sussurro. — Onde ele está?

Aslan voltou seu olhar para a menina, seus olhos dourados cheios de empatia.

— Vell está longe — respondeu ele, com suavidade. — Eu o enviei para o meu país.

— Por quê? — Lúcia perguntou, sua testa franzida em confusão.

— Ele precisava de descanso, de cura — explicou Aslan. — Mas não tema, pequena Lúcia. Em breve, ele retornará.

Embora suas palavras fossem misteriosas, havia algo na voz de Aslan que dissipava as dúvidas. Lúcia assentiu, enxugando as lágrimas.

— Agora, subam — ordenou o leão, recuando para lhes dar espaço. — Temos um lugar para ir antes que a guerra comece.

— Para onde? — Susana perguntou, intrigada.

— Vocês descobrirão. Mas sugiro que tapem os ouvidos.

Antes que pudessem questionar, Aslan lançou um poderoso rugido que reverberou pelas colinas e florestas, ecoando como um trovão. As árvores se inclinaram em reverência, e o chão tremeu mais uma vez, como se o próprio mundo reconhecesse a força de seu rei.

As duas irmãs se entreolharam, atônitas e ao mesmo tempo cheias de renovada determinação.

O destino as chamava.


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