- 𝗜𝗡𝗩𝗘𝗦𝗧𝗜𝗚𝗔𝗖̧𝗔̃𝗢 -
Um crime, um trabalho, uma solução.
Essa tem sido a rotina pacata e desinteressante de minha vida. Encarando os prazeres dos vivos nos olhos vítreos dos meus clientes mortos, desejando cada vez mais manter-me no invólucro de ignorância. Trocando muitas vezes a companhia incerta e acalorada de uma noite, por um livro ou uma visita ao esplêndido teatro metropolitano de Tóquio. Casa dos mais variados espetáculos, no coração da terra do sol nascente.
Eu, que costumo viver através da existência de outros, recentemente desenvolvi um estranho gosto por caminhadas. Visitar o parque localizado a apenas duas quadras da minha casa mediana num bairro antigo tornou-se um bálsamo para a mente abarrotada. Nos caminhos de árvores antigas, retorcidas e que se curvaram num arco com elegância, encontrava equilíbrio para lidar com dias repletos de lugubridade.
Assim como em tantas manhãs anteriores, perambulava pelos trilhos entrecortados do recanto, deslizando meus passos com uma cadência tranquila. Observava, com atenção, o já familiar cotidiano que se desenrolava ao meu redor. Nesse dia, no entanto, algo chamou minha atenção. Um casal de idosos, presença habitual naquele cenário, parecia estar mais afoito do que de costume. O mais idoso segurava uma sacola repleta de fios coloridos, um indício de que estavam a caminho do mercado local para a sua rotineira jornada de compras mensais, enquanto sua cônjuge tentava acompanhar com passos apressados arrumando os fios grisalhos que insistiam em escapar da faixa na cabeça.
Lembro-me de uma vez, em que resolvi fazer uma visita ao mesmo comércio, e nessa ocasião vi senhor de testa enrugada escorregar duas notas a mais de iene para um vendedor a fim de ter os melhores pescados do dia. Um acordo silencioso, provavelmente firmado muito antes de me mudar para a região e que provavelmente demandava dos mais experientes que chegassem à barraca de frutos-do-mar antes dos clientes recorrentes.
A beleza das pequenas rotinas é indescritível, para mim é um conforto que torna a vida caótica mais palatável.
Uma das minhas mãos estava no bolso, a outra mantinha um cigarro preso entre os dedos. O clima ainda frio e úmido da troca de estação entre a primavera e o verão ainda tinha a maioria dos dias presos em suas mãos. Sentado num banco, onde as folhas formavam um tapete no chão, contemplava mais um 'hoje' que começa como todos os outros. Aguardando a chegada do jovem policial, que agia como um mensageiro alado em serviço de seus superiores, para me trazer informações a respeito do meu próximo trabalho.
Um ávido leitor de literatura investigativa, pode pensar que a vida de um nomeado detetive é repleta de reviravoltas e cenas de ação memoráveis. Contudo, a realidade não tem tantos acontecimentos dramáticos como meus colegas fictícios sugerem em suas páginas.
O serviço de um verdadeiro detetive mora na meticulosa análise de dados e na coleta de indícios, que quando cuidadosamente amarradas revelam as partes ocultas do crime. É um ofício que exige paciência e uma grande dose de perspicácia, atributos esses que dificilmente serão gatilhos para tiroteios e duelos intelectuais.
Ali, bem a tempo do último trago, enquanto as últimas espirais de fumaça se dissipavam no ar junto de meus pensamentos soltos, ele apareceu. Demonstrava um certo desespero, como sempre, ajustando apressadamente o quepe na cabeça e se curvando noventa graus em sinal de respeito, recuperando o fôlego de correr todo o caminho da entrada do parque até ali.
ㅡ Detetive Akaashi, senhor! Bom dia!
ㅡ Não existe necessidade de tanta formalidade ㅡ indiquei, erguendo-me e descartando o resto do cigarro na cigarreira. O frio matinal havia deixado meus dedos frios, aproveitei o momento de liberdade para acomodá-los nos bolsos do sobretudo.
ㅡ Qual é o enigma do dia? ㅡ me coloquei a andar na mesma direção da qual o jovem viera correndo.
O policial deu um salto e se posicionou ao meu lado, seus passos apressados acompanhando o ritmo dos meus. ㅡ Ainda não fui informado, senhor. Fui instruído apenas a procurá-lo.
Peculiar.
Geralmente os superiores passariam um relatório raso e mal-feito para o jovem policial, ele então usaria suas melhores habilidades de comunicação para me munir com uma visão geral do caso até a saída do parque. Considerando a falta de informação dessa vez, significa apenas uma coisa.
O epicentro desse crime deveria permanecer em segredo até tudo se resolver.
ㅡ Se olhar dentro do seu quepe vai perceber que o trocou com seu companheiro de turno ㅡ apontei mantendo o rosto voltado para frente.
O jovem, que logo em seguida pegou o chapéu para olhar, exclamou ㅡ Detetive! Como descobriu? Não me surpreende que estive com problemas assim que o coloquei.
ㅡ Está largo e os fios de cabelos presos nas laterais são mais claros. Suponho que seu colega também tenha um gatinho de estimação, se considerar o odor fraco da urina.
O policial parou de andar, completamente estupefato. Sua boca levemente aberta ㅡ Sim, está correto senhor. Incrível!
Na verdade, não, a ignorância dos detalhes sempre causam surpresa quando apontados. Se ele tivesse olhado o quepe ao invés de apenas se perguntar o que havia de errado com a peça de vestimenta, teria descoberto por si.
Olhei para frente, na saída do parque um conhecido carro me aguardava e na frente dele o inspetor vestido a paisana.
A primeira confirmação de que era um caso atípico veio com o jovem policial excluso da informação, a segunda com o superior dele que pareceu alegre demais com a minha presença. Geralmente suas ações eram bem menos amigáveis, afinal nos seus olhos eu era um pirralho arrogante que nem ingressou na academia de polícia e acha que sabe todos os segredos do mundo.
ㅡ Não o vejo tão animado desde o caso do assassino de vermelho ㅡ comentei assim que me aproximei.
Imediatamente seu rosto se deformou, cessando qualquer entusiasmo ao me ver ㅡ É um crime, como posso estar animado? Estou horrorizado. Diferente dos cortiços no distrito vermelho, esse caso é um problema de nível nacional! Mas não devemos falar aqui, vamos, vamos! Entrem no carro, os dois.
Apesar da voz apressada, tomei meu tempo para andar até o banco do passageiro, uma lufada de vento frio soprou, me fazendo olhar para o céu de nuvens mescladas, não precisava de deduções para saber que iria chover em breve.
ㅡ Então, é um político ou celebridade que morreu? ㅡ questionei assim que entrei que fechei a porta e me ajeitei, o cheiro forte e artificial de perfume automotivo fazendo arder até mesmo o interior do meu nariz.
Os bancos de couro escuro estavam gastos, pequenas lascas de tecido sintético se erguiam da costura, e no geral poderia dizer que o veículo poderia fazer bom proveito de uma lavagem completa e intensa.
O inspetor tem plena consciência do meu modo de trabalho, o que talvez contribuísse para alimentar sua antipatia em relação à minha pessoa, não que esse fato me causasse grande preocupação. No entanto, justifica a minha pergunta direta e o fato dela não ser questionada.
Ele respirou fundo, como quem busca por paciência antes de responder.
ㅡFilha de magnatas da indústria farmacêutica. Tão jovem...
Levou alguns momentos para vasculhar na mente alguma referência, até que finalmente encontrei. É incomum famílias terem controle total sobre os negócios no século XXI. A grande maioria opta por vender parte das ações no mercado, passando a ter acionistas externos junto à dinâmica familiar.
Pouco mais de três meses atrás minha atenção foi atraída por um artigo publicado por uma estudante de farmácia, seu texto complexo e preciso causou certa admiração. Naturalmente uma mente brilhante se sente atraída pela genialidade de outra e essa pesquisa me levou a um nome.
ㅡ Shimizu Kiyoko ㅡ comentei casualmente. ㅡ Lamento que seus estudos sobre etnobotânica tenham sido interrompidos, seus escritos eram realmente esclarecedores. É fascinante como a relação entre plantas e a cultura humana cresce de maneira intrínseca, a maneira que ela abordou o aspecto biológico das plantas e o valor do conhecimento acumulado de gerações por meio do empirismo é notável.
O inspetor me ignorou, não se dando ao trabalho de responder minha observação ㅡ Infelizmente está correto. Shimizu Kiyoko é a triste vítima desse caso. A pergunta que todos fazem é: por que alguém tiraria a vida de uma jovem como ela?
ㅡ É exatamente por esse motivo que me chamou, não é? ㅡ apontei recebendo em seguida uma meia careta por parte do inspetor. Em um gesto de reflexão, fechei os olhos e juntei as mãos ㅡ Descreva a situação para mim.
Enquanto o veículo se direcionava para fora da cidade, a voz nasalada e aborrecida do inspetor preencheu o carro. Dando além da informação relevante, suas considerações completamente desnecessárias.
O panorama é simples, porém não menos intrigante: uma festa destinada a angariar fundos em nome da filha, a fim de doar para instituições de desenvolvimento humano, acontecendo na mansão desolada e luxuosa da família, oculta nas dobras das montanhas. Durante a celebração, no caminho para o fim, um breve intervalo de ausência de Kiyoko, e então seu corpo é descoberto sem vida num dos cômodos.
Os suspeitos? Todos os que frequentavam a festa, até que as evidências provassem o contrário. Era como se diante de mim se abrisse um tabuleiro de jogo, uma lembrança das clássicas partidas de "Detetive" que comicamente leva o mesmo nome da minha profissão.
Quando chegamos ao local, não pude deixar de admirar a arquitetura deslumbrante da mansão, na quietude da manhã fria, uma fina cortina de névoa envolvia suas paredes, e a estrada privativa que nos levou até ali não aparentava ter nenhuma anormalidade a ponto de chamar minha atenção. Um trovão fez se arrastar acima das nuvens, soando como um primeiro aviso da tempestade.
ㅡ Antes de entrarmos, podemos olhar o terreno? Creio que a chuva irá nos alcançar em breve.
ㅡ Se está procurando qualquer pista, irá perder seu tempo. Meus garotos já olharam o perímetro e não encontraram nada.
ㅡ No entanto, não fará mal conferir novamente, não é verdade? ㅡ respondi com calma, desviando o olhar para as árvores em forma de cone que se faziam de muro nos terrenos e não dando atenção para o velho sisudo que me fazia companhia.
As grimpas de pinheiros se quebravam a medida que andava pelo terreno disforme, a princípio sem caminhos para se aproximar da propriedade sem que fosse a via principal. O inspetor estava certo quando disse que os meninos deles já haviam passado por ali, a terra úmida estava revirada como se um cão tivesse afundado seu focinho a cada trinta centímetros de lama.
ㅡ O que busca detetive Akaashi? ㅡ a voz jovial do policial que me fazia companhia soou nos ouvidos, mostrando certa curiosidade.
ㅡ Tudo e nada ao mesmo tempo - respondi e continuei ㅡ me responda uma coisa. O tradicional para grandes mansões como esta é ter uma entrada dedicada a funcionários não é?
ㅡ É a primeira vez que visito uma senhor, mas acredito que sim. Gostaria que eu desse uma olhada?
Assim que o jovem se propôs, fomos presentados com uma trilha de terra, escondida em meio a floresta, longe o suficiente para os policiais terem preguiça de ir num primeiro momento. Imaculada dos cães farejadores de duas pernas, parecia uma potencial retentora de evidência. Larga o suficiente apenas para passar um carro comum, tinha dentre os galhos cheios e verdes no alto fios de eletricidade passando.
ㅡ Já que um caminho se abriu, devemos segui-lo.
ㅡ Mas detetive, e o inspetor?
ㅡ Creio que ele sobreviva a nossa ausência por mais alguns instantes.
Instrui o policial para seguir, e pisar exatamente onde eu pisava, algo em torno de cem metros depois, se a minha contagem de passos não estivesse errada. Um pequeno casebre apareceu, escuro, quase se camuflava entre os troncos das árvores. Não mais do que 4m² de telhado baixo e visivelmente mal cuidado.
Aparentemente não havia ninguém, pois quando espiei por uma das janelas de vidros embaçados não observei nenhuma movimentação.
ㅡ Parece com uma sala de segurança antiga ㅡ disse o policial por cima de meu ombro.
Bati em seu ombro de leve, indicando para sair de meu caminho, andando em paralelo às paredes procurando outra entrada. Atrás, havia apenas uma janela, porém a madeira no batente tinha uma coloração diferente com ângulo anormal, um pequeno movimento para baixo e ela se soltou revelando uma chave prateada e brilhante.
ㅡ Engenhoso ㅡ comentei para o vento.
Nesse instante o grito do policial rompeu o ar, rapidamente andei até a frente do casebre onde ele estava. Havia uma figura completamente vestida de preto, com um grande capuz em sua cabeça, fazendo sombras no rosto com uma aura a princípio perturbadora. Na mão enrugada, de dedos finos, havia um aparente cajado de madeira retorcida. Caído sentado nos degraus, o jovem estava atônico como se enxergasse no escuro do capuz todos os terrores do mundo.
ㅡ Desculpe, não sabia ter visitas ㅡ o senhor de costas curvadas puxou o topo da vestimenta revelando um rosto redondo e olhos puxados ㅡ, como posso ajudar?
ㅡ Viemos investigar o caso ㅡ expliquei visto que a alma de minha companhia ainda parecia estar voltando para o corpo.
O mais velho se apoiou na madeira para dar passos até os degraus e então se sentou ao lado do policial agora envergonhado.
ㅡ Sim, uma tragédia ㅡ respondeu com um grunhido. Desatando a falar antes mesmo de qualquer pergunta.
ㅡ Deixei o posto às seis horas como de costume pouco depois que os convidados do evento começaram a chegar, veja bem, essa cabana é apenas um apoio para os funcionários. Serve mais como um arquivo do que realmente um monitoramento, poucas pessoas sabem que ela existe.
ㅡ Ainda assim, suponho que tenha recebido uma lista de convidados não? Caso algum visitante se perdesse.
Sua testa se enrugou com o pensamento ㅡ Sim, um dos meninos a deixou comigo na parte da manhã. Porém, confesso que deve ter se perdido em outros arquivos, muitas encomendas chegaram por essa estrada durante o dia.
Estendi a chave para o policial, em seguida fazendo um pedido. Enquanto esse carregava essa tarefa incumbida, iria me voltar para o cenário principal.
Os corredores imaculados da mansão eram as únicas testemunhas do crime realizado em suas entranhas, se as obras de arte estivessem aptas a falar, eu as ouviria. Assim como o mármore branco do chão que tinha lembranças de todos os passos e o candelabro de brilhantes que observou quieto a todas as pessoas.
Guiado pelo inspetor de carranca, cheguei enfim ao local do crime. Duas faixas amarelas barravam a entrada de qualquer estranho no escritório. Entre batidas de foto e outras análises preliminares da perícia consegui ver o rosto jovem da vítima, uma vez que seu corpo ainda estava ali.
Não precisei entrar para perceber alguns detalhes, como o vaso completamente despedaçado no chão e os cacos que se espalhavam até a porta. Fora ele, não havia qualquer outro sinal de luta dentro do cômodo.
Com os cabelos caídos em suas laterais, a visão das marcas arroxeadas em seu pescoço completavam a pintura macabra. Em seu centro uma figura sombria e triste, como se toda sua felicidade fosse sugada da alma momentos antes de seu fim. Sonhos e uma vida inteira esmagadas pela raiz. Antes uma rosa vigorosa no centro do buquê da sociedade, agora uma flor pálida e despetalada abandonada morta no chão.
ㅡ Foi necessário forçar a entrada? ㅡ questionei em voz alta, me preparando para entrar no local após receber luvas e proteção para as solas dos sapatos. — Quem a descobriu?
ㅡ Aparentemente a porta estava aberta, quem chamou a polícia foi o atual namorado ㅡ disse o inspetor.
Olhei com um pouco mais de cuidado, o vaso não teria como ser um objeto envolvido na luta corporal. Estava caído na mesma direção do corpo e numa distância considerável. Havia alguns documentos cuidadosamente pousados na mesa, porém o restante parecia meticulosamente arrumado.
A maioria dos convidados estava detido num dos salões, com exceção aqueles que já haviam ido embora no momento do crime, havia cerca de umas vinte pessoas separadas como potenciais suspeitos.
Recebi ali mesmo uma lista preliminar para analisar, constavam seus nomes e a relação com a vítima, junto de um breve resumo de suas noites, do momento em que chegaram a mansão até o anúncio do crime.
ㅡ Tem uma caneta? ㅡ pedi para o inspetor que agora se aproximara para observar meus movimentos. Ele puxou uma de dentro do paletó e me entregou, apesar da má vontade.
Nove segundos, foi o suficiente para separar nove pessoas — Segure esses e mande o restante para casa. Precisarei de um lugar para os interrogar.
ㅡ O quê? Está louco? Não podemos apenas liberar os envolvidos ㅡ questionou minhas ações, tomando de maneira rude a caneta de volta.
ㅡ Tenho certeza que o autor desse crime está entre esses indivíduos ㅡ andei em direção à saída do cômodo já tendo todas as respostas possíveis ㅡ, aposto minha reputação nisto.
Uma pequena palavra que imediatamente o fez sair de seu posicionamento omisso e se tornar colaborativo. Não que realmente fosse acontecer, afinal tenho orgulho de minhas credenciais e não as colocaria em risco de maneira tão leviana.
A biblioteca, com seus cheiros familiares de volumes envelhecidos e de conforto emocional, foi o cenário eleito para o interrogatório. Após liberar o grupo de indivíduos cuja inocência já praticamente atestada, eu me acomodei em uma poltrona de couro vermelho, aguardando pacientemente o momento em que o primeiro nome da lista de suspeitos seria chamado para prestar depoimento.
A figura entrou, acompanhada de um policial. Educadamente me cumprimentou e se sentou no lugar indicado.
ㅡ Primeiro, obrigado pela colaboração ㅡ cumprimentei ajeitando o paletó e cruzando as pernas a fim de ter minha total atenção no suspeito ㅡ, devo avisar que o meu papel aqui não é acusar alguém. Ao contrário, consiste em assegurar que os inocentes sejam libertos de quaisquer suspeitas. Dito isto, cavalheiro me diga, ou me convença.
Bem a tempo, a tempestade que estava esperando fez rugir seus trovões iluminando o local rapidamente pela janela.
ㅡ Por que você não é o assassino?
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