09. Andante, andante.
Era fato para todos que a conhecessem por mais de cinco minutos, Jules Fawley era um poço de otimismo e entusiasmo. Com sua personalidade espirituosa e desembaraçada, ela facilmente saia das mais complexas e inesperadas situações, por mais tensas que algumas fossem. Como ela insistia em lembrar, esse era apenas seu charme.
Tempo ruim não era exatamente algo com o qual ela estivesse habituada. Por isso, quando semanas se passaram, e sua vida voltara a entrar nos trilhos após o contratempo auto-nomeado como 'alma-gêmea', Jules realmente sentiu que podia respirar de novo, e voltar a levar sua vida da maneira leve e calorosa de sempre.
Já faziam 14 semanas desde as primeiras flores que chegaram em sua casa. Desde então, sempre havia um buquê novo a cada vinte e quatro dias, um diferente arranjo, e um cartão com o significado das novas flores.
Até agora, totalizando em quatro cartões bonitos e manuscritos, que Jules empilhou e guardou em uma antiga caixa de jóias que havia comprado anos antes em um bazaar. As flores, infelizmente não duravam tanto, mas isso não impedia que Jules cuidasse delas até que secassem totalmente, e depois disso sempre havia uma flor de cada tipo que era colocada dentro de um livro, transformada em um marcador de páginas.
Jules queria guardar cada pedaço da dedicação que Bucky colocava naquele gesto. Porque, pra ela, significava tudo.
De alguma forma, no meio de tantas flores, ele nunca lhe mandou margaridas. A única flor cujo ela era alérgica, e alguma coisa lhe dizia que Bucky estava plenamente consciente disso. Ele sabia muito mais do que ela, e isso era fato.
Mesmo com todas as informações vazadas pela Viúva Negra meses atrás, não parecia haver o suficiente sobre James Barnes. Muito sobre o Soldado Invernal, realmente, um horror seguido do outro, uma história de décadas de tortura, violência e assassinatos que fizeram Julieta chorar compulsivamente enquanto lia um arquivo atrás do outro.
Não foi difícil decodificar a criptografia, não tanto quanto foi difícil realmente ler tudo aquilo.
Era tudo tão pior do que ela havia imaginado quando passou vinte e quatro horas no corpo dele. Bucky tinha razões o suficiente para não querer passar nem um único minuto na própria pele, e ainda assim ali estava ele, em algum lugar, consciente o bastante para mandar flores para uma mulher que nem mesmo conhecia de verdade.
Agora, no entanto, ela sente que sabe bem mais que a maioria das pessoas. Qualquer um que pudesse descriptografar os arquivos teria aquelas informações. Mas Jules viveu um dia inteiro no lugar de James, sentiu na pele dele as dores físicas e mentais que a Hydra lhe causou, lutou para sobreviver no lugar dele. Jules sabe que ele não teve culpa, que cada horror descrito ali não podia ser colocado em seus ombros.
Não era justo.
No entanto, parece haver muito mais por trás disso, Julieta pode sentir em seus ossos que as informações vazadas foram apenas a ponta do iceberg.
E enquanto seria muito fácil perguntar direto para a fonte, ela tem plena certeza de que essa seria a última coisa que diria quando, se, o encontrasse.
Jules acha que nem mesmo se lembraria como respirar caso esse dia chegasse. Talvez ela devesse pedir pra ele beliscar seu braço, apenas para conferir se está acordada.
— Jules! — Chloe praticamente gritou em seu ouvido, sacudindo seu antebraço com tanta violência que o drinque de Julieta quase foi ao chão.
— Droga, Chloe! — Jules exclamou, ajeitando o corpo e apertando a mão para que o copo permanecesse firme. Alarmada, ela olhou para o quê quer que sua amiga estivesse tão desesperada em lhe chamar a atenção.
— Eles estão cantando Katy Perry. — Chloe apontou, praticamente saltando na própria cadeira com pulinhos animados. Jules respirou, meio indignada que quase tenha tido um infarto por algo tão bobo.
— Juro, você vai me matar a qualquer hora. — Ela sopra, levando o canudo até a boca e mordendo um pouco nervosamente antes de puxar o líquido adocicado de amoras, rum e soda.
— Não é minha culpa se sua cabeça estava nas nuvens. — Chloe resmunga, rolando os olhos bruscamente antes de acenar com sua garrafa de cerveja vazia para um garçom. — Ultimamente você tem estado tão aérea. Me pergunto onde vai quando não está nos ouvindo...
— Você sabe exatamente onde. — Jules revira os olhos agora, sorrindo sarcasticamente diante do olhar mais apertado de Chloe.
— Ah, sim. — Diz a garota de cabelos curtos, abrindo um sorriso felino com seus lábios pintados de roxo escuro. — Sua alma gêmea misteriosa que você se recusa a falar sobre. — Jules apenas a observou com falso desdém, e Chloe bufou, juntando as mãos em forma de súplica. — Por favor, me diz qualquer coisa. — Ela implora, piscando infantilmente os olhos verdes. — Não tenho nenhum amigo que tenha uma alma gêmea, e eu mesma não faço ideia de como isso funciona na prática. Satisfaça minha curiosidade de adulta solteira apaixonada por clichês.
Jules riu com vontade, jogando a cabeça para trás, ignorando o olhar pidão da mulher ao seu lado. Por mais pura e genuína que fosse a curiosidade de Chloe, não havia a menor chance de compartilhar qualquer coisa sobre sua ligação com Bucky, porque isso implicava em explicar quem era Bucky. E isso estava fora de cogitação.
— Você precisa é parar de ler fanfics. — Jules provocou com um sorriso afiado, e Chloe bufou.
— Eu não... — Qualquer desculpa esfarrapada que ela estivesse prestes a dar foi silenciada pela chegada de Tessa, Will, Logan e Robin, que caminhavam na direção da mesa com sorrisos largos e uma falação desenfreada.
— Olha elas aí.
— Eu disse que estariam se embebedando.
— E falando mal de alguém.
— Só se for de você, Robin. — Chloe zombou, esticando sua garrafa para brindar com o copo de Jules, que riu quando o vidro tilintou.
— Você podia ter ficado sem essa. — Logan cutucou um pouco mais, recebendo de Robin apenas um sorriso seco e um dedo do meio.
— Crianças, por favor, resolvam qualquer rivalidade no palco. — Tessa disse, falsamente polida, antes de sorrir abertamente e jogar os braços ao redor de Jules e Chloe. — Ah, que saudade de vocês.
Retribuindo o abraço, Jules riu um pouco, percebendo que Tessa já estava meio bêbada, provavelmente vindo de um happy hour depois de outro plantão.
— Sua saudade vai passar assim que Jules cantar outra antiguidade. — Provocou Chloe, e Jules a olhou com ofensa exagerada e simulada.
— Que calúnia. — Ela exalou, batendo as palmas na superfície da mesa. — Só por isso eu vou ser a primeira. — E se levantou, jogando o cabelo sobre o ombro e caminhando até o pequeno palanque onde ficava o Dj. Ela sussurrou seu pedido de música e ele lhe entregou o microfone com um sorriso conhecedor e um balançar de cabeça.
Jules sequer se deu ao trabalho de ir até o palco, apenas se virando dramaticamente para a multidão quando os primeiros acordes começaram. Houve um burburinho geral quando todos reconheceram a música, e ela riu da reação entusiasmada e descrente.
— Take it easy with me, please. — Jules canta, melódica e afinada, um meio sorriso tomando conta de seu rosto enquanto ela mexe o quadril suavemente de um lado para o outro. — Touch me gently like a summer evening breeze. Take your time, make it slow. Andante, Andante. Just let the feeling grow. — Havia uma risada em suas últimas palavras quando o bar todo ovacionou com excitação.
— Quebra tudo, Jules! — Chloe gritou, jogando os braços para cima, e Will assobiou com os dedos na boca.
— Make your fingers soft and light. Let your body be the velvet of the night. — Jules dança no ritmo da música, é gracioso e suave, tão sutil que, para ela, é como respirar. — Touch my soul, you know how. Andante, Andante. Go slowly with me now. I'm your music. — Há uma voz gravada cantando o refrão junto a Jules agora, mas algumas pessoas no bar também o fizeram. — I'm your song. Play me time and time again and make me strong. Make me sing, make me sound. Andante, Andante. Tread lightly on my ground. — Jules apenas não sabe, quando inclina o corpo para se sentar na ponta da mesa de seus amigos, que no fundo do bar há uma presença nas sombras, lhe assistindo. — Andante, Andante. Oh please don't let me down.
Por outro lado, Bucky - como o homem na ponte lhe chamou, e como estava escrito naquele memorial no Museu - está perfeitamente consciente de cada centímetro ao seu redor. Ele mantém a mão de metal no bolso do casaco - o mesmo que ele acordou usando naquele hotel em Montana - enquanto com a outra segura uma garrafa de cerveja pela metade, comprada unicamente pra sustentar um disfarce.
Ele deixou o capuz abaixado, mas apenas porque usava um boné azul escuro, cujo a aba estava levemente inclinada para cobrir parte de seus olhos. Era difícil ver seu rosto, embora ele pudesse enxergar tudo e todos com clareza.
Exatamente como agora, quando ele se inclina brevemente para a mesa, assistindo sua alma gêmea cantar e dançar entre as mesas do bar, sua mera presença sendo o suficiente para iluminar o cômodo com entusiasmo genuíno. Bucky tem certeza de que Karaokê foi o tipo de atividade inventada para ser propositalmente constrangedora, e para a maior parte das pessoas realmente era.
Mas quando Julieta faz, quando ela canta músicas velhas e abraça a própria vergonha daquela forma, é hipnotizante, encantador. Ele não consegue tirar seus olhos dela, de como ela sorri enquanto canta, e é absolutamente a coisa mais bonita que ele já viu; de seus quadris balançando no ritmo lento do refrão; seu cabelo, tantos tons de dourado, caindo em ondas selvagens sobre os ombros.
Ele sabe que não há nenhuma forma de Julieta não ser o próprio Sol em sua forma mais pura. E isso é o que faz Bucky questionar em cada minuto de seu dia: por que o universo pensou que ele a merecia?
Há várias semanas, enquanto corria na direção oposta, chegando cada vez mais longe, ele chegou à conclusão de que não a merecia. Porque não era justo arrastar Julieta para o seu caos. Tudo o que Bucky sabe sobre si mesmo foi lido em um Museu, ou nas páginas de alguns livros de história, até mesmo na internet.
Suas memórias voltam gradativamente, de repente, e de forma totalmente desordenada. Não há um padrão, não há ninguém para lhe dizer o que é real e o que não é, ou para lhe contar os detalhes que ele continua perdendo. Ele sabe tão pouco sobre si mesmo, quase nada, e não sabe se algum dia isso vai ser diferente.
No entanto, Bucky ainda se vê voltando, mesmo que demore um pouco mais a cada vez, buscando apenas por um único minuto para poder olhar pra ela, sempre com a mesma desculpa. É a última vez.
Ele sempre volta atrás. Porque Julieta ainda é a melhor coisa que já lhe aconteceu, e se a única coisa boa que Bucky pode fazer é ficar longe dela, ao menos ele poderia vê-la de longe.
Uma última vez.
— Andante, Andante. Oh please don't let me down. — Ela termina, e o bar explode em palmas e gritos, fazendo-a rir e se curvar em uma reverência teatral.
— Vai lá, garota! — Tessa grita, com as mãos em concha ao redor da boca, para amplificar a própria voz.
Logan sacode a cabeça, rindo e aplaudindo ruidosamente, enquanto Jules devolve o microfone e agradece ao Dj. A multidão se desfaz para deixá-la passar quando ela caminha de volta para os amigos, ainda ouvindo a balbúrdia animada de todos os desconhecidos, e desliza para seu lugar no canto esquerdo mais perto do palco.
— Jules, confessa, você não conhece nenhuma música lançada depois de 1990. — Chloe provoca, brincando com a tampa metálica de sua garrafa.
— Mais respeito com minha alma velha. — Jules brinca, rindo consigo mesma de seu trocadilho bobo. Se eles ao menos soubessem o quanto disso era verdade... — Eu só sou... — Ela procura as melhores palavras, agarrando seu próprio copo sobre a mesa. — uma apreciadora de antiguidades. — E sorri vitoriosamente, crente de que esse era o melhor argumento do mundo.
— Isso explica tanto. — Will zomba de seu lugar, fazendo a própria Jules rir um pouco.
— Certo, mas nós adoramos as coisas atuais. — Tessa diz, gesticulando entre si mesma e Robin, que sorri com cumplicidade. — E constrangimento público, gostamos disso também.
— Oh, céus. — Will resmunga, lançando olhos suplicantes para sua esposa. — Tess...
— Silêncio e assista, amor. — Ela diz, dando dois tapinhas suaves na bochecha dele, antes de levantar e puxar Robin em direção ao palco.
— Ela me obrigou. — Robin grita sobre o ombro, deixando o resto da mesa rindo atrás deles, e Will derretendo em uma poça de vergonha.
— Relaxa, nada pode ser mais escandaloso do que ele já fez antes. — Chloe tranquiliza com um sorriso debochado.
Jules puxa o última gole de seu drinque, ao mesmo tempo que Tessa e Robin pegam os microfones, e as luzes acima deles se ajustam automaticamente quando a música começa. On The Floor, de Jennifer Lopez e Pitbull, a mutante reconhece com facilidade, quase cuspindo sua bebida na mesa. Chloe grita, chocada e eufórica, e Will geme dolorosamente enquanto acena para o garçom lhe trazer outra cerveja.
— Retiro o que eu disse. — Chloe diz rapidamente. — Isso vai ser muito melhor.
Will se encolhe quando sua esposa e seu amigo começam a dançar e cantar em cima do palco, olhando ao redor como se tentasse achar a saída de emergência mais próxima. Sua reação é o que faz Jules gargalhar, jogando a cabeça para trás, seus olhos lacrimejando um pouco.
Minutos depois, quando Jules tem a sensação de ainda estar sendo observada mesmo depois que sua pequena performance chegou ao fim, ela olha sobre o ombro direito, mirando a mesa vazia ao lado da porta. Não há ninguém lá. Estranho, ela poderia jurar que...
Não importa, Jules afasta o pensamento, sorrindo suavemente enquanto se volta para sua conversa com Logan.
Bucky saiu apenas instantes antes que ela o percebesse ali, quando decidiu que já havia se torturado o suficiente. Suas almas nunca estiveram tão perto quanto agora, e mesmo assim mais longe que nunca.
✦ . ・゚ .
8 MESES DEPOIS.
Jules inspira profundamente, com o buquê perto de seu rosto, e o nariz roçando nas pétalas amarelas de um girassol. Apenas girassóis desta vez. Ela sorri carinhosamente enquanto lê o cartão.
Penso em você quando os vejo, e nas tardes quentes e manhãs ensolaradas.
Não é tão frio quando penso sobre você.
E isso, o conhecimento de que James pensou nela, não, que ele pensa com alguma frequência, aqueceu ao redor do peito de Jules como o calor do próprio sol. Seus dedos pastaram suavemente sobre as pétalas enquanto ela levou o cartão ao peito e o apertou delicadamente contra o coração agitado.
Dez meses, era o tempo que fazia desde que Jules viu o rosto de Bucky pela primeira e última vez, no reflexo de um espelho. 312 dias que as flores chegavam em sua casa, periodicamente, sem atrasos, sem pausas. 13 cartões amarrados a 13 buquês bonitos e delicados.
Esse homem... Jules mal tinha palavras para descrevê-lo.
Ela espera ter um dia.
— Jules, desça aqui, agora! — Agnes grita em plenos pulmões. — Seu amigo estranho surgiu no meio da minha cozinha e meu coração está velho demais pra isso!
Jules apertou os olhos para as palavras de sua mãe, cuidadosamente depositando o buquê sobre a escrivaninha, e o cartão na pequena pilha dentro da caixa de jóias.
— Amigo estranho? — Ela murmurou para si mesma, marchando para fora do quarto e praticamente correndo escada abaixo. O único que ela conhecia capaz de simplesmente surgir nos lugares era... — Kurt!
A pele azul de Kurt repuxou nos cantos dos lábios quando ele abriu para Jules um largo sorriso de presas afiadas. Ele ergueu uma de suas mãos de três dedos e acenou infantilmente enquanto sua calda sacudiu atrás do corpo. Em sua outra mão, um biscoito que ele claramente pegou do pote sobre o balcão.
— Olá, Juliete.— Seu sotaque se arrastou pesadamente na tentativa de pronúncia do nome de Jules, e ela sorriu para ele, saltitando no espaço entre seus corpos antes que pudesse puxá-lo em um abraço caloroso.
— Senti sua falta. — Kurt riu quando a abraçou de volta, deixando que o ferrão afiado de sua cauda afagasse brevemente o cabelo de sua amiga.
Quando chegou ao instituto aos treze anos, Jules era apenas uma garotinha assustada, dotada de mais poder que a maioria e, ainda assim, extremamente aterrorizada e insegura de si mesma. Nada disso impediu que ela fosse o ser mais doce, enérgico e dedicado que ele já viu antes. E quando ficou óbvio que ela não era nada boba ou ingênua, foi mais impossível não se encantar completamente com sua existência.
Porque além de seu extraordinário poder de criar e manipular a energia solar, as maiores qualidades de Jules eram a sua astúcia, a coragem e a gentileza avassaladora que ela exercia sem nenhum esforço. Exatamente como o Sol, Julieta era calorosa, brilhante, magnética, e ainda mais letal que o próprio.
Oprimir suas maiores qualidades não teria sido justo, então seus professores se viram incentivando-a além dos limites. Kurt era um deles, e eventualmente se tornou um bom amigo.
— Como tem passado, Juliete? — Ele pergunta quando finalmente se afastam do abraço.
— Eu estou ótima. — Seu sorriso é aquecido, e ela dá um tapa suave no ombro de Kurt. — Mas foi você quem sumiu sem dar notícias. Muito ocupado pra velhos alunos? — Ela provoca, e Kurt ri.
— Muitas missões. — Ele responde. — Mas você sabe como funciona. Se não me engano, foi por isso que escolheu uma vida mais tranquila.
Jules dá de ombros.
— Ainda sabem onde me procurar caso precisem de um reforço. — Ela brinca, sorrindo docemente.
— Na verdade, foi por isso que vim.
Jules franziu as sobrancelhas, sua expressão caindo em pura e genuína preocupação agora.
— Não me diga que o mundo está acabando. — Ela suplica. — Eu acabei de comprar uma saga nova de livros pela internet.
Kurt sacode a cabeça, um sorriso repuxando os lados de seu rosto.
— Não é isso. — Responde, vendo-a suspirar com alívio. — Charles gostaria de falar com você. Mas, você sabe, ele mencionou que você acharia rude que ele entrasse em sua cabeça sem sua permissão. — As sobrancelhas de Jules se arquearam em visível surpresa. — Então ele me pediu que viesse e te convidasse pessoalmente.
— Charles respeitando o espaço mental de outras pessoas? — Ela pergunta, meio descrente, meio sarcástica. — O mundo deve estar acabando, sim.
Kurt dá de ombros, mas não discorda. Talvez ele mesmo estivesse bastante em choque com a atitude de Charles. Mas talvez aquela reação fosse apenas o tal magnetismo de Jules. Um monte de gente já fez um monte de coisas muito mais chocantes por ela, e pra ela.
— Bom, ele me disse que era uma emergência. — Ele conta, e Jules não perde a batida.
— Nesse caso... — Ela salta para o lado de Kurt, agarrando o braço dele. — Mãe, vou dar uma volta! — Grita no ar, sem saber ao certo se foi ouvida, apenas o silêncio da casa ecoando em resposta, e ela olha para seu ex-professor com o rosto estampado em dúvida.
— Ela disse que ia cuidar do jardim e acalmar o coração. — Kurt explica.
— Você assustou a vida pra fora dela, não foi? — Jules pergunta em tom de riso.
— Como eu poderia saber que ela estava na cozinha?
Jules balança a cabeça, rindo suavemente enquanto dá batidinhas no braço de Kurt, e murmura um "vamos lá, smurf". Kurt agarra seus ombros com um braço, e não leva um segundo até que Jules se sinta embalada e sacudida pela névoa negra que os transporta direto para um amplo jardim.
Ela respira o ar mais puro, adocicado e almiscarado que já se lembra de ter sentido, e algo mais forte, mais enraizado. O cheiro de poder bruto, o cheiro do Instituto.
— Lar doce lar. — Jules expira, sorrindo da maneira suave e lenta. — Não acredito que já fazem quatro anos desde a última vez.
— Eu me lembro. — Kurt comenta quando começam a andar pelo jardim. Em seu caminho há um ou outro aluno ocupando espaços debaixo das árvores, sentados perto do lago, ou apenas caminhando por aí. — Você veio nos trazer sua carta de aceitação para a faculdade de gastronomia, e não parava de repetir o quanto era grata por termos lhe dado a chance de uma vida comum.
Jules sorri para ele, entrelaçando seus braços, um leve salto em seus passos quando alcançam a trilha de pedras até o prédio principal.
— Como eu poderia não ser? — Ela pergunta genuinamente. — Vocês me ensinaram a ter controle de mim mesma. Tudo o que sou agora é o resultado do que cada um de vocês fez por mim antes.
Kurt sorri de volta, cobrindo com sua mão livre os dedos de Jules que se agarram ao tecido de sua jaqueta. Sua aluna favorita, exatamente como ela sempre foi, como ele se lembrava, um suave apelo de bondade.
— Preciso perguntar, Jules, porque isso está me matando. — Jules o olha em forma de incentivo, que quebra segundos depois que ela escuta sua pergunta: — Você se afastou depois de seu último aniversário. O que aconteceu?
Ela engole, olhando fixamente para frente, para nada específico, apenas evitando o olhar de Kurt.
— Fiz vinte e quatro anos. — Responde simplesmente, como se não fosse nada demais.
— Eu sei. — Kurt aperta um pouco seus dedos em um conforto silencioso. — Tenho razões suficientes pra crer que isso não tem haver com você não ter encontrado sua alma gêmea. — Jules o olhou, novamente se dando conta das razões para gostar tanto dele. Um homem de fé, observador e esperto. — Você encontrou, não foi?
— Podemos não falar sobre isso? — Ela pediu, baixo e acanhada. — Não quero ter que mentir pra você, Kurt.
E isso parece o suficiente para encerrar o assunto, pois ele não volta a perguntar, apenas deixando que Jules aperte ainda mais seu braço durante a caminhada, e se contenta em deixar carinhos suaves em suas mãos quentes e cheias de anéis. Em silêncio, eles percorrem os corredores da mansão até o escritório de Charles, parando diante da grande porta dupla de madeira entalhada.
— Bem, é aqui que você continua sozinha. — Kurt sorri de lado. — Boa sorte com ele.
— Vou precisar?
— Na verdade, acho que você sempre se saiu melhor que a maioria dos outros. — Kurt dá de ombros novamente. — Venha comer conosco quando acabar. Estaremos na cozinha vendo Scott tentar e falhar em preparar o almoço. — Ele pisca de maneira divertida, e logo desaparece, deixando apenas vestígios de sua névoa escura. Jules balança a cabeça, rindo levemente.
— Aqui vai nada. — Ela diz para si mesma, respirando fundo para reunir um pouco de coragem extra. Lidar com Kurt era uma coisa, mas Charles era algo totalmente diferente. Se ele decidisse por isso, não haveria como esconder um único segundo de sua vida. Jules bate na porta lentamente, girando e empurrando a maçaneta antes de projetar metade do corpo para dentro da sala. — Charles?
— Jules, estava esperando você. — Ele sorri de seu lugar atrás da larga mesa de escritório. — Vamos, pode entrar.
E ela faz, tentando agir o mais despreocupadamente que consegue. Não é tão fácil quando a pessoa para quem ela está fingindo é o leitor de mentes mais habilidoso do mundo, mas ela pode fazer o esforço.
— Kurt deu a entender que era urgente. — Ela comenta, largando seu corpo em um dos sofás duplos ao redor da mesa de Charles e espalhando os braços no encosto. — Olhando você agora, parece um pouco pior do que ele disse.
E era verdade. Charles estava, na falta de palavras mais gentis, parecendo que presenciou o verdadeiro inferno. Seu rosto estava assombrado e exausto, e a sensação que Julieta teve foi que o homem não dormia há dias.
— Três dias atrás, eu usei o Cérebro para monitorar alguns mutantes.
Ele não precisava dizer muito. O rosto de Jules se revirou em compadecimento.
— Oh, Charles, você continua se torturando com isso?
Ela sabia, o que assombrava Charles mais que qualquer coisa, eram os mutantes que ele nunca pôde ajudar, aqueles que continuaram perdidos pelo mundo, aprendendo de suas próprias formas, tantos prosperando sozinhos, tantos outros falhando. Aqueles, os que Charles não conseguiu salvar, os que ao menos tiveram uma chance, eram os que aterrorizavam seus pensamentos.
— É muito mais do que isso, Jules. — Justifica pacientemente — Isso que você chama de tortura, para mim e vigilância. É esperar um único momento, uma única chance de salvá-los.
— Nem todos podem... ou querem, ser salvos.
— Eu sei. — Charles diz. — Afinal, posso ler a mente deles. — Ele sorri com falsa presunção. — Estou aqui por aqueles que querem tão desesperadamente, mas não pedem, e por aqueles que precisam, mas ainda não sabem.
— Deixe-me adivinhar, você encontrou alguém?
— Encontrei dois alguém. — Ele responde. — Sabe, eu os tenho observado há anos, em seus momentos mais desesperadores, os mais perdidos. Eu não sei porque não agi antes, mas me arrependo disso todos os dias da minha vida.
— Você não fez por mal, Charles. — Jules diz com tranquilidade e convicção. — Conheço você, e sei que nunca escolheria deliberadamente não ajudar alguém em apuros. — Ela suspira, se inclinado um pouco para frente e acenando no ar com a mão. — Então, me fale sobre as duas criaturas que tem tirado seu sono.
— Dois irmãos. — Charles responde, as mãos cruzadas sobre o queixo enquanto observa Julieta com determinação. — Pietro e Wanda Maximoff.
Ela acena, repetindo os nomes mentalmente e esperando pelo restante das informações. Mas Charles simplesmente a continua encarando, e apesar de saber que ele está fora de sua mente agora, ainda é como se todos os seus segredos estivessem expostos a ele.
Jules está confusa. Aqueles nomes deveriam significar algo pra ela?
— E isso quer dizer...?
— Eles estão envolvidos com algo complicado. — Charles explica finalmente. — Ultron, uma inteligência artificial criada por Tony Stark, ganhou uma espécie de... vida própria. Ele foi atrás dos irmãos em busca de aliados, e o ódio que ambos sentem por Stark foi forte o bastante para coagi-los a se aliarem a Ultron. — Ele conta, sem nem mesmo se dar conta de que cada palavra era mais estranha que a anterior. — Agora, querem usar o Cetro do Deus Loki para dar a Ultron um corpo melhorado, um que não limitaria seu vasto poder e conhecimento. Querem torná-lo invencível.
Jules pisca lentamente por longos segundos, observando Xavier como se uma segunda cabeça tivesse crescido em seu pescoço. Ela assobia longamente.
— Complicado é um apelido fofo. — Ela dispara, exasperada. Por quê Charles sempre ficava obcecado pelos surtados da cabeça, permanecia sendo um mistério.
Bem, não é como se ela pudesse julgá-lo por isso.
— A razão pela qual eu te chamei, Jules, além de seus comentários mentais espirituosos, é porque você já está um pouco envolvida demais nessa história. — Ele diz facilmente, e Jules congela.
Ela realmente sente sua respiração se perder e encolhe os ombros em um esforço inútil de desaparecer. Seu rosto está impassível, mas a mentira nem mesmo desliza por seus lábios com aquela facilidade habitual. Não com Charles.
— Achei que havíamos conversado sobre privacidade. — Ela murmura, empalidecendo consideravelmente.
— Eu estava dormindo, Jules, quando fui arrastado para seus pensamentos na madrugada do seu aniversário. — Ele conta, tendo a decência desparecer constrangido com isso. — A forma como descobri que você tem uma alma gêmea foi completamente acidental. — Jules bufa, aborrecida. — Mas descobrir quem ele é, isso foi proposital.
— Você tem espionado ele? — Ela questiona com visível indignação. — Não acredito que fez isso, Charles. Ler minha mente é uma coisa, mas fazer isso com alguém que nem mesmo sabe que corre esse risco, é invasivo e cruel, você...
— Se parar um segundo de agir como um felino arisco, vai me ouvir dizer que não li um único pensamento dele. — Charles interrompe seu discurso bastante revoltado, e Jules suspira, relaxando os ombros contra a maciez do sofá.
— Você promete?
— Prometo. — Charles afirma. — Mas sobre os outros relacionados a ele... — O sorriso no rosto do homem é meio feroz agora, e Jules sabe que vai gostar do que vai ouvir. — digamos que havia muito na mente de seus programadores, e de cada um que trabalhava naquela base de onde você o arrancou... os que sobraram, é claro. E mesmo esses não serão capazes de se lembrar do incidente até... bem, nunca.
Até então, ela não havia parado pra pensar no que aconteceu com os sobreviventes da fuga. Saber que Charles cuidou de suas memórias, foi um alívio. Mesmo que ela tivesse deixado qualquer pista para trás, que suas ações levassem a questionamentos e dúvidas, ninguém que esteve presente se lembraria disso.
Sem testemunhas, a investigação do desaparecimento do Soldado Invernal estava perto do impossível.
Jules queria rir. Ela quase saltou de seu lugar apenas para beijar o rosto de Charles repetidamente. No entanto, ela apenas sorriu, e foi quase selvagem demais para lhe pertencer.
— Bom. — É tudo o que Julieta diz, satisfeita com os resultados por enquanto.
— E quando eu digo que você está muito envolvida... — Ele retoma rapidamente o assunto anterior. — é porque além de ser mutante como os gêmeos Maximoff, sua alma gêmea é o melhor amigo perdido do Capitão América.
— Eu tô sabendo. — Jules suspira. — Duas crianças do Brooklyn, irmãos de guerra, perdidos em um tempo que não lhes pertence. — Ela gorjeia com certo cansaço. — É tão triste quanto soa.
— Também sabe que eles lutaram um contra um outro apenas um dia antes de você libertar Barnes das garras da Hidra?— Essas palavras fazem o coração de Jules saltar de maneira errada, estranha. Ela quase sente seu estômago se desfazer.
— O quê?
— E é claro que Rogers o reconheceu. — Charles gesticula, explicando o que já parece óbvio. — Ele está procurando por Barnes há meses e, em seus pensamentos, é como rastrear um fantasma. Não há nada lá. — Bem, parece que Julieta não era a única completamente perdida sobre o paradeiro de James. Mesmo que tenha mais provas de que ele está vivo e parcialmente são, não é como se o contato entre eles fosse de mão dupla. — E os únicos que sabem que ele está procurando são alguns de seus amigos e companheiros de equipe. O que...
— O que torna os Vingadores pessoalmente envolvidos nas buscas por James. — Ela concluiu com uma respiração falha. — Droga!
Os Vingadores, entre todas as coisas. Rogers faria o possível para que Barnes recebesse a justiça que merece. No entanto, Jules não tem certeza se pode esperar o mesmo de tantos outros, ela nem sabe se pode esperar o mesmo de seu governo. A ameaça à sua liberdade está pairando ao redor de James outra vez.
E é como acender um fósforo perto de um barril de pólvora. Jules de repente está fervendo por dentro, o ar na sala parecendo incendiar seus pulmões. Os anéis de metal praticamente fervem em sua pele, e é como ela sabe que precisa respirar e se acalmar.
O Soldado Invernal é um inimigo público, e qualquer passo em falso, por menor e mais insignificante que seja, vai colocar o mundo em seus rastros. É apenas questão de tempo.
— Não estou te dizendo isso para antagonizar os Vingadores, Jules. — Charles diz, a voz suave e pacificadora para apaziguar os ânimos de sua ex-aluna. — Na verdade, é o completo oposto. — Ela o olha, ainda não tão calma quanto deveria, mas o suficiente para perguntar:
— O quê quer dizer?
— Sua ligação com Barnes a torna a pessoa mais importante para ele nesse século, e não adianta negar. Ele pode não saber como agir sobre isso agora, mas não é como se ele estivesse disposto a ignorar a conexão entre vocês, seja por gratidão, afeto ou qualquer outra coisa. — Charles argumenta. — E se Rogers descobrir sobre isso, acha que ele deixaria qualquer coisa acontecer a você, sabendo o quê isso faria com o melhor amigo dele?
— Está sugerindo que...?
— Que pela primeira vez temos um elo entre os maiores heróis da Terra, e os mutantes. — Jules mal pode acreditar no que está ouvindo. — Eles são ouvidos, são respeitados e reverenciados, e nós, por mais que tentemos, continuamos às margens. Se a maneira certa de conseguirmos erguer nossa voz for através daqueles que já são ouvidos, acredito que valha à pena tentar.
— Eu não vou servir de fantoche pra seduzir alguns Vingadores e apelar para que se levantem em nosso favor, Charles. — Jules protesta vigorosamente. — Não fizeram até agora por vontade genuína, não espero que façam só porque eu pedi por favor.
— Jules...
— Tem um jeito certo de fazer isso, você tem razão. — Ela afirma, erguendo o queixo com pretensão. — Mas esse jeito não é meu elo de alma. — Olhando-o firmemente, Jules nem mesmo recua por um único segundo. — Me desculpe por desapontá-lo, mas não vou usar James para favorecer nossos interesses, por mais puros que sejam. Ele não merece nada disso.
— É sua última palavra sobre isso?
— Irreversivelmente. — Ela garante com a voz dura como aço. Charles acena em aceitação e compreensão.
— Tudo bem. — É sua resposta, seguida de um sorriso conhecedor. — Não vou insistir, Julieta, você sabe o que faz.
Ela assente, mesmo que alguma coisa dentro de si não tenha tanta certeza assim se sabia de qualquer coisa nos últimos meses. Seu coração parecia gritar muito mais alto que qualquer coisa. Na verdade, era sua alma que estava gritando, suplicando, para que ela escolhesse James Barnes, independente de qualquer coisa.
A sensação era a mesma que tatear no escuro, sem direção, sem destino. Apenas esperança de chegar a algum lugar.
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