009. Amigos

Dinho Alves
P.O.V.

Aquele dia foi insano. Assim que a Giovanna abriu a porta do seu apartamento, nós entramos como se estivéssemos fugindo da polícia — literalmente.

Fomos proibidos de abrir as janelas, até. O bom era que o apartamento dela tinha ar-condicionado, o que amenizava a situação do calor lá dentro.

De noite tivemos que nos virar para caber todo mundo. Claro, se tratava de um apartamento pequeno no Cecap, de apenas dois quartos, o suficiente para a Giovanna e a prima. Porém, agora éramos nove pessoas dentro do mesmo ambiente. Como o Bento e o Samuel eram os mais magros, eles tiveram que dividir o sofá enquanto o resto de nós esteve espalhado pelos colchões e tapetes no chão.

É claro que eu tinha que ficar com o pior lugar. Lógico. O Dinho sempre paga o pato no final, não é?

Porém não vou reclamar muito. Pelo menos tínhamos comida e podíamos ajudar as meninas fazendo alguma coisa.

Eu não consegui dormir muito bem por causa do desconforto do chão, então quando a Giovanna acordou de manhã, eu já estava acordado. Eu a vi se levantando para ir ao banheiro quando ainda era muito cedo, e eu estranhei quando olhei para a parede da sala e me dei conta do horário: quase seis da manhã. Quem levanta cedo em pleno domingo?

Eu me levantei, também. Bom, eu não queria mais dormir, então tentar puxar papo e fazer amizade com ela talvez fosse uma boa, não?

Fiquei a esperando sair do banheiro, mas não bati na entrada do cômodo e nem fiz muito barulho. Assim que abriu a porta e deu de cara comigo, ela obviamente levou um susto. Colocou uma de suas mãos no peito, corou e depois soltou uma risadinha sem graça.

— Me desculpa — falei. — Eu não queria te assustar.

— Tá tudo bem — ela respondeu. — É só que eu não estou acostumada a ver um morto-vivo todos os dias.

Sendo alguém que compreende críticas melhor do que qualquer outra pessoa na Terra, eu não pude deixar de notar que a sua frase carregava um pouco de ironia. Ela aparentemente falou no sentido espontâneo, com um toque de humor — mesmo que, o que ela devia ter para si de humor, devia ser diferente do que eu tenho para mim. Entretanto, eu não consegui não soltar uma risada abafada com a sua frase.

Ela passou por mim e voltou até o seu quarto. Deixou a porta aberta, foi até o guarda-roupa e pegou um par de brincos de pérolas para colocá-los em frente ao espelho.

Aquela não era a Giovanna policial que eu havia conhecido a dois dias atrás. Mesmo que a sua roupa não fosse muito luxuosa, ela estava bonita. Vestia uma camiseta regata branca  justa ao seu corpo, que ressaltava que ela tinha um corpo bonito demais, e um short de elástico preto e branco listrado. Nos seus pés estavam uma bota preta de cano baixo e saltinho pequeno.

Mesmo que eu tivesse visto o seu cabelo solto no dia anterior, não havia parado para reparar na beleza dele. Era extremamente longo e liso, castanho escuro e tinha uma franjinha curta, a qual ela prendia muito bem ao coque da farda. O seu cabelo contrastava com a sua pele bronzeada e a deixava com uma beleza surreal.

— Você vai sair? — Eu me encostei na porta e a fiquei observando se arrumar. Ela olhou para mim através do espelho, e eu imediatamente me senti um intruso ali. — Me desculpa a curiosidade, não precisa responder se não quiser.

— Sim, eu vou — porém ela foi educada e respondeu. — Mas não sair para dar um rolê ou algo do tipo, que nem o tenente George fez com vocês ontem…

— Não, não, eu não quis insinuar isso. Me desculpa!

— Tá tudo bem, eu sei que não quis — ela me lançou um sorriso tímido, ainda me encarando pelo espelho. — Eu vou me encontrar com a irmã do Júlio e tentar trazer ela aqui para ver vocês.

— Mas… Em pleno domingo? — Porra… — E cedo assim?

— Ontem também foi o meu dia de folga, e olha, eu fiquei cuidando de vocês — certo, aqui eu real me senti um fardo. — Mas eu não tenho o que reclamar. Adoro o meu trabalho e o caso de vocês é algo extraordinário. Se eu ficasse em casa ontem, eu provavelmente ficaria ansiosa para ir vê-los. Mas não, vocês não dão trabalho. É divertido cuidar de vocês.

Eu estava ficando louco ou ela havia acabado de fazer um elogio à um bando de malucos que nem a gente?

Talvez tivéssemos mais em comum do que imaginávamos, então. Porque achar divertido cuidar de um monte de marmanjos com parafusos a menos deveria ser coisa de louco. E eu gosto de pessoas "loucas". Me identifico com elas.

Eu sorri para ela. E consegui lhe arrancar uma risada quando coloquei ambas as minhas mãos na cintura e simulei a pose de um super-herói.

A garota passou por mim e foi para a cozinha. É claro que eu a segui, afinal, tenho doutorado em ser chato.

— Já que você vai encontrar a Paula, qual será a sua desculpa para que ela caia no seu papo? — Eu também queria saber disso. — Afinal, talvez ela não vai acreditar tão facilmente na história de que nós voltamos dos mortos.

— Eu não sei bem — nesse momento ela estava passando o café no coador, e o cheiro estava me dando água na boca. Fazia uns dias que eu não tomava um café quentinho… — Mas ela sabe que eu sou policial, eu já avisei. Falei que preciso tratar um assunto jurídico e vou levar o meu distintivo para ela não ter dúvidas.

— Eu duvidaria, não querendo ser chato — mas já sendo. — Policiais geralmente não procuram as pessoas para falar de um B.O.: eles geralmente batem logo na porta.

— Isso no seu tempo, né? — Ela me chamou de velho elegantemente. Eu fiquei envergonhado, admito. — Hoje com a tecnologia avançada que temos acesso, as coisas mudaram bastante.

Isso que é ser xingado com classe. Se fosse levar em conta a vergonha que eu fiquei, eu facilmente viraria as costas e tentaria voltar a dormir. Porém não tinha rancor, ódio ou qualquer coisa negativa no tom de voz daquela garota. Ela realmente parecia amigável comigo.

— Tudo bem, não vou interferir no seu trabalho — falei. — Mas eu não acho justo você ficar trabalhando todos os dias da semana por causa da gente.

— Você me falando que eu trabalho demais? — É, né. — Não é você o Dinho dos Mamonas, aquela banda que não recusava fazer um show sequer?

Pensando por esse lado, eu realmente soei hipócrita.

— Mas a gente tirava as segundas para descansar e passar um tempo com as nossas famílias.

— Na verdade, eu não estou encarando esse encontro como trabalho — ela serviu um copo de café para mim e me passou a açúcar e uma colher, para que eu adoçasse do meu jeito. Depois serviu café para ela mesma e colocou adoçante. — Eu gosto de sair de casa, Dinho, e estou encarando esse encontro como uma forma de dar uma escapulida e respirar um ar que não seja o do meu apartamento.

Compreendi. Bom, não ia adiantar muito tocar nesse mesmo assunto de novo.

Tomei um gole da minha bebida, e só depois fui perceber que ela, enquanto bebia a sua, me fitava discretamente.

Eu desviei o meu olhar — entretanto, talvez não para o melhor lugar naquele momento. Involuntariamente os meus olhos pararam sobre a parte das suas coxas que estavam descobertas e, por mais que o seu short não fosse muito curto, estava inteiramente à mostra uma tatuagem que ela possuía na esquerda: uma pintura indígena.

— Você é índia? — A minha pergunta teria a pegado de surpresa se ela não estivesse prestando atenção em mim, porque o silêncio entre nós era tanto que era possível ouvir os roncos do Júlio ao fundo.

— Me desculpa corrigir, mas eu acho que você deveria cortar a palavra "índia" do seu vocabulário. O certo é "indígena".

— Ah — isso era pra ser um suspiro. — Desculpe. Você é indígena?

— Na verdade, não consigo te responder com precisão. O meu avô era um indígena Terena, o meu pai é filho de indígenas, porém é criado na cidade. Ele não fala a língua nativa e nem eu. Para ser indígena, teríamos que falar, além de sermos reconhecidos pela liderança da aldeia. Não sei se o meu pai foi, eu nunca perguntei isso pra ele, mas eu, pelo menos, não fui.

Ela deu de ombros antes de continuar.

— E a minha mãe não é indígena. A minha avó materna é egípcia.

— Então você é descendente de nativos brasileiros e egípcios? — Uma mistura inusitada que nela combinava perfeitamente. — Você realmente parece uma Cleópatra.

Dessa vez ela não sorriu timidamente: o seu sorriso foi largo. Eu que sorri tímido de volta.

— Isso me pareceu um elogio, então, obrigada!

Mais uma vez, o silêncio reinou entre nós. Porém, dessa vez, quem o quebrou foi a própria Giovanna.

— Mas e você? — Sim, eu fui pego de surpresa. — Bom, é justo você me contar um pouquinho sobre você também, mesmo que o que você vá contar eu talvez já saiba através da internet.

Internet, né…

— Essa tal dessa internet sabe o meu nome completo?

— Alecsander Alves Leite.

— Aonde eu nasci?

— Na Bahia.

— Em qual escola eu estudei?

— Escola Estadual Professor Roberto Alves dos Santos.

— Isso não vale — caralho! — Você é policial, deve ter acesso à minha ficha toda.

— É, você não tá errado — ela tomou mais um gole de café. — Eu tenho acesso à sua ficha criminal. Mas acredite se quiser, essas informações eu tirei todas da internet.

Eu fiquei até curioso para conhecer essa tal dessa internet. Isso porque eu acreditava nas palavras da Giovanna.

— Mas eu estou aqui, na sua frente — a sua voz ressoou novamente. — Mesmo que tenha várias curiosidades sobre você espalhadas por aí, eu sou privilegiada por estar conversando pessoalmente com você. Por isso eu quero te conhecer a partir do seu ponto de vista.

Olha, ela realmente parecia interessada nisso.

— Você vai realmente ignorar todas as coisas que já sabe sobre mim só para me ouvir contando sobre a minha vida?

— Eu vou — ela falava sério. — Você não é o Dinho do Mamonas? Não é todo mundo que tem esse privilégio de conversar contigo.

Eu fiquei um pouco sem graça com a sua frase, porém tentei esconder isso.

— Eu tenho uma vó espanhola. O apelido Dinho surgiu dela, porque ela não conseguia pronunciar Alecsander.

Ela sorriu mais uma vez quando ouviu a minha fala. Entendi aquilo como um sinal para continuar.

— Bem, eu tive a oportunidade de terminar os meus estudos, mas eu não quis. Se eu pudesse voltar atrás eu provavelmente terminaria a escola. Só depois de adulto eu fui notar que isso realmente faz falta.

— A boa notícia é que hoje em dia existe uma coisa chamada EJA — ela disse. — É uma espécie de ensino médio em um ano. Quem não completou os estudos tem a oportunidade de fazer isso através do EJA.

— É mesmo? — Olha, mais uma surpresa. Dessa vez uma que realmente me interessou. — Você me explica melhor sobre, depois?

— É claro.

Bem, assim a nossa conversa foi fluindo. Quando eu parava para falar sobre mim, ela ouvia com bastante atenção. Muitas pessoas que eu conhecia não eram assim, e eu me senti confortável com a Giovanna. Teve um momento em que eu disse que a estava importunando a tanto tempo porque queria ser seu amigo, e isso a fez erguer as duas sobrancelhas.

— Meu amigo? Um rockstar famoso quer ser o meu amigo?

— Eu não me considero um rockstar, e sim, eu quero ser seu amigo.

— Tudo bem, então. Agora somos amigos!

Não sei porque, mas eu me contentei demais ao ouvir aquilo.

— Sabe, Dinho — ela falou —, você é mais legal do que eu pensei que fosse.

— Ah é? E posso saber o por quê?

— Ah, sei lá… — Pareceu pensativa. — Eu assisti algumas entrevistas e vídeos seus, e você me parecia ser uma pessoa que não levava nada a sério.

Eu engoli em seco antes de responder.

— Eu tenho pra mim que brincadeira tem hora. Quando você estiver mal eu vou fazer gracinha para te ver alegre, mas tem horas que eu vou ficar bolado e tem horas que eu vou falar muito sério. Tudo depende do momento.

Eu a vi sorrir levemente mais uma vez.

— Você é mais interessante do que parece ser.

É, eu fiquei sem jeito de novo.

Depois de tudo isso, eu fiz questão de lavar o seu copo para lhe ajudar. Mesmo que ela dissesse que não, eu me sentia como um fardo em seus ombros e isso me incomodava. Ela olhou as horas — sete e meia — e decidiu sair de casa naquele momento. Os marmanjos ainda estavam dormindo e, mais tarde, um a um foi acordando.

Raquel ficou com a gente. Enquanto a prima estava fora, ela nos ensinou a mexer na televisão delas e nos deixou escolher um filme para assistir.

A Giovanna demorou a voltar, de fato. Porém, quando ela adentrou o apartamento, veio logo dizendo:

— Eu trouxe alguém comigo, crianças!

Ao dar um passo para o lado e sair de frente da tal pessoa, revelou a presença da Paula, irmã do Júlio. Ao nos ver, esta levou as duas mãos à boca, desacreditada, e depois desmaiou.

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