01. All my life

As vozes dos meus senseis ainda ecoam como uma melodia cortante na minha mente, cada palavra reverberando com um peso que parece dobrar sobre mim enquanto meus braços descem mais uma vez para tocar o chão frio. Estou no centro do dojô, sozinha, com apenas o som da minha respiração ritmada e o leve ranger das tábuas abaixo de mim. O cheiro da madeira impregnada de anos de suor e esforço invade minhas narinas, misturado com o aroma metálico do meu próprio suor.

"Lauren, liderança é mais do que força," a voz de Sensei Kumiko sussurra em minha memória, sua entonação sempre suave, mas afiada. "É equilíbrio, é foco. Você carrega mais do que o próprio peso agora." Cada palavra dela me assombra, como se estivesse ali, observando, seus olhos tranquilos, mas analíticos, nunca deixando escapar uma falha sequer.

E então, vem o contraste. A lembrança de Sensei Yama ressoa como um trovão: "Você não tem margem para erros. O fracasso não é uma opção. Ele é um reflexo da sua falta de comprometimento." Suas palavras não eram cruéis por maldade, mas impiedosas pela necessidade de me moldar. Ele me ensinou que a perfeição não é um destino, mas uma batalha constante contra a complacência.

Meus braços tremem enquanto desço para mais uma flexão, o suor caindo em gotas rápidas no chão polido. A tensão no meu corpo é quase insuportável, mas não maior do que a que pesa sobre a minha mente. Em poucos dias, estarei deixando isso tudo para trás. O cazã, onde passei muitos anos de minha vida, onde aprendi a ser forte e a lutar. Minha antiga equipe, aqueles que viraram minha família. Cada canto desse lugar, cada som e cheiro, está impregnado na minha memória, mas logo se tornará apenas uma lembrança.

Marietta. Califórnia. Essas palavras parecem tão distantes e, ao mesmo tempo, tão iminentes. Lá, Yelena e eu começaremos algo novo, algo grandioso. Uma filial do Fierce Dragons. Eu, Lauren Toguchi, uma das líderes dessa nova era. Só que essa responsabilidade... Ela pesa. Não é só nas palavras que ouço na minha mente, mas em cada fibra do meu corpo.

A cada movimento, meu foco se ajusta. O chão está frio contra minhas mãos, e a queimadura nos meus músculos me lembra das palavras de Sensei Yama: "A dor é o seu professor mais honesto. Aprenda com ela, mas nunca ceda."

Respiro fundo, meu peito subindo e descendo em um ritmo cada vez mais firme. Sei que o treino começará em minutos, que cada segundo agora é uma oportunidade de me preparar para o futuro. O dia de hoje não é como os outros. É decisivo. Não posso me dar ao luxo de vacilar. Meus braços cedem mais uma vez, e eu subo com uma determinação renovada.

Estou pronta para o próximo teste, mas não sem carregar o peso da expectativa de quem me fez chegar até aqui.

O som dos meus próprios movimentos é tudo que preenche o silêncio no dojô, pelo menos por enquanto. Ainda há uma quietude que só existe nesse breve intervalo antes que os outros cheguem. O suor em minha testa escorre até o canto do meu olho, e limpo com o ombro antes de voltar ao chão para mais uma flexão. Eu me concentro no padrão do meu corpo subindo e descendo, a respiração controlada, os músculos tensos, ignorando o peso da fadiga que ameaça me consumir.

Então, ouço passos. Ligeiros, quase inaudíveis no início, mas depois ganhando firmeza ao atravessar a entrada. Ergo o olhar enquanto termino outra repetição e vejo Kumiko entrando. Ela caminha com aquele equilíbrio impecável, os passos fluindo como água, cada movimento calculado. Sua presença tem um peso sutil, mas inconfundível.

— Chegou cedo, Toguchi — Ela comenta, seus olhos me avaliando por um momento. Há uma aprovação silenciosa ali, um lampejo de algo que quase parece orgulho, mas que se dissolve rapidamente em seu tom controlado. — É bom ver essa dedicação, lembra muito o seu pai.

Meu pai, alguém que não vejo há anos, e sei que serei obrigada a rever quando for para a Califórnia, local onde eu sei que ele e minha irmã estão morando. Eu não sinto tanto rancor dele quanto Jean, minha irmã mais nova, no entanto, ainda será estranho vê-lo depois de anos distante.

E antes que eu possa responder Kumiko, outro som ressoa. Passos mais fortes, mais diretos. Sensei Yama entra no espaço como uma tempestade iminente, sua postura rígida, a expressão impenetrável como sempre. Ele lança um olhar para mim, mas não é de aprovação ou crítica. É de avaliação.

— Se é assim que quer começar, mantenha essa regularidade — Ele diz, sua voz cortando como sempre. — Consistência é o que diferencia os medíocres dos excepcionais.

Não há elogios no tom dele, mas também não há desaprovação. Apenas um lembrete de que o que fiz hoje precisa ser replicado amanhã, e no dia seguinte, e no próximo.

— Sim, sensei. — Respondo, a voz firme, tentando esconder o tremor que vem do esforço físico e da pressão mental.

Kumiko move-se para o canto do dojô, enquanto Yama assume uma postura imponente mais ao centro. O ambiente começa a mudar com a chegada dos primeiros alunos, um por um, conversando em tons baixos que rapidamente desaparecem sob os olhares atentos dos dois senseis.

Então, Mikan entra. Sua presença é sempre marcante, não pelo respeito rígido que os senseis inspiram, mas pela energia descontraída que traz consigo. Ele tem um sorriso largo no rosto, as mãos enfiadas nos bolsos do uniforme enquanto caminha em direção a mim.

— Lauren! Deixa eu adivinhar... Começou mais cedo porque queria impressionar os senseis ou porque não tinha mais nada melhor pra fazer? — Ele diz com uma risada leve, seus olhos brilhando com um tom brincalhão.

Eu não consigo evitar um sorriso, embora mantenha a compostura.

— Talvez os dois, Mik. — Respondo, tentando soar casual, mas o cansaço na minha voz entrega o esforço que já coloquei nessa manhã.

Antes que ele possa continuar com as piadas, Sensei Yama interrompe.

— Mikan — Ele chama, o tom firme, mas não tão duro quanto o que usa comigo ou com os outros alunos. — Se vai ficar aqui, faça algo útil. As instruções para os aquecimentos estão no quadro.

Mikan endireita a postura, como um garoto pego em flagrante, e responde com um aceno rápido.

— Sim, sensei. Já estou indo.

Mas, enquanto se afasta, ele joga um olhar rápido na minha direção, um sorriso de canto que só nós dois entendemos. Baixamos a cabeça quase ao mesmo tempo, rindo baixo, tentando não chamar atenção.

Os minutos passam, e mais alunos chegam, enchendo o espaço com energia e movimento. Há algo reconfortante nessa rotina, nessa dinâmica de treino, mesmo com toda a pressão. Então, vejo Yelena entrando.

Ela sempre tem uma presença única, algo que mistura confiança e leveza de um jeito que só ela consegue. Seus olhos me encontram imediatamente, e ela se aproxima com aquele andar descontraído que é tão característico dela. Quando está a poucos passos de distância, estende a mão em minha direção.

É nosso toque. Algo que criamos há anos e que só nós entendemos. Um rápido bater de punhos, seguido de um toque leve nos ombros, finalizado com as palmas unidas em um movimento que simboliza tanto a força quanto a conexão.

— Pronta para mais um dia decisivo? — Ela pergunta, a voz tranquila, mas com um brilho de provocação.

Eu respiro fundo, sentindo um pouco do peso aliviar só por tê-la ali.

— Pronta como sempre, Lena.

Ela sorri, mas há algo nos olhos dela que diz que também sente a mesma pressão. Afinal, não sou só eu que carrego o futuro do Fierce Dragons em Marietta. Estamos juntas nisso, como sempre estivemos.

Os senseis começam a organizar os alunos, suas vozes claras ecoando pelo espaço, marcando o início do treino. Mas por um momento, enquanto me junto ao grupo, sinto algo diferente. Não é apenas a tensão ou a expectativa. É um fio de orgulho, de saber que, apesar de tudo, cheguei até aqui.

E sei que, com Yelena ao meu lado e com os ecos dos meus senseis me guiando, posso carregar o peso que está por vir.

O vento frio cortava a pele como facas invisíveis, uma lembrança constante de onde estávamos, no coração da Rússia, onde cada treino parecia um teste de sobrevivência. O rio diante de nós era uma extensão escura e gelada, com um tablado de madeira precariamente equilibrado sobre ele. As águas se moviam lentamente, mas o simples pensamento de cair ali era suficiente para fazer qualquer um hesitar. Qualquer um, menos nós.

Sensei Yama se posicionou à margem, seus braços cruzados, os olhos estreitos avaliando cada um de nós como se pesasse nossas almas. Sua voz ressoou alta e firme, carregada com a gravidade da situação.

— Hoje, enfrentaremos o frio e a incerteza com força e estratégia. Este é o tablado. Seu oponente é a barreira. O rio abaixo é o seu fracasso. — Ele fez uma pausa, deixando as palavras penetrarem como gelo no peito de todos. — Vocês não podem errar. Não aqui. Lutem como se fosse sua última chance, porque é exatamente assim que deve ser.

Eu e Yelena fomos chamadas para sermos as primeiras. Não foi surpresa para ninguém. Nós duas éramos as melhores do dojô, e Yama adorava testar os limites de quem tinha mais a perder. Troquei um olhar rápido com Yelena enquanto caminhávamos em direção ao tablado.

— Parece que estamos inaugurando o espetáculo. — Murmurei, minha voz baixa para não chamar atenção, mas alta o suficiente para que ela ouvisse.

Yelena riu, a leveza dela parecendo um contraste surreal com o ambiente severo ao nosso redor.

— Claro que sim. Só espero que você esteja preparada, porque eu não vou pegar leve.

Olhei para ela e sorri.

— Nem eu. Amigas ou não, lá em cima você é só mais um obstáculo.

Ela ergueu uma sobrancelha, um brilho divertido nos olhos.

— É assim que gosto. Não esperava nada menos que isso, Ren.

Subimos no tablado, o som da madeira rangendo sob nossos pés competindo com o vento que assobiava ao nosso redor. O rio abaixo parecia ainda mais ameaçador daqui de cima, um lembrete constante do que aconteceria ao menor erro. Meu corpo estava tenso, mas minha mente, afiada. Era como estar no limite de um precipício, onde cada movimento precisava ser calculado com precisão.

Yama ergueu uma das mãos, sinalizando que a luta estava prestes a começar. A outra segurava um cronômetro, porque para ele, até o tempo importava. Ele não disse uma palavra. Apenas deixou sua presença falar por ele.

Eu assumi minha posição, o corpo baixo, os punhos erguidos, os pés ligeiramente afastados para manter o equilíbrio. O tablado era mais estreito do que eu esperava, e cada passo teria que ser perfeito. Yelena fez o mesmo, os olhos fixos em mim, mas com um sorriso de canto que dizia que ela estava se divertindo tanto quanto estava levando isso a sério.

O som da palma de Yama batendo contra o cronômetro marcou o início.

Ela avançou primeiro, rápida como sempre. Seus movimentos eram calculados, cada passo no tablado parecia parte de uma dança. Tentei bloquear, mas ela já estava em outro ângulo, um golpe vindo em direção ao meu ombro. Desviei no último segundo, sentindo o tablado tremer sob os nossos pés.

— Essa foi perto — Ela comentou, sua voz firme, mas carregada com aquele tom provocador.

— Mais perto do que você vai chegar — Retruquei, avançando com um chute baixo.

Ela saltou para trás, quase tropeçando, mas recuperou o equilíbrio de forma impecável. A luta continuava, cada uma de nós testando os limites da outra, não apenas em força, mas em estratégia.

O frio era implacável. Meu corpo começava a sentir o impacto do vento e do esforço. Minhas mãos estavam quase dormentes, mas eu não podia deixar isso me atrapalhar. Cada golpe precisava ser certeiro, cada esquiva, perfeita. O tablado balançava a cada impacto, ameaçando nos jogar para as águas congelantes abaixo.

Yelena viu uma abertura e avançou com um golpe rápido. Ela era mais rápida que eu, mas usei isso contra ela, me esquivando no último segundo e empurrando com o ombro para desestabilizá-la. Ela cambaleou, quase caindo, mas recuperou-se com uma agilidade impressionante.

— Nada mal! — Ela disse, ofegante, mas com um brilho nos olhos que mostrava que ela estava se divertindo.

— Você ainda não viu nada. — Respondi, sentindo a adrenalina correr pelo meu corpo.

Os gritos abafados dos outros alunos na margem chegavam aos meus ouvidos, mas eu os bloqueei. O mundo inteiro se resumia àquele tablado e a Yelena.

Ela tentou um golpe alto, mirando meu rosto, mas usei minha altura a meu favor, abaixando-me e girando para atingi-la no flanco. O impacto a fez recuar, e por um momento, pensei que ela fosse cair. Mas Yelena era Yelena, e ceder não estava no vocabulário dela.

Eu me endireitei, ofegante, e sorri.

— Você vai ter que fazer melhor do que isso.

Ela sorriu de volta, mas havia algo mais sério nos olhos dela agora.

— Eu sempre faço.

O golpe seguinte foi rápido demais para que eu pudesse desviar completamente. Senti o impacto no meu braço e cambaleei para trás, o tablado balançando perigosamente. Minha visão foi momentaneamente preenchida pelas águas negras abaixo de mim, mas eu me recuperei, voltando à posição defensiva.

Yelena não deu trégua. Ela sabia que eu estava desequilibrada e aproveitou isso, avançando com uma série de golpes rápidos. Desviei de alguns, bloqueei outros, e finalmente consegui contra-atacar com um chute que a fez recuar.

O tablado rangia sob nossos movimentos, mas nenhum de nós cedia. O frio era quase insuportável agora, mas isso não importava. Não enquanto estivéssemos lutando.

Finalmente, vi minha chance. Yelena estava ligeiramente inclinada para o lado, e eu avancei com tudo. Usei meu peso e força para empurrá-la para trás. Ela tentou resistir, mas o tablado não era largo o suficiente para que ela recuperasse o equilíbrio.

Ela caiu, o corpo atingindo a água com um som estrondoso que ecoou pelo ar gelado.

Por um momento, o mundo ficou em silêncio. Então, os aplausos e gritos dos outros alunos romperam o ar, misturados com o som de Yelena emergindo da água, tossindo, mas rindo.

— Bom golpe. — Ela disse, a voz alta o suficiente para que eu pudesse ouvir.

Eu me ajoelhei no tablado, olhando para ela com um sorriso.

— Amigas ou não, eu avisei.

Ela riu, nadando em direção à margem com a ajuda de Mikan, que estava pronto para puxá-la para fora. Enquanto isso, eu me levantava, sentindo o calor da adrenalina ainda correndo pelas minhas veias, mas sabendo que o frio voltaria em breve.

Sensei Yama me observava com aquele olhar indecifrável, mas havia um leve aceno de aprovação em sua postura.

Isso foi apenas um treino, mas para mim, foi mais uma batalha vencida. Uma prova de que, quando o momento chegasse, eu estaria pronta para enfrentar o que quer que viesse.

O frio ainda era cortante, mas agora, com a adrenalina diminuindo, o vento parecia uma lâmina constante sobre a pele. Eu desci do tablado cuidadosamente, cada passo firme no chão congelado, enquanto olhava para Yelena sendo ajudada por Mikan. Ela estava encharcada, tremendo visivelmente, mas rindo enquanto torcia o cabelo molhado.

Peguei uma toalha do cesto próximo e caminhei até ela, estendendo-a sem dizer nada. Ela me olhou, os lábios meio azuis pelo frio, mas com aquele sorriso sarcástico que era tão característico dela.

— Obrigada, campeã. — Disse ela, pegando a toalha e começando a se secar.

Eu apenas revirei os olhos, mas o sorriso em meu rosto entregava que não havia qualquer malícia entre nós. Era assim que funcionávamos, uma mistura de competição feroz e apoio inabalável.

— Você sabe que só foi sorte, né? — Ela continuou enquanto caminhávamos para a margem, deixando os outros alunos se prepararem para suas próprias lutas.

— Claro, claro. — Respondi, puxando meu casaco para me proteger melhor do vento enquanto ela se enrolava na toalha. — Porque quase cair no rio várias vezes foi parte do meu plano genial.

Yelena riu, o som ecoando no ar frio.

— Você devia agradecer por eu ter deixado você ganhar.

Sentamos em um banco de madeira próximo à margem, longe o suficiente do tablado para não interferirmos nos outros, mas perto o bastante para sentir a energia das lutas que continuavam. O cheiro da água gelada misturava-se com o som abafado dos impactos e as ordens de Yama ecoando à distância.

Por alguns minutos, ficamos apenas observando, permitindo que nossas respirações desacelerassem. Finalmente, Yelena quebrou o silêncio, sua voz mais séria agora.

— Você já pensou que a gente não vai ter mais isso na Califórnia?

Virei-me para olhar para ela, mas seus olhos estavam fixos no tablado. Era raro ver Yelena pensativa assim, o peso da responsabilidade claramente pairando sobre ela.

— Quer dizer — Ela continuou —, não vai ter rio congelante. Nem Yama gritando como se o mundo fosse acabar. Nem Kumiko te olhando como se estivesse decidindo se vai te dar um elogio ou te fazer treinar por mais três horas.

Eu ri baixo, mas ela não.

— Vai ser diferente — Concordei, minha voz também carregada de algo mais pesado. — Mas, talvez, a gente precise disso. Precisamos provar que podemos fazer isso sozinhas.

Ela finalmente me olhou, os olhos escuros brilhando com aquela mistura de determinação e dúvida que eu também sentia.

— Sozinhas, Lauren. Esse é o ponto. Aqui, somos parte de algo maior. Lá, somos o começo.

As palavras dela ressoaram em mim. Abrir uma filial do Fierce Dragons era mais do que apenas uma nova etapa. Era construir algo do zero. Tudo que havíamos aprendido aqui precisava ser traduzido em um novo ambiente, com novos alunos, novas dinâmicas. E o peso disso era quase sufocante.

— Você acha que estamos prontas? — Perguntei, mais para ouvir meus próprios pensamentos em voz alta do que para receber uma resposta.

Yelena ficou em silêncio por um momento, olhando para o rio como se a resposta estivesse escondida nas águas turvas. Finalmente, ela suspirou.

— Eu acho que nunca vamos nos sentir prontas de verdade. Mas, é como Yama sempre diz, você não precisa estar pronta, só precisa estar disposta.

Revirei os olhos de novo.

— Claro, Yama. Sempre com as palavras inspiradoras que te fazem querer morrer um pouco por dentro.

Ela riu, e eu sorri, grata pela leveza momentânea. Mas logo, o silêncio voltou, e com ele, o peso da conversa.

— Não é só sobre a responsabilidade — Ela disse, a voz mais baixa agora, quase como se não quisesse que ninguém mais ouvisse. — É sobre o que vamos deixar para trás.

Entendi imediatamente o que ela queria dizer. Não era só o dojô. Era tudo. Era a Rússia, os senseis, os amigos. Era o conforto de saber que, mesmo quando falhássemos, alguém estaria lá para nos corrigir, nos guiar.

— Vamos carregar tudo isso com a gente — Respondi, minha voz firme. — Tudo que aprendemos aqui, tudo que somos... Isso não vai embora só porque estamos mudando de lugar. E não estamos sozinhas.

Ela me olhou, e por um momento, parecia que queria discordar. Mas então, um pequeno sorriso surgiu.

— Tem razão. Além disso, a Califórnia não deve ser tão ruim. Sol, praias, pessoas sorrindo... Vai ser uma mudança interessante.

— E bem diferente do gelo e de Yama. — Eu acrescentei, rindo.

— Definitivamente. — Ela concordou, rindo junto.

O som de alguém caindo no rio chamou nossa atenção de volta para o tablado. Um dos alunos mais jovens emergiu da água, tossindo e rindo, enquanto Mikan se apressava para ajudá-lo. A energia do lugar era contagiante, mesmo com o frio, e por um momento, senti uma pontada de nostalgia antecipada.

— Vamos sentir falta disso. — Yelena disse, como se lesse meus pensamentos.

— Vamos — Concordei. — Mas isso não significa que o que vem a seguir vai ser pior. Apenas... Diferente.

Ela assentiu, e o silêncio entre nós era confortável agora. Ficamos ali por mais alguns minutos, observando, respirando, absorvendo o momento. O frio ainda era cortante, mas com Yelena ao meu lado, senti que podia enfrentá-lo, assim como o que quer que viesse na Califórnia.

Esse era o nosso caminho, e estávamos prontas para trilhá-lo, juntas.

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O dojô estava em silêncio, exceto pelo som ocasional de pés descalços no chão de madeira, enquanto os alunos limpavam e organizavam o espaço ao final do treino. O cheiro de suor e esforço impregnava o ar, uma marca registrada de dias intensos como aquele. A exaustão pesava em cada músculo do meu corpo, mas minha mente estava alerta, ainda processando os movimentos do combate no tablado e o frio gelado do rio. Yelena estava ao meu lado, apoiada contra a parede, esfregando os ombros doloridos.

Estávamos prestes a sair para descansar quando Yama, com sua postura rígida e olhar de aço, chamou todos para o centro do dojô. Seu tom firme e inconfundível fez com que até os mais exaustos se apressassem para obedecer. Os alunos se sentaram no chão em um círculo apressado, a respiração pesada ainda escapando de alguns. Mikan e Kumiko estavam logo atrás dele, com expressões mais suaves, mas igualmente sérias.

— Tenho um anúncio a fazer — Começou Yama, suas palavras cortando o silêncio como uma lâmina.

Meus olhos se encontraram brevemente com os de Yelena. Ela ergueu uma sobrancelha, curiosa, mas não disse nada.

— Aqueles que foram escolhidos para liderar a nova filial do Fierce Dragons já sabem do peso dessa responsabilidade — Continuou Yama, seu olhar fixando-se em mim e em Yelena. — Mas, para garantir que a transição seja bem-sucedida, Kumiko, Mikan e eu estaremos acompanhando vocês à Califórnia. Ficaremos lá pelos próximos dois anos, até que o dojô esteja completamente funcional e que senseis à altura possam assumir.

A surpresa passou pelo rosto de muitos ao redor, incluindo o meu. Até então, a ideia era que eu e Yelena estaríamos por conta própria, com apenas a experiência e o treinamento para nos guiar. Saber que Yama e Kumiko estariam conosco — mesmo que temporariamente — era um alívio, mas também trazia um novo tipo de pressão.

— Isso significa — Ele continuou, com a mesma voz grave —, que o dojô aqui na Rússia ficará sob a liderança de sensei Ivanov durante este período.

A tensão no ar aumentou, quase palpável. Mesmo os alunos mais endurecidos hesitaram ao ouvir o nome de Ivanov. O pai de Yelena tinha uma reputação que ia além do dojô. Ex-militar, seus métodos eram brutais, forjados pela disciplina implacável do exército. Para ele, qualquer fraqueza era uma falha que deveria ser arrancada pela raiz, e ele não se importava com quanto sofrimento isso pudesse causar no processo.

Olhei para Yelena de relance. Seu rosto estava estoico, mas eu sabia o que ela sentia. A relação entre ela e Ivanov era uma corda esticada, pronta para arrebentar. Ela nunca falou muito sobre isso, mas nos momentos em que estávamos sozinhas, ela deixava escapar pequenos fragmentos, a pressão, as expectativas impossíveis, o constante sentimento de que ela nunca seria boa o suficiente aos olhos dele.

Yama deu um passo à frente, seus olhos varrendo cada rosto.

— Partiremos amanhã. Quero que todos estejam preparados. Organizem seus pertences e deixem tudo em ordem. Os próximos meses serão cruciais para determinar o futuro de ambos os dojôs.

O silêncio que seguiu foi pesado. Yama não precisava de respostas ou reações. Ele já sabia que suas palavras tinham causado o impacto necessário. Com um aceno de cabeça para Kumiko e Mikan, ele os dispensou, e os alunos começaram a se dispersar, murmurando baixinho entre si.

Yelena permaneceu onde estava, os olhos fixos no chão, a expressão indecifrável. Sabia que ela estava processando as notícias sobre Ivanov e o que isso significava para ela.

— Ei — Diase suavemente, tocando seu ombro. Ela olhou para mim, piscando rapidamente como se estivesse saindo de um transe. — Vai ficar tudo bem.

Ela riu, mas foi um som seco, sem humor.

— Você não conhece meu pai tão bem quanto eu.

— Talvez não — Admitir. —, mas eu conheço você. E sei que, independentemente do que acontecer, você vai passar por isso. E não precisa fazer isso sozinha.

Por um momento, ela não respondeu. Então, finalmente, suspirou, os ombros relaxando um pouco.

— Obrigada, Ren. Você não sabe o quanto isso significa.

— Sei, sim. — Disse, sorrindo de leve.

Mikan se aproximou nesse momento, com um sorriso de canto e a energia descontraída que parecia ser sua marca registrada.

— Então, estamos indo para a Califórnia, hein? — Ele cruzou os braços, olhando para nós. — Espero que gostem de sol e surfe, porque não tem nada disso aqui.

— Você surfa, Mikan? — Perguntei, tentando aliviar o clima.

Ele deu de ombros.

— Surfar? Não. Mas já caí bastante de prancha pra saber que não sou feito pra isso.

Yelena riu, e eu senti a tensão dela diminuir um pouco mais. Mikan sempre tinha esse efeito nas pessoas, mesmo quando não era sua intenção.

— Bom, se você for cair tanto quanto cai nos treinos, talvez precise de um colete salva-vidas. — Retruquei, entrando na brincadeira.

— Ha-ha — Respondeu ele, fingindo estar ofendido. — Vocês duas vão me agradecer quando eu salvar o dojô com meu charme e carisma irresistíveis.

A conversa leve durou alguns minutos, mas logo voltamos ao trabalho de organizar nossas coisas e preparar tudo para a viagem. Enquanto os outros alunos continuavam limpando o dojo e empacotando equipamentos, eu e Yelena conversávamos sobre o que precisávamos levar, dividindo tarefas.

Havia um peso diferente no ar agora, uma mistura de expectativa e ansiedade. A Califórnia nos esperava, mas também a responsabilidade de honrar tudo o que havíamos aprendido aqui. E para Yelena, havia também o desafio de lidar com a presença de Ivanov, mesmo à distância.

Quando finalmente saímos do dojo naquela noite, o vento parecia ainda mais gelado, mas também havia uma energia que me mantinha aquecida. Amanhã, tudo mudaria. E, mesmo com todos os desafios à frente, sabia que estava pronta para enfrentá-los. E, mais importante, sabia que não estava sozinha.


Obra autoral ©

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