🧟♀️ | Fantasmas
"Sobreviver não é apenas vencer a morte, mas aprender a carregar os fantasmas daqueles que não conseguiram." — The cure.
__________________________
O céu carregava tons de cinza e vermelho, uma mistura apocalíptica que parecia refletir o caos que estava presente nas ruas. Do lado de dentro da casa, o silêncio se fazia presente, quebrado apenas pelo som abafado de passos frenéticos e gritos de desespero lá fora.
Taehyung, ainda pequeno, estava encolhido no colo da mãe. Ela o segurava firme, mas com uma delicadeza que apenas mães sabem ter. O pai, vigiava pela fresta da janela, a expressão dura e os olhos atentos a qualquer movimento.
— Não façam barulho — ele sussurrou, quase sem mover os lábios. — Qualquer som pode ser um convite para que nos vejam.
Taehyung olhava para a mãe com olhos cheios de medo. As pequenas mãos dele agarravam a barra do vestido dela, buscando uma segurança que o mundo parecia estar arrancando de si e de todos.
— Está tudo bem, meu amor — a mãe disse, a voz baixa e suave como uma brisa de calmaria. — Papai está aqui, ele vai nos proteger, tá bom?
Taehyung assentiu devagar, mas o medo ainda era perceptível em seus olhos.
— Mamãe, por que as pessoas estão gritando? — ele perguntou, a voz um fio trêmulo.
Ela trocou um olhar rápido com o marido antes de voltar os olhos para o filho.
— Elas estão assustadas, querido. Às vezes, quando as pessoas ficam com muito, muito medo, elas fazem barulho, mas não precisa se preocupar. Aqui dentro, estamos seguros.
Ela passou a mão pelo cabelo dele, um gesto reconfortante.
— Eu estou com medo, mamãe. E se eles vierem aqui?
Ela sorriu, mesmo que por dentro sentisse o peso da incerteza.
— Sabe de uma coisa? O papai é o homem mais forte que eu conheço. Se alguém tentar nos machucar, ele vai nos proteger, como sempre faz, não é?
O pai desviou por um momento o olhar da janela e se virou para Taehyung. O semblante duro se suavizou, sempre que ele olhava para o pequeno ele se derretia, o amor que ele sentia por sua esposa e pelo seu pequeno tesouro, Taehyung, era visível.
— Sempre, filho. Eu sempre vou cuidar de vocês dois. — Deu um sorriso enquanto acariciava os cabelos de sua esposa.
A mãe deu um beijo na testa do menino e sussurrou:
— Vamos brincar de um jogo, ok? Quem consegue ficar mais tempo quietinho? Você consegue vencer, meu amor?
Taehyung respirou fundo, enxugando uma lágrima solitária.
— Eu consigo, mamãe.
Do lado de fora, os gritos continuavam, cada vez mais próximos. E dentro daquela pequena sala, um frágil fio de esperança tentava resistir no peito dos pais.
O pai de Taehyung se aproximou lentamente do filho, que ainda estava no colo da mãe. Seus olhos grandes e assustados refletiam o caos lá fora. Ele se ajoelhou à frente dos dois, suavizando sua expressão rígida em algo mais acolhedor.
— Sabe, Taehyung — começou ele, a voz firme, mas tranquila —, tem uma história que eu costumava ouvir quando era criança. É sobre um herói muito corajoso.
Taehyung piscou, curioso, tentando esquecer os gritos do lado de fora.
— Um herói? Ele tinha uma espada? — perguntou, a voz ainda trêmula.
O pai sorriu de leve.
— Ele não precisava de espada, porque ele tinha algo mais forte: sua coragem. Esse herói enfrentava monstros todos os dias para proteger sua família. E sabe o que ele disse quando os monstros apareceram?
Taehyung balançou a cabeça.
— O quê?
O pai se inclinou um pouco mais, olhando diretamente nos olhos do filho.
— “Vocês podem ser fortes, mas minha família é meu mundo, e ninguém toca no meu mundo.”
A mãe sorriu, acariciando o cabelo de Taehyung.
— E sabe de uma coisa meu amor? Seu pai é exatamente assim, igualzinho esse grande herói. — ela disse baixinho. — Um herói que vai proteger a gente de qualquer coisa.
— Até desses monstros fedidos mamãe?
— Principalmente desses monstros fedidos, filho. — O pai respondeu.
O som de passos pesados do lado de fora ficou mais alto, acompanhado por gemidos arrastados. O pai se levantou rapidamente, olhando pela fresta da janela. Sua expressão endureceu. Ele virou-se para Taehyung, a seriedade voltando ao seu rosto.
— Taehyung, escute com atenção. Se algo acontecer e eu precisar sair, você vai cuidar da mamãe, está bem?
Taehyung hesitou, seu lábio inferior tremendo.
— Mas, papai…
O pai se ajoelhou novamente, segurando os ombros do menino com firmeza, mas mantendo o tom carinhoso.
— Prometa pra mim, Taehyung. Você é forte, e é um menino muito inteligente. Eu preciso saber que você vai cuidar dela, do jeitinho que eu te ensinei.
Taehyung respirou fundo, enxugando as lágrimas que ameaçavam cair.
— Eu prometo, papai.
O pai assentiu, seu olhar carregando tanto orgulho quanto preocupação.
— E você, meu amor? — ele disse, voltando-se para a mãe de Taehyung. — Promete que vai cuidar dele, não importa o que aconteça?
Ela sorriu com tristeza, com os olhos já brilhando.
— Com a minha vida.
Foi então que o som mudou. Um arranhão insistente veio da porta, seguido de pancadas cada vez mais fortes. O pai se levantou de imediato, pegando o rifle encostado na parede.
— Fiquem aqui, eu vou resolver isso — disse ele, com firmeza.
Ele saiu pela porta principal, tentando afastar os zumbis sem chamar atenção, mas a calmaria durou pouco. Da cozinha, o som de uma porta se abrindo congelou o ar. A mãe de Taehyung se virou rapidamente e viu a porta dos fundos entreaberta, um zumbi já dentro da casa.
— Taehyung, corre, para trás de mim agora! — ela gritou, empurrando o garoto para trás de si.
O monstro avançou, os olhos vazios fixos nela. Sem arma alguma, ela agarrou uma cadeira, tentando afastá-lo, mas a criatura era forte e a derrubou. Taehyung ficou parado, paralisado pelo medo.
— Mamãe! — ele gritou, sem saber o que fazer.
— Não, está tudo bem, a mamãe está bem, fique aí. — ela disse, sua voz mais suave, quase um sussurro. — Fique atrás de mim.
Ela o abraçou, seu corpo frágil cobrindo o do garoto. Quando o zumbi avançou, ela sussurrou:
— Vai ficar tudo bem, meu amor.
Os dentes da criatura cravaram-se em seu ombro, arrancando carne e sangue. O grito abafado da mãe foi a coisa mais dolorosa que Taehyung já ouvira.
Ela colocou sua boca na camisa de Taehyung para que ela não gritasse alto demais e fosse abafado, enquanto sua outra mão tapava a boca do menor para não fazer barulho, enquanto o zumbi devorava sua própria costa.
Ele continuou por alguns minutos mastigando e arrancando cada vez mais carne.
Nesse momento, o pai voltou correndo, o rifle em mãos. Com um disparo certeiro, ele derrubou o zumbi, mas o olhar no rosto dele dizia o que Taehyung já temia: era tarde demais.
— Não, não, não… — o pai murmurou, ajoelhando-se ao lado dela tentando estacar o sangue com sua própria camiseta, mas não havia muito o que ser feito.
A mãe respirava com dificuldade, o sangue estava manchando todo o chão ao seu redor. Taehyung soluçava, os pequenos ombros tremendo.
— Taehyung… olha pra mim — a mãe sussurrou, a voz fraca, mas ainda carinhosa.
Ele se aproximou, ainda chorando. Ela segurou sua mão com o pouco de força que lhe restava.
— Não chore pequeno, a mamãe está bem, tá bom? — Disse ela tentando disfarçar tamanha dor.
O pequeno já não conseguia evitar os soluços.
— Filho, sabe aquela música que a mamãe sempre canta pra você dormir? Sabe, não sabe?
Taehyung apenas assentiu com a cabeça que sim, enquanto chorava.
— Sempre que ouvir aquela música, lembre-se… eu estou aqui, mesmo quando não puder me ver, tá bom? Mamãe está aqui, pequeno.
Ela começou a cantar baixinho, a melodia enfraquecendo aos poucos até que sua voz se apagou por completo. O silêncio que se seguiu foi esmagador, quebrado apenas pelos soluços desesperados de Taehyung.
O pai se manteve firme por fora, mas os olhos, agora sem brilho, refletiam a dor de perder tudo o que mais importava para ele.
O som de passos pesados ecoava pela casa, cada movimento mais angustiante que o anterior. O corpo da mãe de Taehyung ainda estava perto, a dor pungente de sua perda ainda pulsava, mas o pai, ao contrário de qualquer gesto de luto, estava já em pé, parado na porta, sua expressão dura como pedra. Seus olhos, frios e inexpressivos, se fixaram em Taehyung, que ainda tentava processar o que havia acontecido.
— O que você acha que aconteceu, Taehyung? — A voz do pai cortou o silêncio com uma dureza que não deixou espaço para fragilidade. Ele estava ofegante, mas não era de dor. Era raiva. — Sua mãe... sua mãe preferiu morrer no lugar de lutar. Preferiu morrer no seu lugar, provavelmente daria tempo dele devorar ela até eu chegar, e você ficaria a salvo... ela pensou nisso, mas não pensou em pegar uma faca da gaveta e enfiar no crânio desse zumbi de merda, tudo por impulso. — Dizia frustrado.
Taehyung engoliu em seco, seus olhos se enchendo de lágrimas, mas ele tentou ser forte, tentando compreender o que o pai estava dizendo. Mas ele não conseguia entender. Sua mãe o havia protegido, tinha sido tudo por ele, e agora seu pai estava dizendo isso, como se fosse culpa dele.
O pai se aproximou, seu olhar frio não se desviando de Taehyung, como se cada palavra fosse uma sentença.
— O amor faz as pessoas cometerem estupidezes. Sua mãe fez isso, e eu não vou deixar você cometer a mesma idiotice. — Ele falou com uma frieza cruel, cada palavra uma lâmina que cortava o coração de Taehyung. — Você não tem mais tempo para ser uma criança, Taehyung. Não vai poder ser assim. Não posso deixar você ser fraco.
Taehyung sentiu o peso daquelas palavras como uma tonelada sobre seus ombros. Ele estava tão perdido em sua dor, em seu medo, mas o pai parecia não enxergar isso. Ele olhou para ele como se fosse um obstáculo a ser superado.
— Eu vou cuidar de você. — o pai disse com um tom impessoal, quase como uma ordem. — Vou fazer de você forte. Vou te ensinar a sobreviver, porque o mundo não tem espaço para fraqueza. Você vai ser diferente. Eu não vou deixar você morrer por ninguém, Taehyung. Não vou perder mais.
Aquelas palavras perfuraram o coração de Taehyung, como se o pai estivesse arrancando-lhe qualquer vestígio de inocência. Ele olhou para ele, mas o que ele viu foi um homem que já não se importava mais com o que fosse humano em seu filho. Havia apenas uma missão: transformá-lo em algo que pudesse sobreviver, a qualquer custo.
Taehyung sentiu as lágrimas escorrerem pelo seu rosto, mas não as limpou. Ele sabia que, no fundo, a culpa que sentia não era por sua mãe ter morrido — não era sua culpa. Mas as palavras do pai ecoavam em sua mente, como um peso que o esmagava, e ele não sabia mais o que pensar, ou até onde sua própria dor poderia ir.
Parecia que aquela família perfeita havia desmoronado.
××
Alguns dias haviam se passado, seu pai permanecia irreconhecível, parecia que sua alma havia deixado seu corpo, já não havia mais aquele jeito amoroso com seu filho, parecia que estava lidando com a negação do luto, não queria ao menos chorar uma vez na frente do pequeno Taehyung, que apenas o obedecia e permanecia calado, sem dar trabalho, por não se achar no direito de causar mais incômodo ao pai.
— Papai, aqui. — O pequeno estendeu uma garrafa d'água para o pai que estava limpando uma caça que havia pegado agora pouco.
— Está com fome? — Perguntou ao pequeno enquanto pegava a garrafa d'água da mão dele. — Você não tem comido nada esses dias.
— Não estou com muita fome, eu tenho dó delas... — Apontou para a galinha que o pai estava limpando.
O pai pensou em o repreender pois nesses tempos difíceis não haviam muitas opções, mas preferiu apenas compreender que ele era apenas uma criança.
— Você se sentiria melhor se eu pescasse peixes para você?
— Sim, eu sempre quis ter um peixinho papai. — Um sorriso crescente no rosto do pequeno se fez presente.
— Não filho, não desse jeito, pra comer. — Disse.
— Ah...
O mais velho apenas deu risada e acariciou o cabelo do filho, fazendo Taehyung soltar uma leve risada.
Aquele foi o primeiro 'carinho' que recebeu após a morte da sua mãe.
O pequeno Taehyung mal sabia que no fundo ele era a coisa mais importante existente aos olhos do seu pai, e que aquela personalidade dura que ele estava desenvolvendo com o pequeno era realmente para torná-lo mais forte.
Mal sabia também que anos mais tarde seu pai se sacrificaria da mesma forma por si, como sua mãe fez.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top