03. Cruella

Eu estava sentada no chão frio de uma das cabines do banheiro feminino, encolhida com os joelhos contra o peito. Meu corpo tremia, e eu mal conseguia respirar entre os soluços que escapavam sem controle. Meu cabelo ainda estava molhado, pingando aquela água nojenta no chão ao meu redor. A blusa grudava na minha pele, pesada e desconfortável, me lembrando a cada segundo do que havia acabado de acontecer.

Era humilhante. Absolutamente humilhante. Eu já sabia, desde o momento em que pisei naquela escola, que seria difícil. Não sou ingênua. Sabia que as pessoas iam me olhar, sussurrar, talvez até rir. Mas isso? Isso era muito além do que eu estava preparada para enfrentar.

Do lado de fora da porta, Kenny estava tentando falar comigo. Ele batia levemente na madeira, chamando meu nome com aquela voz preocupada que ele parecia ter naturalmente.

— Khalia, por favor... Fala comigo. Você tá bem? Você quer que eu chame alguém? Qualquer coisa?

Eu não respondi. Não conseguia. Minha garganta parecia apertada, como se todas as palavras estivessem presas ali. Tudo o que consegui fazer foi balançar a cabeça, mesmo sabendo que ele não podia ver.

A palavra "gambá" ecoava na minha mente, repetida várias vezes, como se estivesse gravada em um loop infinito. Eles começaram com isso logo de manhã, sussurrando nos corredores. E, claro, foi por causa da minha mecha de cabelo branca. Claro que foi sobre isso.

Minha vó tinha piebaldismo, uma condição genética rara que causa essas mechas brancas no cabelo. Desde que eu era criança, ela sempre dizia que era nossa marca de família, um símbolo de identidade e força. Eu adorava ouvir isso. Gostava da ideia de ser única. Mas aqui? Essa marca parecia agora mais uma maldição.

Por mais que eu tivesse pensado em pintar o cabelo, sabia que não faria diferença. As mechas sempre voltariam, cada vez que o cabelo crescesse. E, no fundo, eu não queria pintá-las. Eu gostava delas. Elas eram parte de quem eu sou. Mas agora? Agora tudo parecia uma piada cruel.

Eu puxei as mangas da minha blusa molhada, tentando secar as lágrimas do rosto, mas só consegui me sujar mais com aquela água cinza nojenta. A sensação de sujeira estava me consumindo, como se eu nunca fosse me sentir limpa de novo.

— Khalia... — Kenny chamou novamente, mais baixo dessa vez. — Eu sei que você não quer falar agora, mas... Eles são idiotas. Você sabe disso, né? Não é você o problema. Nem eu. São eles.

Eu queria acreditar nele. Queria tanto acreditar que o problema não era eu, que eram eles. Mas naquele momento, toda a minha confiança, toda a força que eu achei que tinha, parecia ter sido levada embora junto com aquela água nojenta.

Eu respirei fundo, tentando acalmar meus soluços. O ar entrava e saía de forma irregular, e meu peito ainda doía, mas aos poucos a vontade de chorar foi diminuindo. Mesmo assim, eu continuei sentada ali, encolhida e sem coragem de sair.

Como o primeiro dia podia ser tão ruim? Eu tinha passado noites inteiras sonhando com essa mudança. Estados Unidos. Um novo começo. Um lugar onde eu poderia ser livre, me destacar, construir meu futuro. E agora? Tudo o que eu queria era desaparecer.

E eu ainda estava ali, sentada, tentando reunir forças para levantar e sair do banheiro quando, de repente, escutei vozes do lado de fora. Kenny estava discutindo com alguém. Ele parecia ser do tipo que raramente levantava a voz, então aquilo chamou minha atenção imediatamente. Franzi o cenho, minha curiosidade e preocupação tomando o lugar da tristeza momentânea.

— Você acha que ela queria aquilo? Que isso foi engraçado? — Eu reconheci a voz de Kenny, carregada de indignação e um toque de frustração.

Outra voz respondeu, meio abafada, mas eu consegui distinguir o tom hesitante. Alguém estava gaguejando, tentando se explicar.

Me levantei, ainda sentindo a blusa encharcada e pesada contra minha pele, mas ignorei. Dei passos decididos até a porta do banheiro, abrindo-a de repente, e dei de cara com um dos garotos que estava rindo na arquibancada antes de tudo acontecer. Ele tinha cabelos enrolados e olhos escuros, com um olhar desconfortável que não combinava com o jeito confiante de antes.

Lembrei do nome dele da chamada mais cedo, Anthony Larusso. Claro, o "príncipe" da loja de carros que Kenny mencionou mais cedo, cheio de privilégios e provavelmente achando que o mundo girava ao redor dele.

— O que mais você quer agora? — Perguntei, minha voz carregada de indignação. — Um retrato meu pra levar de lembrança?

Ele piscou algumas vezes, como se não estivesse esperando que eu fosse tão direta.

— Eu... Eu queria me desculpar. — Ele começou, gaguejando como se as palavras fossem pesadas demais. — Eu não sabia que fariam aquilo. Não era parte do plano.

Eu ri, um som seco e cheio de incredulidade.

— Não sabia? Você estava com eles, rindo como um idiota! Me poupe. — Passei por ele, decidida a não perder mais tempo com alguém que claramente só queria limpar sua própria consciência. — Vamos, Kenny.

Kenny lançou um último olhar irritado para Anthony antes de me seguir, os passos rápidos para me acompanhar enquanto eu caminhava pelo corredor. O ar ainda estava pesado ao meu redor, mas o alívio de sair daquele banheiro era algo que eu precisava.

Enquanto caminhávamos, olhei para Kenny de soslaio. Ele parecia ainda mais tenso que antes, as mãos enfiadas nos bolsos da calça. Apesar de tudo, ele tinha sido a única pessoa naquele lugar que me tratou como alguém normal desde o começo. Talvez fosse porque ele sabia exatamente como era estar do outro lado.

— Obrigada... — Murmurei, minha voz um pouco mais suave.

— Por quê? — Ele me olhou, confuso.

— Por não me deixar sozinha lá. Por se importar.

Ele deu de ombros, mas eu percebi o leve sorriso no canto dos lábios.

— Você faria o mesmo por mim, né?

Eu assenti, porque ele estava certo. Mesmo que eu estivesse apenas começando a conhecê-lo, sabia que Kenny era o tipo de pessoa que valia a pena proteger. Ele ainda tinha essa coisa meio acuada, como se estivesse sempre esperando que alguém viesse atrás dele. Mas ao mesmo tempo, ele era leal, engraçado e... Gentil.

— Você disse que faz karatê, né? — Perguntei, mudando de assunto. Precisava de algo para tirar minha mente da cena anterior.

— Sim. — Ele respondeu, com um pouco mais de entusiasmo. — É um dojô chamado Cobra Kai. Eles são bem intensos, mas estão me ensinando a me defender, sabe? É... Está me dando confiança.

— Cobra Kai... — Repeti, sentindo o nome ressoar na minha mente. Lembrando-me vagamente de ter passado por uma fachada com esse nome no meu primeiro dia em Marietta. — E funciona mesmo? Quero dizer, você sente que está mais forte, mais... Preparado?

Ele assentiu, os olhos brilhando com uma chama que eu não tinha visto antes.

— Sim. É mais do que aprender a lutar. É sobre postura, confiança, mostrar que ninguém pode mexer com você.

Aquelas palavras ficaram guardadas comigo. Talvez, só talvez, eu precisasse disso também.

⋆౨˚ ˖

Algumas horas depois, o dia tinha começado a parecer menos miserável. Kenny insistiu em me levar para uma sorveteria que ele adorava, e, honestamente, foi a melhor decisão que tomamos. Sentados em uma mesa de canto, eu com um copo de sorvete de pistache e ele com um de chocolate triplo, começamos a conversar sobre tudo e qualquer coisa.

Falamos sobre filmes que amávamos, nossas músicas favoritas, e até sobre como ele começou a treinar no Cobra Kai. Por um momento, esqueci completamente o desastre que tinha sido meu primeiro dia de aula. Kenny era engraçado de um jeito meio desajeitado, e era fácil rir com ele, mesmo que ainda houvesse um peso no meu peito.

Quando voltei para casa, já estava escuro, e as luzes da sala estavam acesas. Assim que entrei, minha mãe e meu pai estavam no sofá, conversando em voz baixa, mas pararam ao me ver. Ravi, que estudava em uma escola diferente, estava no chão da sala, espalhando cadernos e lápis de cor em um caos controlado.

— Como foi o primeiro dia, beti? — Perguntou minha mãe, inclinando a cabeça com um sorriso curioso.

Eu hesitei por um momento, tentando decidir o quanto deveria contar. Minhas roupas não estavam mais molhadas, mas o cheiro... Ah, o cheiro. Mesmo depois de Kenny ter me emprestado um casaco para cobrir a blusa encharcada, ainda parecia que aquele odor estava impregnado em mim.

— Foi bom. — Respondi, me mantendo a uma distância segura. — Um pouco cansativo, sabe? Dia de adaptação.

— Você está bem? — Perguntou meu pai, franzindo o cenho.

— Sim, só... Preciso de um banho. — Murmurei, subindo rapidamente as escadas antes que eles pudessem fazer mais perguntas. A última coisa que queria era preocupá-los com o desastre do dia. Eles já tinham tanto com o que se preocupar, a mudança, o trabalho, Ravi em uma escola nova.

Assim que entrei no quarto, soltei um longo suspiro, trancando a porta atrás de mim. A mochila caiu de um jeito desajeitado no chão, e me arrastei até o banheiro. O cheiro parecia mais forte agora, como se aquele balde de água suja estivesse na minha cabeça outra vez.

Liguei o chuveiro no quente, o vapor começando a preencher o banheiro enquanto tirava as roupas que me lembravam de tudo que aconteceu. A água escorreu pela minha pele, e eu fiquei ali por mais tempo do que precisava, tentando lavar não só o cheiro, mas também a sensação de humilhação.

Enquanto a água caía sobre mim, lembrei do olhar de Kenny na sorveteria, rindo comigo, me contando sobre como ele costumava ser ainda mais tímido antes do Cobra Kai. Ele tinha encontrado um jeito de lidar com as coisas, de se sentir mais forte. Talvez eu pudesse fazer o mesmo.

Quando finalmente saí do banho, vesti meu pijama mais confortável — em particular, meu favorito, da Hello Kitty — e me joguei na cama. Meu cabelo ainda estava úmido, mas pelo menos eu me sentia limpa de novo. Peguei meu celular e comecei a procurar sobre o tal Cobra Kai. Talvez fosse hora de fazer algo por mim mesma.

Deitada na cama, com o celular apoiado nas mãos, comecei a vasculhar as redes sociais do Cobra Kai. Era curioso como o feed deles era tão bem organizado, quase como se fosse de uma marca famosa. Havia vídeos curtos e empolgantes, alunos quebrando tábuas, dando chutes giratórios que pareciam impossíveis e gritando com uma intensidade que fazia o coração acelerar só de assistir.

Os stories mostravam pessoas treinando em sincronia, o som dos kiais ecoando. Era difícil não se sentir contagiada. Era como assistir a uma série de ação da vida real, só que os protagonistas não eram atores; eram adolescentes normais como eu. Bem, talvez não tão normais. Eles pareciam incríveis, fortes, confiantes.

Meu dedo deslizou pelo feed, e me peguei sorrindo ao ver Kenny em um dos posts. Ele estava no canto de uma foto de grupo, com um olhar determinado, diferente do garoto que conheci na escola e que parecia carregar o peso do mundo nos ombros. Ele realmente parecia mais confiante.

"O Cobra Kai te torna mais forte e mais popular," ele tinha dito na sorveteria, como se fosse um fato. Popularidade não era exatamente o que eu estava buscando, eu não precisava de um séquito de admiradores ou algo do tipo. Mas a ideia de ser forte, de me sentir segura, isso sim parecia tentador.

Porque, sejamos sinceros, ninguém quer ser a garota do "cabelo de gambá" pelo resto do ano. Eu sobrevivi ao primeiro dia, mas o pensamento de que isso poderia continuar, de que as risadas e os olhares de julgamento poderiam me seguir como uma sombra... Isso me assombrava.

Voltei para os vídeos e me peguei imaginando como seria estar ali. Vestir aquele kimono preto com o logo da cobra bordado, dar um chute poderoso e ouvir as pessoas aplaudindo. Não era só sobre o que eles estavam fazendo, era sobre como eles pareciam se sentir enquanto faziam. Fortes. Invencíveis. Como se nada nem ninguém pudesse derrubá-los.

Mas havia um problema. Minha mãe nunca foi fã de violência. Nem meu pai, para falar a verdade. Eu podia até ouvir a voz dela dizendo, "Por que você quer aprender a brigar? Brigar não resolve nada."

Só que, do meu ponto de vista, talvez resolvesse. Talvez aprender a me defender fosse exatamente o que eu precisava para lidar com idiotas como os que me encharcaram com água suja hoje. Não era sobre começar brigas, era sobre ter a certeza de que, se elas viessem até mim, eu estaria pronta.

Suspirei, bloqueando o celular e apoiando-o no peito. A ideia de pedir para entrar no Cobra Kai parecia improvável, mas talvez, só talvez, se eu pedisse com jeito... Minha mãe sempre amolecia quando eu usava o tom certo, aquele meio doce, meio convincente.

Se ela dissesse não, bom, eu ainda tinha o meu pai. Ele tinha uma fraqueza quando eu olhava para ele com os olhos bem abertos e dizia algo como, "É sobre mais do que só brigar. É sobre disciplina, confiança... E você sempre disse que quer que eu seja mais confiante, não é?"

Era um plano. Nada concreto ainda, mas um plano. Eu precisaria de um pouco de coragem para colocá-lo em prática, mas coragem era algo que eu estava começando a buscar. Fechei os olhos e me imaginei lá, no tatame, cercada por alunos tão determinados quanto eu, ouvindo alguém gritar ordens e me sentindo finalmente... No controle.

Deitada na cama, com o celular novamente entre as mãos, voltei a rolar o feed do Cobra Kai, mas de repente, algo chamou minha atenção, um pedido de amizade. Franzi o cenho, curiosa. Abri a notificação e lá estava o nome, Anthony Larusso.

Minha primeira reação foi revirar os olhos. Sério? O garoto que praticamente participou de cada segundo do desastre do meu dia tinha a audácia de me adicionar no Instagram? Ele já tinha deixado claro, desde o momento em que entrei na sala de aula, que eu não era exatamente uma visão bem-vinda.

Lembrei da forma como ele me olhou, meio curioso, meio debochado, e de como ele riu junto com os amigos no refeitório. Lembrei da mentirinha ridícula sobre o vestiário e, claro, da cena humilhante que se seguiu, quando fiquei encharcada com água suja enquanto ele observava lá de cima, sem mover um dedo.

Mas o que me irritava mais era que, depois de tudo isso, ele ainda achava que podia consertar as coisas com um pedido de desculpas? Era isso que ele queria? Apagar a culpa com algumas palavras bonitinhas, fingir que nada aconteceu e seguir como o "garoto perfeito" que todo mundo parece achar que ele é?

Suspirei, pensando por um momento em recusar o pedido. Mas então uma ideia cruzou minha mente. Talvez eu pudesse ver até onde ele iria com isso. Eu sabia o tipo, meninos como ele adoram manter as aparências, especialmente para os professores ou, quem sabe, até para os próprios pais. Aceitei o pedido, mas não segui de volta. Não porque queria ser amiga dele, mas porque queria ver até onde ele estava disposto a se humilhar.

Poucos segundos depois, o celular vibrou com uma mensagem. Claro, ele não perdeu tempo. Cliquei na notificação e li.

"Ei, Khalia. Olha, eu queria me desculpar de novo por hoje. Eu realmente sinto muito. Não vou mentir, eu estava sim planejando zoar você e o Kenny de alguma forma, mas eu juro que nunca foi para chegar nesse nível. Aquilo foi demais, até pra mim. Eu me sinto péssimo."

Parei por um segundo, observando as palavras. Ele admitiu que estava rindo às minhas custas, o que não foi exatamente uma surpresa, mas pelo menos foi honesto.

Continuei lendo.

"Enfim, não sei se isso ajuda, mas eu realmente acho seu cabelo maneiro. Sabe, minha vilã favorita é a Cruella, e você me lembrou dela hoje. Não de um jeito ruim. Na verdade, de um jeito bem autêntico. Achei legal."

Ao terminar de ler, eu desliguei a tela e joguei o celular no canto da cama, irritada. Mas era uma irritação estranha, confusa, como se algo em mim estivesse discordando dessa raiva.

Cruella? Sério?

Eu deveria ter ficado ainda mais indignada com isso, mas a verdade era que... Não soava tão ruim. Era diferente, até meio estiloso. Muito melhor do que "gambá", com certeza. Por mais que eu odiasse admitir, um sorrisinho escapou de mim antes que eu percebesse.

Isso só me deixou mais brava. O que ele estava tentando fazer? Ganhar minha simpatia com um elogio? Não funcionaria. Eu sabia que, no fundo, ele não sentia remorso de verdade. Provavelmente era só culpa passageira ou o medo de ser exposto.

Me levantei da cama, irritada demais para ficar parada. Cruzei os braços, olhando para o celular, como se ele fosse culpado. Não ia ceder. Eu não era tão ingênua assim. O "Larussozinho" podia tentar me bajular o quanto quisesse, mas não ia me dobrar.

Obra autoral ©

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