𝗜𝗻𝗳𝗲𝗿𝗶𝗼𝗿𝗶𝗱𝗮𝗱𝗲


É uma pena.

Gostaria de estar pensando isso, mas realmente não existe um pingo de pesar em meu ser. Para lamentar a perda de algo, é preciso ama-lá, e esse é um sentimento que nunca tive em relação aquela pessoa.

Um laço de sangue nunca foi e nunca será o suficiente para criar um vínculo de família, nem com ela e nem com ninguém dessa casa amaldiçoada. Para sempre eu seria o segundo, o filho que vive na sombra e esbanja as glórias conquistadas pela primogênita. O amor que não se mede era bom apenas para os negócios, traz boa visibilidade. Meu inútil pai, e mãe de merda, olhavam para mim quando havia uma câmera de repórter apontada em nossa direção. Fora isso, guardavam atrás do brilho falso, a indiferença.

Se não fosse a farta quantia de dinheiro recebida por manter a boca fechada e colaborar com essa peça de teatro, já teria chutado a porta da frente e feito uma nova realidade. Foi por esse motivo, e os zeros na minha conta, que me forcei a colocar um terno de grife e comparecer a mais um falso testemunho, a festa beneficente de Kiyoko.

A irmã que o mundo inteiro gostaria de ter, a garota perfeita. Altruísta, dona de um excepcional talento, a menina dos olhos da sociedade e a herdeira do grande império farmacêutico.

Uma grande mentira moldada desde seu nascimento para os tolos aplaudirem, a joia da família que no fim era apenas um item de mostruário. Enquanto esperava para ser interrogado, uma lembrança veio a minha mente, o da última reunião de família.

Mais um insuportável jantar na casa principal, ao menos uma vez por mês éramos obrigados a ficar juntos para manter a mentira da família ideal viva. 

Eu, como sempre, estava calado. Não se dirigiam a mim, não me olhavam, não se importavam, mais uma noite obrigatória com uma presença descartável.

ㅡ Eu não posso comparecer a mais uma reunião com os diretores ㅡ Kiyoko jogou os cabelos para o lado ㅡ, tenho um seminário.

ㅡ Cancele, preciso de você no escritório para fechar o contrato v meu desprezível pai manteve a voz firme, sem desviar os olhos do prato.

Girei a taça de vinho levantando o copo até a boca em seguida, ao menos dessa vez parece que terei uma diversão.

ㅡ Não ㅡ a garota soltou os talheres na mesa, minha mãe imediatamente se virou. Olhos afiados, severos, e que não esperavam nada menos do que a perfeição, julgando suas ações abomináveis.

ㅡ Esse não é um comportamento digno de uma dama.

Vi de canto de olho as mãos da minha irmã fecharem sobre o colo, a cabeça se abaixou levemente antes de voltar a se levantar com certa determinação, havia alguma ferocidade queimando atrás dos olhos.

ㅡ Passei o semestre trabalhando nisto, é a minha chance! Espera que eu jogue para o alto por um contrato que nem sei sobre o que se trata?

ㅡ Não estou pedindo Kiyoko ㅡ o velho soltou os talheres na mesa de maneira silenciosa, sua mão buscou o guardanapo para limpar a boca e em seguida sua cabeça se ergueu.

A força que tinha em sua presença fez até mesmo um pedaço de carne de primeira qualidade se tornar difícil de engolir.

ㅡ É uma ordem. Você não precisa saber, precisa seguir o que eu mando.

Minha irmã, farta da conversa, se levantou rapidamente, fazendo a cadeira se arrastar ruidosamente pelo chão. Jogou o guardanapo sobre o prato de comida, onde o molho vermelho manchou o tecido branco, refletindo — talvez —, a ferida interna feita pelos próprios pais.

Tive que morder o interior da minha bochecha para evitar rir, é isso que se ganha por ser a queridinha.

ㅡ Hajime ㅡ me chamaram ㅡ, como pode agir dessa maneira diante da situação?

ㅡ Me surpreende que ainda sabe meu nome, mãe ㅡ mantive os olhos no prato, continuando a comer. ㅡ O que espera que eu faça? Fantasmas não se intrometem nos assuntos de família.

Ela, que se sentiu muito ofendida, levou a mão até a boca ㅡ Como pode falar assim com a pessoa que deu à luz a você? Meu coração não pode aguentar tanta tristeza de uma vez.

ㅡ Mantenha a boa educação que te damos enquanto fala com sua mãe, nos deve pelo menos isso por prover um teto, dinheiro e alimento por todos esses anos ㅡ travei os dentes.

Certo porque relações humanas não são nem um pouco necessárias.

ㅡ Aja como um irmão uma vez na vida e traga Kiyoko de volta imediatamente.

Não sabia dizer quando foi a última vez que seus olhos se encontraram com os meus, mas me lembrava das consequências severas de os ignorar.

Me levantei da mesa deixando a refeição pela metade, seguindo com passos firmes para a varanda do segundo andar. Não fiz questão de ser silencioso para abrir a porta de vidro.

ㅡ O velho mandou você voltar.

Kiyoko se virou na minha direção, os olhos marejados e uma expressão triste. Se afastou da beirada, puxou as mangas do cardigã e esfregou os olhos, deixando o avermelhado de choro mais evidente.

ㅡ Pode voltar sozinho.

ㅡ Não me importa se você e o velho se matarem na mesa de jantar, mas vou te arrastar de volta para lá se for necessário. Então não me fode Kiyoko.

Ela pareceu surpresa pelo palavrão que disse, comentando que nunca passara por sua cabeça eu sequer saber esse tipo de linguajar.

ㅡ É não sabe muito sobre mim - abri a porta ㅡ, anda logo.

ㅡ Eu queria ter a sua vida ㅡㅡ confessou ㅡ, tudo deve ser muito mais simples, viver sem expectativas.

Ar travou no meu pulmão, apertei a maçaneta a ponto dos nós dos dedos ficarem brancos.

ㅡ Minha vida? Você quer ser tratado como um ninguém? Ser o pobre e inútil irmãozinho de quem não se espera nada? O verme que fica se arrastando embaixo dos seus sapatos de grife? Não me faça rir, engula essa sua birra de merda e volte para vida perfeita que você tem.

ㅡ Hajime, você me odeia?

ㅡ Céus, é você Sherlock? O que me denunciou? Foi o fato de nunca termos sido realmente irmãos na vida, ou a repulsa dos nossos pais em relação a mim porque eles só conseguem enxergar você? ㅡ bati a porta da varanda, fechando nós dois no frio da noite

ㅡ Eu nunca quis isso.

Forcei um bico e cruzei os braços ㅡ Pobre Kiyoko, cansou de ser a princesinha porque teve um pequeno gosto da liberdade. Não seja cínica, se nunca quisesse isso não teria aproveitados as décadas sendo paparicada, eu me lembro de cada olhar que deu para mim quando recebia um elogio. De cada afago nos cabelos quando se destacou na escola. Todo o carinho, todo o amor despejado em cima de você e que nunca veio para mim.

ㅡ Eu mataria para ter tudo que você temㅡv  ralhei entredentes.

ㅡ Então o faça, aqui mesmo.

Repentinamente suas mãos pegaram as minhas, as levantando até o pescoço fino.

Foi a primeira vez na vida que senti o gosto do poder, a pele lisa e clara estava gelada contra meus dedos. Apertei os dígitos sentindo a artéria pulsar contra a minha palma, Kiyoko fechou os olhos com força aguardando pelo fim de uma existência infeliz.

Como se tudo fosse terminar assim, só porque era seu desejo.

ㅡ Não se engane, eu a desprezo o suficiente para fazer isso ㅡ dei um passo para frente nos aproximando. 

ㅡ Tudo que é seu, então, viria para as minhas mãos, a recompensa que mereço por aguentar toda essa merda olhando sempre do fundo do poço.

Sua respiração se tornou pesada e o batimento errático, os olhos se fecharam aguardando pela última jogada.

ㅡ Mas o meu mundo não gira a sua volta, não vou te dar o gosto da realização. Ficarei feliz em cumprir o seu pedido, no dia em que não quiser mais morrer e estiver prestes a ter o mundo nas mãos.

Soltei seu pescoço, um riso nascendo de minha garganta puxando o canto dos lábios para cima.

ㅡ Até lá, bem-vinda ao inferno.

ㅡ Senhor Hajime.

A voz calma do detetive, repentinamente me puxou de volta para a biblioteca, onde os interrogatórios teriam lugar.

ㅡ Me perdoe detetive ㅡ abaixei a cabeça ㅡ, tudo parece tão irreal. Não acredito que minha irmã... Nos deixou dessa forma.

Os olhos esverdeados do homem sentado na poltrona como se fosse dono dela não se alterou, ele não estava ali para me confortar. Não que eu precisasse.

ㅡ Entendo ㅡ a voz quase sem emoção soou ㅡ, deve ser difícil, considerando ser família falar sobre a situação. Mas pode me dizer como foi a noite, do seu ponto de vista.

ㅡ Claro, claro ㅡ me ajeitei na poltrona ㅡ, cheguei atrasado na festa. No meio do leilão, não tinha intenção de fazer nenhuma grande aquisição, então me mantive no fundo do salão até que o evento terminasse. Quando a soma total do dinheiro arrecadado foi anunciado, estava junto da família para as fotos oficiais.

Não parecia que ele tinha a intenção de me interromper, logo continuei o relato.

ㅡ Cumprimentei alguns conhecidos e aproveitei o resto da festa. Se tenho algo para confessar é que a comida e bebida chamou mais minha atenção. Não sou a estrela de eventos como esse, então posso aproveitar causalmente.

ㅡ Pode dar nome as pessoas que falou e prover mais informações sobre o cardápio?

No momento em que entrei na biblioteca achei a figura do detetive peculiar, afinal não tinha uma farda policial e parecia muito mais com os caras que gostavam de ficar com o nariz enfiado no meio de livros.

ㅡ Oikawa é um conhecido ㅡ respondi sua pergunta ficando um pouco mais alerta ㅡ e naturalmente Kageyama e Tsukishima. Sobre o cardápio, todos os canapés passaram pela minha mesa, mas a estrela para mim realmente foi o saquê Namakase. Meu pai tem um gosto muito refinado para álcool.

ㅡ Nunca ouvi sobre.

ㅡ É uma bebida refrescante, por não ter o último processo de aquecimento as enzimas de fermentação continuam ativas ㅡ expliquei ㅡ Como o calor é um fator fundamental eles são geralmente mantidos em refrigeração e servidos gelados, ótimos para comemorações. Inclusive havia acabado de pedir uma nova garrafa quando recebi com pesar a notícia.

ㅡ Imagino ter sido um choque.

ㅡ Sim ㅡ respondi, resgatando na mente o texto pronto de bom irmão ㅡ Kiyoko era simplesmente incrível. Mesmo sendo jovem, estava profundamente envolvida em causas sociais e sonhando com um mundo melhor, se preparando para assumir os negócios da família. Ela conquistou tanto nos últimos meses... Não perdi apenas uma pessoa importante da minha família, a humanidade que perdeu uma grande pessoa.

ㅡ Inevitavelmente as responsabilidades dos negócios cairão sobre você agora.

Balancei a cabeça negativamente ㅡ Nunca cheguei aos pés da minha irmã, mas suponho que se for o desejo dos meus familiares. Terei que dar o meu melhor.

A imagem do meu velho se retorcendo de desgosto por ter que dar atenção para o único que sobrou de sua linhagem surgiu na minha mente como um deleite. Mal podia esperar para ver aqueles que se recusaram a olhar na minha direção, me tratar como o grande salvador.

ㅡ Me perdoe perguntar, mas como ganhou esses machucados?

Encarei as linhas finas e avermelhadas nas costas da minha mão ㅡ Trabalho num abrigo de animais, uma das gatinhas que cuido realmente odeia tomar banho. Luta como se estivessem brigando pela sua vida.

ㅡ Entendo. Tem mais alguma informação que pode me dar?

Neguei ㅡ A princípio não, como disse, fiquei afastado dos holofotes. Não vi em minha permanência nenhum ato estranho, então não teria como apontar algum culpado.

ㅡ Claro que não ㅡ o detetive se levantou com a mesma expressão de indiferença ㅡ, afinal, esse é o meu trabalho. Acredito que acabamos por aqui.

Repeti seu gesto, e sua mão foi estendida em minha direção. O cumprimentei em sinal de respeito e acompanhei o investigador que também estava com ele até a porta, agradeci pelo bom trabalho da equipe e virei para voltar a sala dos interrogados, não antes de escutar soar do lado de dentro uma frase abafada.

ㅡ Traga o próximo suspeito.

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