V. MEDO DO ESCURO

SOB A LUZ amarelada do único poste da rua, o rapaz estava imerso em seus pensamentos, com as mãos escondidas nos bolsos e o olhar distante voltado para as árvores que cercavam a casa. Anastásia o observou com atenção, surpresa por ele ainda estar ali; algo na postura do rapaz passou a impressão que ele esperaria um momento de distração para sair de fininho.

Cruzou os braços sobre o peito e se aproximou, mantendo o contato visual constante. Alec franziu o nariz discretamente quando ela chegou perto o suficiente. Ok, isso foi rude, Anastásia pensou que seria pelo cheiro de lama.

— Você... — começou a falar, mas se interrompeu ao perceber que o que planejava falar não era a melhor forma de iniciar uma conversa. — Meu nome é Anastásia... Ana, se preferir. Não tive tempo de te dar as boas-vindas.

— Eu sei quem você é. — Alec respondeu, seco. — O que você estava fazendo lá?

Muito rude, pensou novamente, mas não se deixou abalar.

— Achei que tinha visto algo na margem da rua, mas acabei tropeçando e cai — disse esperando que não fizesse mais perguntas do que aquela.

Alec soltou uma risadinha que ela entendeu como deboche.

— E você? — Ela perguntou como se estivesse prestes a pegá-lo na mentira.

— Estava voltando para casa. — Suas palavras eram tão secas que ela começava a se sentir estúpida por ter considerado ser amigável com ele.

O silêncio que se seguiu foi constrangedor. Anastásia começava a se sentir profundamente ofendida pela indiferença que o garoto demonstrava; ela sabia que, definitivamente, não estava em sua melhor aparência para conhecer alguém, mas aquilo não era o suficiente para explicar aquela frieza. Os olhos verdes eram penetrantes, criando um certo desconforto que ela entendeu como um desafio.

Anastásia mordeu o interior da bochecha e desviou o olhar, ficando aliviada ao ver Dilan se despedindo de Barbara na varanda e indo em direção a eles. Ali ela viu uma oportunidade de estuda-lo e descobrir se Alec era indiferente com todos ou se tinha algum problema especifico com ela.

— Você deveria entrar, está ficando frio aqui fora. — Dilan disse, colocando uma mão no ombro de Anastásia. Os olhos escuros e preocupados analisavam seu rosto, atentos. — Está escuro também.

— Não tenho mais medo do escuro.

— Deveria, principalmente depois do que aconteceu. — Embora não tenha completado a frase, Anastásia sabia que ele acreditaria nela. — Não é mesmo, garoto?

Anastásia virou a cabeça na direção do garoto e o observou acenar positivamente, enquanto um brilho divertido passava em seus olhos. Erwin miou alto algumas vezes, saindo de um arbusto, e se enroscou nas pernas da garota que o pegou no colo, acariciando suas orelhas. O felino emitiu um chiado mal-educado na direção de Alec enquanto Barbara quebrava o silêncio ao chama-la.

— Bom, eu preciso ir. — Anastásia disse, o gato tinha as patas da frente em seu ombro e segurava-se com as unhas em suas roupas e ela apoiava as pernas de trás com uma mão. — Desculpe por deixar vocês preocupados.

Anastásia se virou para o garoto e estendeu a mão livre para ele, porém os olhos verdes apenas se alternaram entre seu rosto e sua mão, a qual ela balançou para cima e para baixo, demonstrando o gesto, sem sucesso. Revirou os olhos dramaticamente, sentindo-se frustrada, e se despediu de ambos.

Como um garoto poderia ser tão antipático? E por que ele estava ignorando-a? Nunca tinha passado por uma situação dessa em todos seus dezesseis anos, e Anastásia estava completamente arrasada por dentro, mesmo que não deixasse transparecer. Entrou em casa e permitiu que o gato descesse de seu colo, apenas para ficar miando para a porta, tentando sair novamente. Sentou-se no acolchoamento da janela da sala e esperou.

Barbara fez uma série de perguntas sobre o que havia acontecido, por que não avisou nada e, principalmente, alertou para ficar longe da floresta. Anastásia respondia e pedia desculpas enquanto os olhos se desviavam para fora da casa sem demorar muito, pela fresta da cortina, onde podia ver os homens.

Queria arrancar os próprios cabelos ao observá-los.

Se ao menos pudesse ouvi-los ou decifrar seus gestos. Queria desesperadamente saber sobre o que falavam e entender porque Dilan mantinha aquela postura defensiva, ora agressiva. Anastásia começava a ruminar um pouco de culpa, poderia ter se expressado melhor quando disse que ele a acompanhou e que não aconteceu nada entre eles. Ela suspirou pesadamente ao se afastar da cortina, tentando convencer Barbara que não tinha uma contusão e que estava tudo bem; só precisava de um banho e descanso.

Ao entrar no banheiro, Anastásia parou diante do espelho e examinou seu reflexo atentamente, apertando as bochechas e passando os dedos sobre a pele. Pedaços de lama seca ainda se agarravam às raízes de seu cabelo, esfarelando-se ao toque delicado, deixando para trás lembranças ruins. Passou os dedos suavemente sobre o pequeno corte na testa, e se surpreendeu ao perceber que o ferimento não era tão grave quanto pensou no primeiro momento, apesar da quantidade assustadora de sangue que havia tingindo a parte da frente de seu cabelo em um tom marrom avermelhado. Era apenas um pequeno corte que provavelmente não deixaria cicatriz alguma.

Ela se despiu, largando as roupas imundas no chão do banheiro, e esperou a água esquentar antes de entrar no chuveiro. Lentamente, a pele pálida começou a se tornar avermelhada com o calor, enquanto ela passava o sabonete pelos ombros e pescoço, tentando aliviar a tensão que ameaçava travar seus músculos. Agora, sem ninguém por perto, a mente de Anastásia se encontrava sem distrações, e tudo o que ela conseguia pensar era no que havia acontecido.

Quando era mais nova, Anastásia ouvia histórias sussurradas pelos mais velhos para assustar as crianças e mantê-las longe das trilhas. A floresta era como uma babá assustadora, capaz de atrair os que foram desobedientes para seu interior, de onde nunca mais retornavam. Até pouco tempo atrás, não passavam de histórias infantis. Mas agora, com a lembrança vívida das raízes nodosas subindo pelos seus calcanhares, fazia seu interior tremer.

Após o banho, encontrou em seu quarto uma xícara de chá na mesinha ao lado de sua cama e alguns curativos deixados por Barbara. Vestiu seu pijama de moletom preferido e se sentou na cama com as mãos aquecidas pela louça quente. Edwin anunciou sua entrada com um miado baixo e pulou ao seu lado, enfiando as unhas no lençol ao se aninhou próximo aos seus pés.

O cansaço começava a pesar cada vez mais e algumas dores acompanhavam seus movimentos. Encolhida entre os lençóis, Anastásia sentia o calor do chá de camomila se espalhar por seu corpo, sem conseguir aquecê-la de verdade. A ideia de fechar os olhos parecia assustadora demais naquela noite e nem mesmo o conforto de sua cama parecia acolhedor. Do lado de fora, as sombras criadas pela árvore que ficava próxima a sua janela pareciam dançar através da cortina, criando formas que não estavam realmente lá.

Com um suspiro pesado e a derrota visível em sua expressão abalada, Anastásia se virou para o outro lado e acendeu, com um toque delicado no metal, o pequeno abajur ao lado de sua cama. Ela não tinha mais medo do escuro, mas naquela noite, a escuridão parecia carregar um peso que ela preferia evitar.

Os homens observaram a garota subir os degraus da varanda e fechar a porta, mas não antes dela lançar um último olhar curioso para eles com os olhos violetas. Dilan aguardou até ouvir o estalo da porta que garantiu a certeza de que finalmente estavam à sós, e que seriam ouvidos apenas pelas árvores que os cercavam.

— Vá embora — Dilan rosnou, sua voz era baixa e agressiva.

Alec ergueu uma das sobrancelhas, agindo surpreso com a súbita mudança de postura vinda do outro.

— Perdão? — Sua voz soava quase ofendida.

— Vá embora enquanto sua barra está limpa — insistiu, sentindo que sua paciência se esvair aos poucos.

— Ah, eu não vou. — Alec respondeu com desdenho após dar uma risada baixa.

Dilan respirou fundo, tentando manter a calma.

— Já tivemos problemas com os da sua espécie antes. — O pescador disse como se tentasse justificar seu comportamento, mas ambos sabiam que era muito mais do que aquilo. — não queremos que as coisas se repitam.

— Eu não quero confusão. — Alec disse em concordância, mas o sorriso que exibia demonstrava completamente o oposto, assim como na noite no porto.

— Então por que ainda está aqui?

Alec suspirou teatralmente, balançando a cabeça como se estivesse desapontado e deu alguns passos ao redor, despreocupado.

— Dilan, Dilan... — murmurou olhando para os próprios sapatos, os lábios franzidos, e tornou a encará-lo. — Se não tivéssemos nos encontrado no porto, eu teria partido. Mas você me mostrou algo... especial, digamos assim.

Os olhos do pescador se estreitaram.

— Não se atreva a olhar dentro da minha cabeça. — Ele resmungou irritado ao perceber que Alec havia invadido sua mente em algum momento.

— Não se preocupe. — Alec deu um riso genuíno. — Tenho coisas mais interessantes para observar, para invadir...

Antes mesmo de terminar a frase, os olhos verdes de Alec se dirigiram para a casa e lá se fixaram. Dilan acompanhou seu olhar e, ao se virar, viu a silhueta de Anastásia desaparecer por trás da cortina momentos antes da luz da sala ser apagada.

— Nem pense nisso. —disse ao sentir a raiva crescer em seu peito, as mãos se fecharam em punhos trêmulos e uma veia saltava em sua testa.

— Tarde demais. — Um sorriso se abriu e um corvo deu um rasante, pousando no ombro de Alec e inclinando a cabeça ao encarar o homem diante deles.

— Escute bem. — Dilan disse entre dentes avançando até o corpo deles ficarem a centímetros de distância. — Não sei porque ela estava com você, mas sei que você fez algo. Eu juro que se você fizer qualquer mal para aquela garota, vai se arrepender.

— Meu caro, não se irrite. — Alec acariciou a cabeça do corvo.

— Isso é um aviso.

— Ah, não estava falando com você. — Seu tom era malicioso. — Skeeter está irritado porque você fala demais.

O corvo soltou um grasnado em concordância e levantou voo, suas asas fazendo um vento gelado ricochetear no rosto do homem.

— Eu vou te despedaçar. — Dilan rosnou.

— Tente. — Retrucou.

Embora precisasse erguer os olhos para encarar o outro, Alec mantinha uma postura relaxada e confiante, sem demonstrar qualquer sinal de desconforto. Seu olhar permaneceu fixo em Dilan, como se estivesse o desafiando a seguir com suas palavras naquele instante. Alec sabia que, apesar da raiva que o consumia, o pescador não poderia fazer nada contra ele.

— Como eu imaginei — Alec murmurou com um sorriso de deboche repuxando minimamente seus lábios, então ele se virou com um movimento despreocupado. — Boa noite, Dilan.

Ele se afastou e seguiu pela rua mal iluminada, deixando o homem para trás, mas sentindo o peso de seu olhar em suas costas. Apesar de manter uma postura firme, Alec sentia uma angústia em seu interior juntamente à uma inquietação que o corroía. Durante toda a conversa, ele acessar a mente de Anastásia inúmeras vezes, apenas para encontrar uma barreira inexplicável que o deixava preso do lado de fora.

Deveria haver uma explicação lógica para aquilo. Destinados só aconteciam uma vez durante toda a vida, não importava o quão longa fosse; eram únicos. E Beatrice, a quem ele havia sido destinado, estava morta há décadas, e o cheiro de suas cinzas ainda impregnava sua memória. Anastásia não poderia ser destinada a ele... ou poderia? Alec balançou a cabeça, afastando essa ideia. Era minimamente ridículo considerar aquilo como uma possibilidade.

Era impossível.

O corvo o seguia do alto, camuflado pelo céu noturno, e enviava sinais de preocupação ao seu mestre, inquieto pela fome crescente que o vampiro tentava controlar. Alec se alimentou bem naquela manhã, mas agora era como se estivesse em um deserto por dias. Lembrou da forma que o aroma de Anastásia o envolveu; inebriante, doce e melódico, um cheiro que não parecia pertencer a este mundo. A curiosidade começava a tomar conta de seus pensamentos, que ia além do simples desejo pelo sangue dela.

À medida que se afastava da casa, a energia de Anastásia se dissipava, deixando apenas uma lembrança vivida ecoando por sua mente. Alec se perguntava: quem ela pensava que era para causar a ele tanta frustração?

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