11. O Tratado de Sokovia.
— Você deve estar brincando, Charles. — Kitty resmunga, uma expressão aborrecida enquanto descansa as bochechas nas palmas das mãos.
Jules se viu obrigada a concordar, embora absolutamente nada na expressão de seu ex-professor indicasse qualquer resquício de piada.
Charles estava perpetuamente sério.
E é claro que isso deu a ela a percepção assustadora de que aquilo, as 389 páginas encadernadas que ela foleava, era bastante sério. O título 'Tratado de Sokovia' praticamente reluzia na capa, zombando silenciosamente dos presentes no cômodo.
Jules olhou atentamente ao redor, pra cada um de seus amigos mais antigos, ex-professores, colegas de equipe e mentores. Cada um deles parecia decidido a ignorar suas próprias cópias do Tratado, como se os papéis fossem algum tipo de objeto radioativo, ou algo pior.
Bem, ela sabia que era pior.
Um mês atrás, um ataque terrorista devastador em Lagos resultou na morte de vinte e seis pessoas, onze das vítimas sendo trabalhadores humanitários de Wakanda. Em resposta a isso, as Nações Unidas elaboraram o Tratado de Sokovia, uma resposta legal às preocupações internacionais sobre ações e consequências de indivíduos e membros aprimorados no geral.
O acordo nada mais era do que um conjunto de documentos legais projetados para controlar e regular as atividades de indivíduos aprimorados, incluindo membros de agências governamentais como a Shield, ou organizações privadas como os Vingadores e os X-Men. Estabelecido pelas Nações Unidas o acordo seria ratificado por 117 países dentro de uma semana, em Viena.
O Tratado dava autoridade ampla e abrangente aos governos de cada um dos 117 países para registrar indivíduos aprimorados e "acompanhar" suas atividades.
E pro inferno com os direitos humanos básicos.
Então, sim, ela concordava com Kitty. Aquilo tinha que ser uma brincadeira, e de muito mau gosto.
— Eu não sei se gosto disso, Charles. — Ororo comenta, o rosto escuro franzido lhe fazendo parecer mais cansada do que nunca.
— Eu menos ainda. — Afirma Jules, ignorando o rosto completamente frustrado de Xavier. — Temos boas razões pra viver por aí em completo sigilo, e você sabe disso melhor que ninguém. — Ela argumenta. — E não me olhe como um cachorrinho chutado, isso não funciona comigo.
Scott engasgou em uma risada, cobrindo a boca com a mão, já Kitty não fez a menor questão de esconder o sorriso. Jules não prestou atenção nas demais reações, mas sabia que ao menos metade deles estava do seu lado nessa. Todos eles entendiam bem o que ela estava dizendo.
Ao longo da história do mundo, na maioria das vezes que um indivíduo expôs sua mutação, mesmo que por uma boa causa, isso não acabou bem para os mutantes, ou mesmo para o restante da população. Apesar de existirem exceções, essas foram raríssimas.
— Por mais certa que você esteja, Jules, eu não acho que viver nas sombras para sempre é a melhor resposta. — Charles argumenta, e Jules precisa conter o ligeiro ímpeto de gemer e afundar contra o sofá. É óbvio para todos eles que o leitor de mentes já se decidiu, e nada o faria voltar atrás agora. — Eu sei que não parece grande coisa, mas Hank prometeu que a ONU está disposta a fazer com que os acordos sejam flexíveis quando necessário.
Hank inclina a cabeça em uma sutil confirmação, seu rosto azul e normalmente bastante expressivo parecendo estranhamente neutro. Ela sabe o porquê.
Mutantes nunca foram a prioridade quando se tratava de direitos iguais ou justiça, e qualquer acordo onde Vingadores e X-Men's, estejam envolvidos, por mais que as autoridades responsáveis insistam em "igualá-los" em teoria, na prática as coisas não funcionam dessa forma.
É muito mais fácil para o Homem de Ferro, ou o Capitão América, baterem o pé e exigirem mudança, e de fato conseguirem isso, do que uma multidão inteira de mutantes fazer barulho o suficiente pra sequer ser ouvida.
Ah, como é amargo o sabor da desigualdade.
— E como a ONU vai decidir quando é necessário? — Ororo pergunta, sua voz exasperada arrancando Jules de seus devaneios. — Um bando de homens brancos engravatados e ambiciosos agora decidem quando e onde nós devemos atuar?
— Não se esqueça do 'se'. — Kitty acrescenta com um sorrisinho debochado. — Eles também dizem se nós devemos.
— Tudo bem, Kitty, pega leve. — Scott bufa.
— Ela não disse nada demais. — Jules argumenta de maneira apaziguadora. — Pelo menos nada que fosse mentira.
Kitty sorri em sinal de agradecimento para Julieta, que pisca de volta com cumplicidade.
— Acho que estão se esquecendo de um detalhe importante. — Hank comenta, silenciando a troca infantil. — O acordo já foi aprovado e será ratificado, gostemos dele ou não. — Jules suspira, massageando a ponte do nariz com as pontas dos dedos. — O que está em discussão é se os X-Men serão aliados do Tratado, ou não?
— E temos opção? — Kitty geme, afundando no sofá. — Se não assinarmos, não temos permissão pra atuar em nenhum país que tenha ratificado o Tratado.
— Mas se assinarmos... — Jules rebate, a voz dura e sem resquícios de sutileza. — nos tornamos reféns das normas e decisões de algum painel das Nações Unidas. — Há uma troca intensa de olhares pelo cômodo, que recai em um silêncio ruidoso quando todos parecem absorver aquele ponto de vista.
Haviam duas opções, de fato, e ambas lhes soavam bem pouco tentadoras.
— E então... — Scott os encara em dúvida. — o que faremos?
✦ . ・゚ .
Os sapatos de salto machucam seu calcanhar enquanto Jules caminha, e se não fosse seu perfeito controle da gravidade ela acha que já teria tropeçado algumas vezes no piso liso e brilhante da sala de conferências. Peçam-na para absorver uma explosão solar, mas não exijam que ela suba em doze centímetros de um scarpin que só pode ter sido desenhado por um sádico.
O incômodo que seus saltos causam apenas fazem agravar sua frustração e desconforto com toda a situação no geral. A camisa social parece quente e sufocante, o penteado do cabelo, um preso comportado e sem graça, aperta seu coro cabeludo, a calça de alfaiataria não tem bolsos, o que já é irritante por si só, e ela teve que deixar seu celular para trás no jato.
O que significa que, há quase meia hora, ela se vê sentada tediosamente na sala de conferências, cercada por todas essas pessoas que, de certa forma, estão prestes a ter controle sobre parte de sua vida, e incapaz até mesmo de jogar palavras-cruzadas pra se distrair.
Jules passa todo o tempo, ao menos aquele onde Charles não a está puxando para uma ou outra apresentação cordial, girando os anéis em seus dedos e fitando o relógio na parede.
É assim que ela sabe que são exatamente 14:43 quando o Rei de Wakanda, T'Chaka, com quem ela trocou poucas palavras mais cedo, se dirige ao palanque onde fará o discurso de abertura da conferência. E, seis minutos depois, com todos tendo achado seus devidos lugares, a sala está quase completamente em silêncio.
— Quando o vibranium roubado de Wakanda foi usado para fazer uma arma tão terrível, nós em Wakanda, nos obrigamos a questionar nosso legado. — Jules ainda está tentando decidir se essa foi a pior ideia que Charles já teve, quando as palavras do Rei ressoam pelo cômodo extenso. — Os homens e mulheres mortos na Nigéria faziam parte de uma missão cooperativa de um país há muito nas sombras. Entretanto, nós não deixaremos que infortúnios nos detenham. Vamos lutar para melhorar o mundo ao qual queremos nos unir. — Ela só consegue pensar em que decisão terrível era essa que o Rei havia tomado, intencionalmente querendo ser parte dessa sociedade. — Agradeço aos Vingadores e ao Instituto Charles Xavier pelo apoio a esta iniciativa. — Charles acena discretamente com a cabeça, a imagem da tranquilidade que Julieta não faz ideia de como transparecer. Ela mesma apenas sorri tensamente, voltando seu olhar para as vidraças atrás do Rei. — Wakanda tem orgulho de estender sua mão à paz.
Leva um segundo, a frase de T'Chaka mal chegou ao fim, e seu filho, T'Challa, grita com força:
— Abaixem-se todos!
Em um instante, Julieta estava ali, apenas sentada na primeira fila com alguns de seus colegas. Em outro, ela se lançou para o lado, na intenção de alcançar Charles e empurrá-lo para o chão, se colocar na frente dele, qualquer coisa.
Ela tem certeza que ouviu alguém gritar seu nome, talvez Scott ou Hank. Mas tudo leva apenas um segundo.
Há um estrondo e uma pressão repentina em seu corpo que a lança com toda a força para trás, as chamas dançam em sua pele, sem prejudicar, mas formigando por todo o caminho, o impacto de costas arranca o ar de seus pulmões e Jules tanta proteger o rosto com os braços enquanto rola sobre, talvez, estilhaços de vidro.
Tudo aconteceu em menos que alguns segundo, e então lá estava ela, deitada juntos aos destroços da explosão, sua visão borrada e turva e o familiar gosto de sangue na boca. Enquanto o caos se instaura ao seu redor muito mais rápido do que se cérebro consegue processar, ela gira e tenta ficar de pé, raspando as palmas das mãos no vidro quebrado, e com certeza se ferindo, mas desabando novamente quando seus joelhos falham.
A sala parece girar desagradavelmente, e a dor se espalha por todo seu corpo em um choque agudo, fazendo-a perder o resto de suas forças bem rápido. E, enquanto seu mundo escurece, Jules se agarra a um último resquício de consciência, inutilmente tentando não desmaiar.
Ainda assim, ela apaga, com um último sussurro abafado pelo caos:
— James...
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