𝕮𝖆𝖕 2
Cap 2: O garoto dos sonhos estranhos
O café da manhã acontecia em um silêncio tenso. O aroma do café fresco se espalhava pelo ambiente, misturando-se ao cheiro de torradas recém-saídas da torradeira, mas ninguém parecia realmente saborear a refeição. A mesa estava posta com pratos intocados, e o único som além da respiração contida dos presentes era o ocasional tilintar de talheres contra a porcelana.
Samantha mantinha o olhar fixo no prato à sua frente, mexendo distraidamente na comida sem real intenção de comer. Sua mente insistia em revisitar os acontecimentos da noite passada, mesmo que ela quisesse desesperadamente esquecê-los. Seus pais, sentados ao redor da mesa com expressões apreensivas, respeitavam o silêncio da filha, temendo que qualquer palavra pudesse piorar seu estado.
Foi Elizabeth, sua mãe, quem quebrou o silêncio primeiro, sua voz baixa e cuidadosa.
— Filha... tem certeza que quer ir mesmo para a aula hoje? Eu posso justificar na escola se quis...
— Eu já disse que estou bem — Samantha cortou-a abruptamente, sua resposta saindo mais rude do que pretendia.
O clima, já pesado, ficou ainda mais tenso. Christopher, seu pai, interveio, tentando amenizar a situação.
— Sam, não precisa ser assim. Podemos conhecer a cidade antes, juntos.
Mas, antes mesmo que pudesse terminar a frase, o som da cadeira sendo empurrada bruscamente para trás ecoou pela cozinha. Samantha levantou-se de repente, pegando sua mochila e jogando-a sobre um dos ombros com um movimento brusco.
— Podemos ir logo, pai? — Sua voz carregava impaciência e exaustão.
Christopher trocou um olhar rápido com Elizabeth, e, sem precisar dizer nada, os dois entenderam o que o outro sentia. Preocupação. Queriam ajudar, mas também sabiam que forçar qualquer conversa só a afastaria mais.
— Está bem, podemos ir — ele respondeu, se levantando da cadeira.
Um breve e silencioso adeus foi trocado entre os pais antes de Samantha sair apressada pela porta. No carro, ela entrou no banco do passageiro e jogou a mochila no banco de trás com certa força. Christopher suspirou antes de entrar no banco do motorista, ajustando-se ao assento antes de puxar a marcha e começar a dirigir.
O silêncio dentro do carro era quase tão sufocante quanto o da mesa de café. Christopher tentou puxar assunto, seu tom gentil e paciente.
— Querida, está animada hoje?
Samantha não desviou o olhar da janela, observando as casas passarem em um borrão sem realmente vê-las.
— Pai, não adianta. Não vai puxar assunto comigo. Só me deixa quieta, por favor.
A resposta curta e seca fez Christopher soltar um suspiro discreto.
— Está bem, me desculpe…
O restante do trajeto seguiu em um silêncio carregado. Samantha estava fisicamente presente no carro, mas sua mente era um turbilhão de pensamentos que ela tentava, sem sucesso, conter. Cada lembrança da noite anterior queimava em sua mente, insistente, sufocante. Ela não queria preocupar seus pais mais do que já estavam, então fazia o máximo para fingir que estava bem.
Mas, no fundo, o que mais temia não era a preocupação deles. Era o medo de que, se descobrissem a verdade sobre seus poderes, sobre o mundo sobrenatural que a cercava, olhariam para ela de outra forma. Com medo. Com nojo. Com desprezo.
E quem poderia culpá-los? Quem iria querer ficar perto de alguém amaldiçoado?
Pelo menos, era assim que ela se via.
[...]
Samantha entrou pelas portas da escola, sentindo imediatamente o peso dos olhares sobre si. O som das conversas abafadas e dos passos ecoando pelos corredores parecia diminuir à medida que ela passava, como se todos estivessem, mesmo que por um instante, focados nela. Alguns olhares eram apenas curiosos, avaliando a nova aluna, tentando adivinhar de onde ela vinha ou quem era. Outros, porém, pareciam carregados de estranheza, como se tentassem enxergar algo além do óbvio.
Ela seguiu em frente, seus passos ecoando no chão encerado enquanto observava as fileiras de armários metálicos e cartazes amassados nas paredes. Cada corredor que virava parecia interminável, como um labirinto sem saída. Os rostos desconhecidos, os caminhos idênticos e a sensação constante de estar sendo observada só a faziam se sentir mais deslocada.
Antes, Samantha nunca teve dificuldades para fazer amigos. Mas agora, depois de tudo que esta acontecendo, depois de se envolver com forças que ninguém ao seu redor poderia sequer imaginar, as interações sociais pareciam mais complicadas. Era como se todos ao redor soubessem de algo, como se pudessem ver através dela e enxergar os segredos que carregava. Esse pensamento a afligia.
Respirando fundo, ela reuniu coragem antes de parar um garoto aleatório no corredor.
— Ei — chamou, sua voz saindo firme, apesar da confusão interna.
O garoto se virou, seus olhos escuros se movendo rapidamente pelo corredor, como se tentasse ter certeza de que ela realmente estava falando com ele.
— Está falando comigo? — perguntou, parecendo surpreso.
Samantha franziu o cenho.
— Sim? — confirmou, um pouco impaciente. — Pode me dizer onde fica a sala da diretoria?
O garoto piscou algumas vezes, parecendo processar a pergunta antes de responder.
— Ah, me desculpa. As pessoas não costumam puxar assunto comigo. — Ele hesitou por um momento antes de estender a mão. — Eu sou o Jonathan.
Samantha olhou para a mão dele por um instante, sem fazer menção de apertá-la. Fazer amigos não era exatamente sua prioridade agora. Tudo que queria era encontrar a sala do diretor e pegar seu horário de aulas.
Jonathan percebeu o desconforto dela e rapidamente abaixou a mão, coçando a nuca de forma desajeitada.
— Ah, sim, a sala do diretor — disse, tentando ignorar o momento constrangedor. Ele apontou para o final do corredor. — Fica pra lá.
Samantha esboçou um sorriso forçado, mais por educação do que qualquer outra coisa.
— Valeu — murmurou antes de se virar e seguir na direção indicada, sua mente já voltando a se perder nos próprios pensamentos.
Samantha bateu levemente na porta da diretoria antes de empurrá-la e entrar. O ambiente tinha aquele cheiro típico de papel, café morno e um leve resquício de poeira, como se o lugar estivesse sempre ocupado, mas nunca realmente arejado.
O diretor, um homem de meia-idade com cabelos grisalhos bem penteados e óculos de armação fina, levantou o olhar assim que percebeu sua presença. Vestia um terno escuro, a gravata perfeitamente alinhada, e sua expressão era séria, mas não exatamente rígida—apenas profissional.
— Ah, você deve ser Samantha — disse, ajeitando os óculos no rosto e se levantando da cadeira. Ele pegou uma pasta fina sobre a mesa e começou a folheá-la. — Seja bem-vinda à escola. Espero que sua adaptação seja tranquila.
— Obrigada — Samantha respondeu automaticamente, sem realmente se importar com a formalidade.
O diretor puxou uma folha específica da pasta e a estendeu para ela.
— Aqui está sua grade de horários. Todas as informações sobre suas aulas, professores e horários de intervalo estão aí. Se tiver alguma dúvida, pode procurar a secretaria.
Ela pegou o papel sem muito interesse, dando uma olhada rápida apenas para parecer minimamente atenta. Horários, nomes de matérias, números de salas... Nada que realmente importasse para ela naquele momento.
— Certo — murmurou, dobrando o papel e enfiando-o no bolso da mochila.
O diretor cruzou os dedos sobre a mesa e continuou com seu tom impecavelmente profissional.
— Espero que tenha uma boa experiência aqui. Se precisar de algo, minha porta está sempre aberta.
— Uhum — Samantha assentiu, já se virando para a porta.
— Pode ir para sua aula agora — ele acrescentou, dispensando-a de maneira polida.
Ela não respondeu, apenas saiu do escritório, fechando a porta atrás de si. Enquanto caminhava pelo corredor, soltou um suspiro discreto. Aquilo tudo parecia tão mundano comparado ao que realmente se passava em sua vida. Mas, por ora, precisava manter as aparências e seguir em frente.
[...]
Samantha entrou na sala de aula, sentindo imediatamente o peso dos olhares recaindo sobre ela. O murmúrio dos alunos diminuiu gradativamente, e a atenção de todos se voltou para a nova presença no ambiente. A aula havia acabado de começar, e o professor estava diante da turma segurando um livro aberto.
Ele ergueu os olhos para ela, interrompendo o que quer que estivesse explicando.
— Pois não?
Samantha engoliu em seco antes de responder.
— Essa é a minha turma. Sou aluna nova.
O professor pareceu lembrar-se do assunto naquele instante e acenou com a cabeça.
— Ah, sim. Pode entrar e ficar diante de seus colegas.
Hesitante, ela avançou para o centro da sala, sentindo os olhares a examinarem de cima a baixo. Algumas expressões eram neutras, outras carregavam curiosidade, e algumas pareciam simplesmente desinteressadas. Antes que pudesse dizer qualquer coisa, a porta se abriu novamente, e outro aluno entrou, parando ao lado dela.
Ele não parecia nada incomodado com a atenção. Na verdade, parecia apreciá-la. O cabelo loiro caía perfeitamente em ondas, e sua jaqueta jeans apenas reforçava a postura confiante e despreocupada. Algumas garotas da turma imediatamente sussurraram entre si, suas expressões denunciando interesse.
O professor, já acostumado a interrupções, apenas respirou fundo e fez as apresentações.
— Pessoal, conheçam Samantha Clowther e Billy Hargrove. Sam e Billy, conheçam seus novos colegas.
Billy lançou um sorriso presunçoso para a turma, claramente confortável com os olhares sobre ele. Samantha, por outro lado, sentiu-se aliviada por toda a atenção ter se voltado para o garoto ao seu lado.
— Já posso me sentar? — ela perguntou, ansiosa para sair daquela posição desconfortável.
— Podem sim.
Samantha não esperou mais um segundo e começou a caminhar pelo corredor entre as carteiras, seus olhos varrendo o ambiente até encontrar um lugar vazio. Assim que o avistou, dirigiu-se até lá e se sentou, colocando a mochila sobre a mesa com um movimento automático.
Ao seu lado, uma garota já estava acomodada e, assim que Samantha se ajeitou na cadeira, ela lhe lançou um sorriso gentil.
Samantha hesitou por um instante antes de forçar um sorriso de volta, apenas por educação, e então virou-se para frente, focando no quadro-negro. Tudo que queria era passar despercebida.
[...]
Assim que o sinal tocou, indicando o fim da aula, os alunos começaram a se dispersar, enchendo os corredores com o som de conversas e passos apressados. O tilintar dos armários se abrindo e fechando criava um ritmo caótico, típico do ambiente escolar.
Samantha saiu junto com a multidão, mantendo-se o mais discreta possível. Caminhava com passos firmes, sem chamar atenção, apenas focada em seguir seu caminho. No entanto, uma presença ao seu lado a fez diminuir o ritmo.
Virando o rosto, ela reconheceu a garota da sala que sorriu para ela, e, ao lado dela, o garoto esquisito que lhe indicou a sala do diretor mais cedo, Jonathan.
Ela franziu a testa, um reflexo natural de sua desconfiança.
— Oi — a garota disse, sua voz gentil e amigável.
— Oi.
— Eu me chamo Nancy. — Ela então virou-se levemente para Jonathan. — Jonathan, essa aqui é a Samantha, aluna nova da minha turma.
— A gente se conheceu antes da aula começar. — Jonathan assentiu, lembrando-se do breve encontro no corredor. Ele tentou disfarçar o constrangimento ao recordar o momento em que fora ignorado. — Prazer, Sam.
Samantha suspirou, sentindo que aquela interação estava indo para um caminho que ela não queria.
— Gente, não querendo ser muito grosseira, mas eu realmente não estou muito afim de conversar. Não tive uma boa noite.
Nancy, no entanto, insistiu com um sorriso tranquilo.
— Ah, mas ninguém quer ficar sozinha o tempo inteiro. Só quero puxar assunto.
Samantha hesitou por um instante antes de finalmente ceder, parando no meio do corredor enquanto os alunos passavam ao redor.
— Está bem. — Ela cruzou os braços. — Sobre o que querem saber?
— De onde você veio? — Nancy perguntou, curiosa.
— Eu era de Hawkins, mas me mudei com meus pais para Fort Wayne. Agora resolvi retornar depois de anos.
— Me parece um lugar legal para tirar fotos. — Jonathan comentou, atraindo o olhar de Samantha. Percebendo a atenção dela, ele acrescentou: — Ah, é que eu gosto bastante de fotografias. Diria até que a câmera é minha melhor amiga. Isso pode soar esquisito às vezes.
Samantha arqueou levemente uma sobrancelha, analisando a resposta dele. Antes que pudesse responder, um movimento repentino ao lado fez sua atenção ser desviada.
Um garoto surgiu e puxou Nancy pela cintura de maneira natural. Antes que Samantha pudesse processar a cena, os dois já estavam se beijando.
O constrangimento de Jonathan era visível, e Samantha se sentiu igualmente desconfortável.
— Ah, pode se acostumar — Jonathan disse, observando a cena com um suspiro resignado. — Eles namoram e ficam assim a maior parte do tempo.
Samantha olhou de relance para ele, a expressão curiosa.
— Espera aí, você não é o namorado dela?
Jonathan arregalou os olhos e quase engasgou com a própria saliva.
— O quê? Pera, eu? — Ele soltou uma risada nervosa antes de balançar a cabeça rapidamente. — Ah, não. Somos só amigos. Quer dizer, viramos amigos há pouco tempo por alguns... motivos. Nada sobrenatural nem nada.
Ele engoliu em seco, percebendo que talvez tivesse falado demais.
Samantha franziu o cenho, desconfiada, mas logo deixou escapar um riso leve.
— Achei que vocês namoravam pelo jeito que você olha para ela.
Jonathan arregalou ainda mais os olhos, claramente pego de surpresa.
— O quê? Eu olho pra ela normal, o normal do normal.
— Não, você olha pra ela diferente.
— Já esteve apaixonada para saber como é um olhar apaixonado?
— Mas eu nem falei sobre paixão. — Ela riu enquanto dizia.
Antes que ele pudesse retrucar, Nancy e seu namorado se aproximaram novamente. Nancy olhou diretamente para Samantha, parecendo notar o que havia acontecido.
— Sam, me desculpa. Aproveitando, deixa eu apresentar. Steve, essa é uma aluna nova, Samantha. Sam, esse é Steve, meu namorado.
Foi nesse momento que Samantha olhou para ele.
E tudo dentro dela congelou.
Seu coração errou algumas batidas, seu peito apertou, e um arrepio percorreu sua espinha.
Os olhos dele eram exatamente os mesmos que ela via em seus sonhos. Os mesmos que ela assistia se apagarem noite após noite.
O mesmo garoto que morria brutalmente, todas as vezes.
Seu corpo inteiro ficou tenso, e a sensação de tontura a atingiu como uma onda. As vozes ao seu redor ficaram abafadas, o corredor pareceu girar por um momento. Mas, mesmo com as pernas fraquejando, ela se forçou a ficar de pé.
Steve, alheio à tempestade interna de Samantha, sorriu casualmente.
— E aí, tudo bem?
Ela sentiu sua garganta se fechar.
— Eu... preciso ir — Samantha disse abruptamente antes de virar-se e sair em disparada pelo corredor, ignorando os olhares confusos que deixou para trás.
Jonathan, Nancy e Steve trocaram olhares, todos franzindo o cenho.
— Acho que ela não gostou muito de mim — Steve brincou, tentando amenizar o clima.
Nancy, no entanto, não riu.
— Para, Steve. Ela deve ter algum motivo. — Seu tom era pensativo, tentando entender o que tinha acabado de acontecer.
Enquanto isso, Samantha corria em direção aos banheiros, seu coração ainda martelando dentro do peito.
Ela nunca pensou que isso poderia acontecer um dia.
Continua...
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