02. Bom dia, soldado.




14 de Abril, 2014
62 horas antes da troca


Dobroye utro, soldat.

Pronto para cumprir. — A resposta soou seca e fria, desprovida de qualquer sentimento de simpatia, ou de qualquer reconhecimento real do quê isso significava. Ele tem uma ordem, ele a executa, ele volta e espera pela próxima.

As palavras são ditas, e sua parte racional, aquela pequena fração dele que ainda consegue ter seus próprios pensamentos e divagações, se desliga por completo. Pronto para cumprir. Simples assim, é a programação perfeita, e ele é menos humano quanto o possível.

Não há nada ali, absolutamente nenhum fragmento de quem ele teria sido antes de ser isso. Sua mente está em branco, e sua existência gira em torno de um único objetivo, finalizar sua missão. Ele tem um alvo, e ele o executa, e então outro, e mais um. Um após o outro, ele molda o mundo conforme seus programadores desejam.

E não tem nada ali. Sua mente é tão nublada e obscura quanto poderia, e, ainda assim, ele não sente nada sobre isso. Ele sabe que deveria haver algo, culpa ou remorso, qualquer coisa, qualquer dor ou perda, o menor desespero e desamparo. Ele não encontra nada nele que seja humano o suficiente para se sentir de qualquer forma.

Ele mal sabe se é humano, se algum dia foi. Não se lembra de um só dia em que ele não tenha sido exatamente quem ele é agora. Soldado Invernal, é como eles o chamam, e ele encontra a razão quando mira seus próprios olhos no reflexo de uma superfície qualquer. É a última coisa que seus alvos conseguem ver, e é frio, e tão desumanamente vazio que ele nunca precisou dizer uma única palavra para que cada um deles soubesse o que estava prestes a acontecer.

Pronto para cumprir, outra vez.

A arma pesa em seu punho humano quando ele pisa no jato, seu traje tático cobrindo a pele do vento frio e cortante, mas que realmente nunca teve nenhum efeito sobre ele. A máscara é ajustada em seu rosto com sua mão de metal, e quando os dedos gelados tocam em sua pele, o puxão no fundo de sua mente é quase incômodo, mas familiar.

Quando isso acaba?

Não acaba. Nunca acaba, e ele quase rosna a resposta para si mesmo, sem saber de onde surgiu a pergunta. Ele não tem o direito de pensar nessas coisas. Ele não deve.

Ainda assim, ele fez, e precisou de toda sua força de vontade para não bater em si mesmo por isso. Nicolas Fury é seu alvo, e é tudo em que ele deve se concentrar, é tudo o que ele pode pensar.


✦ .   ・゚ .


57 horas antes da troca


Nicolas Fury estava sendo, possivelmente e sem nenhuma surpresa, um dos alvos mais difíceis que o soldado teve em todos os anos que se lembrava. Ele assistiu com certo interesse à perseguição, e uma presunção quase automática quando todos os agentes falharam em deter o homem, e ele foi empurrado para consertar a bagunça.

O peso do lança granadas apoiado em seu ombro durou apenas alguns segundos, um disparo e um solavanco depois, e a granada se prendeu embaixo do carro de Fury. O soldado deslizou para fora do caminho com tanta graça que deveria ter sido improvável, apenas alguns centímetros de ser atingido pelo veículo.

O carro girou no ar e bateu contra o chão, se arrastando ruidosamente por muitos metros enquanto o fogo rapidamente se alastrava pela ferragem destruída. Em passos pesados, o soldado se aproximou do que restou do carro capotado, trocando a arma pouco prática por uma pistola simples. Com o braço de metal ele arrancou a porta do motorista, apenas para ver parte do carro destruída bem onde encontrava o chão, e um buraco profundo no asfalto e na terra, em direção aos túneis de esgoto.

Seu alvo escapou, definitivamente colocando um pouco mais de dificuldade em sua missão.


✦ .   ・゚ .


49 horas antes da troca


Se ele pudesse ter escolhido, se fosse sua missão desde o início, e apenas sua, ele sabe que teria começado assim. O show de perseguição e explosões no meio de uma rua movimentada em Washington não era como ele estava acostumado a fazer o trabalho. Ele era silencioso e furtivo, sem rastros, sem testemunhas e sem problemas futuros.

Ele não teria dito a todos para perseguir um alvo em viaturas da polícia bem no meio da cidade. O rifle montado em um tripé no alto de um telhado, apontado para um conjunto de prédios que, ele foi informado, habita alguns agentes da Shield, isso era como ele teria feito se fosse perguntado. Porque isso, esse tiro, ele sabe que não vai errar. Ele nunca erra.

Ele espera, porque a paciência está infiltrada subconscientemente em seu treinamento, tal como o foco e a destreza. São as frações menos agressivas em tudo o que ele sabe fazer, os pequenos aspectos que poderiam ser enxergados como qualidades.

Poderiam, se não fossem usadas para assassinato tanto quanto todo o resto sobre ele.

Então, com o olho esquerdo apertado e o direito colado na mira do rifle, ele sabe o momento exato em que seu alvo se move dentro de um dos apartamentos. Ele sabe pela altura, pela largura dos ombros, pelo curvar da cabeça e o gesto das mãos. Ele sempre sabe.

E ele atira três vezes, cada uma delas pegando em cheio os pontos anatomicamente mais fatais que ele pode encontrar nesse ângulo desfavorável. Ele leva mais alguns segundos para ter certeza que o alvo caiu, e então dobra o rifle novamente e desmonta o tripé em poucos movimentos das mãos hábeis, empurrando tudo em uma maleta que ele chutou para dentro do duto de ventilação.

A confirmação virá em poucas horas, então sua retirada é o próximo passo consciente da missão. É o que ele faz, o mais rápido e furtivo possível, correndo por todo o espaço dos telhados e saltando de um prédio para o outro, levaria um minuto até que ele saísse totalmente de vista.

Ele escuta, antes mesmo de ver, quando alguém salta e quebra uma janela do prédio de onde ele acabou de pular. Um par de pés começa a correr atrás dele logo depois, no momento que ele alcança a borda do último prédio, e a próxima coisa que ele escuta e o ruído característico do ar sendo cortado por um objeto côncavo.

Ele gira o corpo, braço de metal estendido para frente, e suas mão recebe todo o impacto quando seus dedos se prendem no escudo. Ele não espera um segundo antes de girar o braço e jogá-lo de volta com o dobro de força, a precisão que ele sabe que poderia acertar o outro homem no meio do tórax. Mas ele não ficou para saber, pulando da borda do prédio e se esgueirando no beco mais próximo para desaparecer nas sombras.


✦ .   ・゚ .


27 horas antes da troca


Há um homem, Alexander Pierce, no alto de uma cadeia de comandos da Hydra. Não no topo, mas alto o suficiente para que o Soldado lhe deva obediência. Ainda assim, ele está ciente de quanto medo sua mera presença inspira em Pierce. Subordinado ou não, ele vê o suor brilhando na testa do homem, e como a cor de seu rosto parece mais pálida instantaneamente.

É meio satisfatório. Todos os segundos que Pierce leva para perceber que o soldado não está ali com uma missão, que continua sendo um mero fantoche sem vontade ou consciência, tudo isso causa uma certa diversão irônica no Ativo, que continua lhe observando, estóico e indiferente.

— Eu preciso ir, senhor Pierce. — A voz de uma mulher ecoa no corredor, e o soldado nem mesmo move um único músculo. — Quer mais alguma coisa antes que eu saia?

Apenas saia, seu subconsciente grita. Vá embora.

— Não. — Pierce responde, sem tirar os olhos do Ativo. — Tudo bem, Renata. Pode ir embora.

— Tá legal. — Seus passos tranquilos começam a se afastar cada vez mais pelo corredor. — Boa noite.

— Boa noite. — Pierce responde, e logo em seguida o bater da porta ecoa pelo andar debaixo assustadoramente silencioso. — Quer um copo de leite? — Ele oferece por falsa cortesia, lembrando a si mesmo que foi isso que veio fazer na cozinha tão tarde da noite, antes de dar de cara com o pesadelo em forma viva. Ele se serve, sem dar importância à falta de respostas verbais do soldado. Não era como se ele respondesse de qualquer forma. — Mudamos o cronograma. O tempo é limitado. — Conta Pierce enquanto circula a ilha de mármore e se senta à mesa. — Dois alvos de nível seis. Já me custaram o Zola. Quero suas mortes confirmadas em dez horas.

— Desculpa, senhor Pierce? — O soldado a escuta antes de vê-la, mas ele sabe que ela está ali, entrando na cozinha pela porta atrás de Pierce. Não, não devia ter voltado, é a única coisa que ele pensa. — Eu esqueci o celular.

Ele não olha pra ela, mas sabe que ela o está encarando, escuta o coração dela disparar de medo e hesitação por ter, claramente, entrado no momento errado. Ao invés disso, ele encara a arma sobre a mesa, aquela há poucos centímetros de distância, aquela que ele sabe que vai ser usada em alguns segundos.

Na maioria das vezes ele mal se lembra de seus alvos. Mas ele sempre se lembra daquelas pessoas inocentes que cruzaram seu caminho no momento errado, todos aqueles efeitos colaterais que apenas deveriam ter olhado na direção oposta.

— Ah, Renata. — Pierce resmunga com frustração, sua mão se esticando rapidamente para agarrar o punho da arma. — Devia ter batido.

Essa foi uma das poucas vezes que o soldado não lidou com o problema. Mas ele sabe que ainda se lembraria do último grito de Renata.


✦ .   ・゚ .


10 horas antes da troca


Ele não se lembra de muita coisa. De quase nada, na verdade, ou nada nos dias ruins. Mas havia algo naquele homem, o que lutou contra ele na ponte, que congelou quando o olhou no rosto, como se visse um fantasma. Não era um olhar de medo, ou fúria, como ele não atava acostumado. Era melancólico, descrente, quase esperançoso.

Bucky, foi como ele lhe chamou, e foi tão familiar ao mesmo tempo que foi estranho. Depois disso, o nome não parou de ecoar em sua cabeça.

Bucky, Bucky, Bucky... ele continuou a repetir como um mantra, determinado a entender de onde vinha aquela sensação conhecedora. O rosto do homem também não parava de voltar em forma de delírios, repetidamente surgindo em sua memória das formas mais diversas. Ele já o viu antes, muitas e muitas vezes, mas onde, ou quando, continua sendo a questão.

Ele se perdeu em pensamentos e devaneios, e a única coisa que o ancora de volta na realidade é a ardência em sua bochecha quando Pierce o esbofeteia no rosto.

— O homem na ponte. — Ele diz lentamente, inseguro enquanto sobe o olhar para encarar Pierce. — Quem era ele?

Pierce hesita, ele percebe com facilidade.

— Você o encontrou em outra missão essa semana. — É a resposta que ele recebe.

É parcialmente verdade, ele se lembra do homem no telhado, aquele em quem ele jogou um escudo de vibranium. Mas não foi isso que ele perguntou, e a resposta de Pierce sono irrita mais, porque faz parecer que ele é estúpido e ingênuo.

— Eu conhecia ele. — Ele diz, mais para si mesmo do que qualquer outra coisa. Saber que havia algo ali antes de ele ser o Ativo, um soldado perfeito, é uma coisa tão pequena, mas que já o faz se sentir um pouco mais humano.

— Seu trabalho tem sido um presente para a humanidade. — Pierce argumenta, como se essa fosse a única coisa importante, como se isso fosse a única coisa que o soldado poderia ser. — Você moldou o século. — Contra sua vontade, sangrenta, dolorosa e perturbadoramente, vale acrescentar. — É preciso que faça isso mais uma vez. — Não, ele pensa, não de novo. — A sociedade está no limite entre a ordem e o caos. — Ele também está no seu limite, mas isso não parece importar de nenhuma forma. — Amanhã vamos dar um empurrãozinho. Mas se não fizer sua parte, não posso fazer a minha. E a Hydra não dará ao mundo a liberdade que ele merece.

Liberdade.

Esse é um conceito interessante e irritante, liberdade. Ele não sabe se um dia vai entender a sensação, a euforia que as pessoa sentem com essa tal de liberdade. O irrita o quão preso ele precisa estar para que outros sejam "livres". Mas ele quer isso, a liberdade, por mais egoísta que possa parecer, para si mesmo.

Talvez ele quisesse ser livre para finalmente poder se lembrar de tudo que lhe foi tirado, talvez para nunca precisar olhar para trás, ou para olhar, para onde quer que fosse, pelo tempo que fosse. Se ele fosse livre, talvez conseguisse entender porqueira homem estranho lhe chamaria de Bucky com tanta dor.

— Mas eu conhecia ele. — Enfatiza, agarrando-se a essa afirmação como a única coisa que lhe impede de se afogar em angústia e culpa agora.

Se conhecia ou não aquele homem, ele quase o matou há poucas horas, e isso não o ajuda em absolutamente nada. Pierce levanta, frustrado.

— Prepare-o.

Não agora, ele pensa, eu estou quase descobrindo.

— Ele está fora do congelamento há muito tempo.

Pierce ignora.

— Apague as lembranças e o reinicie.

Ele estava quase.

Ele morde a borracha que é colocada em sua boca, e se deixa ser empurrado para trás na cadeira.

Ele não quer esquecer. Não agora. Não dessa vez.

As ondas elétrica se chocam contra sua cabeça, nas têmporas, na nuca, na testa, e percorrem cada célula de seu cérebro. Ele não sabe se é religioso, mas acredita que, se existe um inferno, é exatamente como isso.

Bucky, ele tenta manter em sua mente quando a dor já é tão insuportável que seus olhos giram para trás da cabeças seus dedos se contorcem para agarras os lado da cadeira. Bucky, Bucky, se repete algumas vezes quando seu coração já bate tão forte que o sangue pulsa em seus ouvidos.

Ele quer se lembrar desse nome quando tudo isso acabar. Bucky. E quer se lembrar de novo quando sair do congelamento. Ele quer se lembrar de algumas outras coisas, essas que a dor já lhe fez esquecer agora.

Há um relógio nessa sala, na parede bem em sua frente, com ponteiros que marcam o horário, e um pequeno calendário digital no canto. É a primeira coisa que ele vê quando os choques param, desfocado e trêmulo. Quando o puxam da cadeira e para fora de sua dor, ele vê as horas. 19:37.

Ele continua fazendo isso, todas as vezes que sai dessa cadeira, ele conta o tempo que levou nela, o tempo que leva até cair na inconsciência quando é colocado na criogenia, o tempo que demora pra o tirarem dela. Ele continua marcando o tempo, como tortura ou conforto, é um mistério.

Mas é apenas por isso que ele sabe que, quando a câmara se fecha ao seu redor e o gelo começa a consumi-lo, faltam quatro horas para 00:00. O dia seguinte seria 17 de abril.

Ele pensa nisso apenas porque acha irônico, e deprimente, dezessete ser uma de suas palavras de ativação.






Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top