𝗢𝗯𝘀𝘀𝗲𝘀𝘀𝗮̃𝗼


Eu ainda tentava assimilar o ocorrido, alheio a todos que estavam comigo naquela sala, esperando serem chamados para o interrogatório.

Um ambiente de pouco barulho e muito caos interno, de conformidade e assimilação. Não olhei para ninguém ali, não conseguia. Eu era como um intruso no meio deles. Alguém que não se encaixava e, ainda, me apontaram como suspeito, assim como eles.

Mas não me importava com isso agora. Eu tinha perdido alguém. Minha alma gêmea ─ aquela que te compreende, te acolhe, te enxerga.

E que te faz perder completamente a razão.

Enquanto a minha vez ainda não era anunciada, uma lembrança me veio à mente. Um dia feliz e distante que eu guardaria no meu coração e na minha alma para sempre...

O rosto imaculado, livre de quaisquer imperfeições, os olhos focados, curiosos sobre o celular entre os dedos, parecia estar lendo algo, e os lábios umedecidos, dando a graça de seu toque a uma xícara de vidro qualquer.

A última imagem de Kiyoko, desta manhã em uma cafeteria da esquina de sua casa, ilustrava a minha mente enquanto o foco de minha visão cedia à um lindo buquê de rosas vermelhas, disposto elegantemente sobre o balcão do lado de fora de uma floricultura qualquer, contrastando com a profusão de cores das outras flores ao redor. Luzes suaves iluminavam os arranjos, realçando a beleza de cada pétala como um holofote em meio à escuridão na espreita graças ao sol que lentamente levava seu brilho para outra parte do mundo.

Noto de esguelha alguns passando pela calçada e parando para examinar as opções de flores, cada uma apresentando a promessa de um momento especial. Eu até entendia a popularidade que uma floricultura poderia ter nesta época do ano... Por mais que chocolates, sem dúvidas, eram quase uma regra para retribuir no White Day, que acontecia um mês após o Dia dos Namorados.

E eu queria retribuir o sentimento que Kiyoko me fazia sentir, de alguma maneira.

Queria que ela soubesse disso.

Uma pétala se desprendeu da coroa da rosa, caindo sobre o balcão em minha frente. Eu a peguei com a ponta dos dedos, sentindo a delicadeza e fragilidade que tanto me remetiam à imagem de Kiyoko em minha mente, por mais que ela tentasse se mostrar segura a todos ao seu redor, como um fragmento de seda na natureza, um cristal vulnerável e brilhante que, se eu apertasse um pouco em meus dedos, poderia despedaçá-la por completo e para sempre.

ㅡ Por acaso se interessou, senhor? ㅡ uma mulher de avental florido se aproximou, sorrindo quando olhei em sua direção, seu cabelo meio branco expressando certa idade. ㅡ Rosas vermelhas são mesmo muito populares entre jovens como você, principalmente nessa época do ano. Posso preparar um arranjo para dar à sua namorada. Que tal?

Minha "namorada".

Isso soou agradável aos meus ouvidos.

ㅡ Por favor ㅡ aceitei o seu serviço, mal conseguindo conter o sorriso com o pensamento.

Eu observava enquanto a mulher selecionava com delicadeza as rosas vermelhas mais frescas, também algumas rosas brancas, um pouco mais ofuscadas ao lado, em seguida, se direcionou à mesinha central qual continha várias fitas coloridas e ornamentos, ela escolheu uma fita branca e finalizou com um laço delicado, juntando e prendendo os caules. Não ficou cheio como imaginei que ficaria, mas ficou perfeito e elegante; à altura de alguém como Kiyoko, eu diria.

ㅡ Ela vai adorar ㅡ falei, por fim, pagando a mulher com alguns ienes que tinha no fundo do bolso.

Dando as costas, fiz o meu caminho até a rua onde Kiyoko morava, meus pés seguindo um trajeto já decorado como a palma da mão, como se tivessem ensaiado. Era apenas o esperado, afinal, eu visitava a rua dela mais do que voltava para a minha própria casa.

Avistando as extensas janelas que davam uma vista privilegiada do interior do apartamento de Kiyoko que, convenientemente, ficava no térreo, eu me escoro na mesma árvore curvada de sempre com uma mão dentro do bolso da calça e a outra segurando o arranjo com delicadeza, conseguindo observá-la como quiser graças ao enorme obstáculo de galhos e folhas que existia entre nós.

Kiyoko, como o habitual, estava linda com o coque desajeitado, meio frouxo que tinha feito, seus olhos apesar de nervosos ainda assim me faziam desejar que me tivessem como foco naquele momento...

Mas então um certo loiro surgiu na janela e eu senti o meu âmago se queimando.

Tsukishima Kei, o maldito namorado que nos impedia de ficar juntos abertamente. Sempre, sempre, sempre no nosso caminho.

Quando dei por mim, eu já não segurava o arranjo com a delicadeza que precisava para mantê-lo adorável. Pétalas vermelhas e brancas caíam em meus pés conforme eu fazia força para agarrar as flores que deveriam ser especiais.

Não estavam mais tão bonitas agora.

Eu ainda não gostava de vê-los juntos, era ele, toda vez, esbanjando a mesma arrogância irritante do caralho quando a visitava, quando a abraçava, quando a beijava, até quando a fodia! Se ele soubesse, no entanto, que ela não o pertencia realmente, que era eu quem estava em seus pensamentos mais profundos... Ah, eu gostaria de ver qual reação faria então.

Alguns gestos bruscos pela janela e eu soube dizer que estavam discutindo sobre algo, menos mal, não teria que vê-los fazendo amor desta vez. Ambos gritavam um com o outro, Tsukishima andando de um lado para outro, furioso, enquanto Kiyoko permanecia de braços cruzados sobre a ponta da mesa que ficava em frente à enorme janela. Ela poderia olhar na minha direção com facilidade, a qualquer momento, mas sei que não o faria na presença do namorado.

O loiro gesticulou algo, por fim, abrindo a porta da frente do apartamento, dizendo uma última coisa antes de se colocar para o corredor estreito do lado de fora, batendo a porta no processo.

Eu pude ler seus lábios naquele breve momento em que olhou por cima do ombro.

"Feliz White Day, menina de ouro."

Segundos depois, o vi saindo pelas portas vitorianas que enfaixavam o complexo de apartamentos de alto nível onde Kiyoko vivia de forma subsidiada pelo pai.

Disfarcei enquanto ele descia o pequeno lance de escada e virei para o outro lado quando atravessou para o meu lado da calçada, indo na direção oposta em passos largos, visivelmente estressado pela recente discussão, seja lá por qual motivo. Mais tarde eu iria descobrir de qualquer forma.

Voltei com minha atenção à Kiyoko, notando o rosto vermelho, talvez tentando segurar as lágrimas enquanto massageava as têmporas em um tolo hábito de se manter forte, até quando estava sozinha. Sinceramente, era uma das incontáveis coisas que admirava nela.

Porque só eu sei como eu nunca conseguiria aguentar metade das merdas que aconteciam com ela.

A luz dos postes já tinha se acendido há algum tempo, mas só quando Kiyoko se levantou que as notei de fato, iluminando a rua vazia de carros e pessoas que tantas vezes visitava por dia. A noite, naquele momento oficialmente estabelecida, oferecia um ar de mistério e solidão, uma vez que Kiyoko saiu da sala, desaparecendo da janela e da minha vista.

Cadê você? Eu quero te ver, amor.

Eu não sabia quantas horas já tinham se passado, tampouco quanto tempo eu permanecia ali, imóvel, focado, procurando alguma mínima movimentação dentro daquela casa. Não tinha mais noção de tempo, de espaço. E o cansaço em minhas pernas sugeria que eu estava aguardando há muito, muito tempo.

Eu não podia mais esperar, queria vê-la.

Olhei para os dois lados da rua, checando estar vazia antes de me aproximar do prédio, pelas laterais onde eu teria acesso à janela da cozinha, esperando estar destrancada para poder entrar. Estava. Tudo lá dentro era escuro, vejo por cima do balcão que separava dois cômodos a mesa onde Kiyoko tinha ficado sentada por longos minutos, a luz dos postes lá fora a banhando com um amarelo amargo, retraído.

O espaço era enorme, eu me perderia facilmente se já não conhecesse tudo como a palma da mão, móveis chiques e decorações que poucos conseguiam arcar dando sentido ao motivo dela morar em um lugar tão nobre como este, embora a arrogância alheia permitisse uma segurança impotente, deixando alguém como eu entrar no apartamento de uma pessoa com sobrenome tão influente. Bom, eu agradeço por isso.

Segui meus passos até um pequeno corredor escuro, sendo o mais silencioso possível para que ela não se assustasse com a minha presença repentina, embora eu soubesse que já estava dormindo. Kiyoko é sempre tão ocupada que precisava ir para cama cedo, toda noite, até nos finais de semana, mesmo após essa briguinha com o namorado.

O ranger da porta se instalou entre nós de forma quase imperceptível, ao mesmo tempo em que uma fragrância agradável de cerejeira chegava até mim, eu lentamente me familiarizando com o cheiro dela.

Como eu havia pensado, ela estava com os olhos fechados, dormindo de barriga para cima, o fino cobertor de cetim a cobrindo até a altura do busto.

Eu lentamente sigo meus passos até o lado da cama queen onde tinha a mesa de cabeceira, não desviando o meu olhar de Kiyoko em momento algum. Suspirei profundamente ao ficar próximo dela, tão próximo que eu poderia tocá-la.

Olhei brevemente o arranjo em minha mão, as pétalas vermelhas profundas se destacando no branco como sangue derramado na neve. Embora amassadas e levemente lúgubres, ainda tinham o seu charme. O coloco sobre a madeira quase vazia da cabeceira, ao lado do celular com a tela virada para baixo e de um livro qualquer.

Queria poder ver sua reação ao acordar.

Eu te arrancaria o primeiro grito de paixão do dia?

Continuei admirando, me sentindo especial por compartilhar de seu ar, apreciando cada detalhe de seu rosto, os cabelos curtos, na altura dos ombros, a expressão serena, a pinta perto da boca. Me senti mais quente, mais ofegante, já tinha dado a minha hora ali. Tinha que ir embora.

No entanto, meus olhos se fixam ao pescoço antes disso, a pele intocável me dando vontade de apertá-la. Devia encaixar perfeitamente em minha mão. E a marca vermelha que eu poderia deixar... Teria retribuição melhor por um sentimento tão sufocante?

Vermelho sempre foi a cor do amor, afinal.

Certo?

ㅡ Senhor, eu perguntei o seu nome ㅡ o detetive à minha frente coça a garganta, me lembrando do acontecido da noite, a biblioteca ambientada ao redor sussurrando entre os livros apesar do enorme silêncio.

ㅡ Desculpe, é Shirabu Kenjirou ㅡ respondo com a voz baixa, me ajeitando na cadeira. Não podia negar meu nervosismo, mas faria de tudo para escondê-lo.

ㅡ Certo... Vou começar pedindo para que descreva como foi a sua noite até o presente momento. Não poupe detalhes.

Apoio uma perna na outra, deixando-as cruzadas enquanto tento não quebrar o contato visual com o detetive que me analisa de todas as formas possíveis; seu olhar aguçado chega a me apavorar, é como se ele pudesse ler os meus mais profundos pensamentos.

ㅡ Bom, eu me mantive afastado de atenções praticamente o evento inteiro. Esperei de pé no fundo do salão o leilão terminar, até todos os convidados se dispersarem para aproveitar a festa. Ninguém pareceu me notar... Então tomei a liberdade de desfrutar de alguns canapés e bebidas caras que os garçons estavam oferecendo, já que não tenho o costume de experienciar nada disso.

Lembro-me de trocar olhares com o irmão de Kiyoko no momento em que o leilão aconteceu, mas não achei necessário acrescentar esse pequeno detalhe. Iwaizumi Hajime pouco se importou com a minha presença, também.

ㅡ Sobre o seu relato, você não me pareceu ser reconhecido por ninguém. Por que recebeu o convite da festa?

ㅡ Eu... ㅡ abaixo a cabeça, sentindo minhas mãos molhadas. ㅡ Não foram os pais de Kiyoko quem me convidaram, mas sim a própria Kiyoko. Ela mencionou em uma conversa sobre esta festa beneficente e comentou que eu poderia comparecer caso fosse de minha curiosidade e vontade.

ㅡ Então não foi um convite formal, certo? Se o senhor não estava na lista de convidados, então me intriga ter conseguido entrar, especialmente pela porta da frente.

Porra de detetive.

ㅡ Não, foi formal. E ela colocou o meu nome na lista de convidados, sim, pode conferir! ㅡ que ótimo trabalho eu havia feito.

O detetive toma um breve momento de silêncio, me observando com aqueles olhos espertos como se já soubesse de tudo embora eu não conseguisse sequer adivinhar no que estaria pensando.

ㅡ Qual a sua relação com a vítima, mesmo? ㅡ ele finalmente pergunta, fixo em mim, o tom de voz baixo.

ㅡ Tudo bem, acho que não vou conseguir esconder por muito mais tempo ㅡ respirei profundamente, captando, agora, uma sobrancelha levemente erguida no rosto sem expressão do homem.

Acredito que eu tenha prendido a atenção até do policial que assistia ao interrogatório atrás de mim, mas não era minha intenção levantar suspeitas, pelo contrário.

ㅡ Kiyoko e eu tínhamos uma relação... especial. Um relacionamento escondido que ninguém poderia saber ㅡ larguei ao vento, não mais conseguindo encará-lo.

ㅡ Era um amante, então? ㅡ pergunta ele, acompanhando o movimento agitado que meu pé fazia sobre a coxa. ㅡ Entendo, a família Shimizu tem uma imagem a zelar, a filha prodígio devia temer o envolvimento em um escândalo como esse.

Concordo com a cabeça.

ㅡ Eu a amava como ninguém ㅡ mais do que tudo.

ㅡ Houve algum acontecimento na festa que chamou a sua atenção? ㅡ ele segue com uma voz sem emoção, quase estóica.

ㅡ Sim... eu acho. Em algum momento muitos presenciaram a pequena discussão entre Tsukishima e Kageyama ㅡ os vermes que não mostravam valorizar alguém como ela em suas vidas, não o suficiente. ㅡ Acredito que Kiyoko fosse o principal motivo.

ㅡ Mais alguma coisa?

ㅡ Não. Me mantive longe de todos, não poderia correr o risco de envolver Kiyoko em qualquer enrascada. Eu estar na festa já era algo a evitar!

ㅡ Entendo... Você não parece ter muito mais coisa que possa me dizer ㅡ ele suspirou, se levantando em seguida.

Eu o acompanho, enfiando as mãos dentro dos bolsos da calça, o tilintar de chaves permeando o silêncio.

ㅡ Uma última pergunta: já esteve aqui antes?

ㅡ Kiyoko já me apresentou o lugar há algum tempo, sim, mas creio que algumas coisas mudaram desde a última vez.

ㅡ Por exemplo?

ㅡ Já viu as rosas que a senhora Shimizu plantou? São bem bonitas, detetive. O toque da lua as deixam mais elegantes, levemente prateadas, também ㅡ sorri de canto.

Ele piscou os olhos, assimilando, logo me ofereceu um leve aperto de mão.

ㅡ Talvez eu as veja quando encontrar o culpado.

Fui liberado logo depois, passando pelo policial na porta e voltando ao cômodo onde outros suspeitos aguardavam pelo veredito. Ninguém havia olhado em minha direção por mais do que dois míseros segundos, apenas o suficiente para se perguntarem quem diabos seria eu para estar aqui junto com eles.

Não precisavam, não iriam me reconhecer de qualquer forma.

Embora eu já conhecesse tudo sobre eles.

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