09. You came
Quando ele disse aquilo,"porque eu me importo", fiquei paralisada. Não era o tipo de coisa que você espera ouvir, especialmente de alguém como Kenny. Ele sempre foi tão... Distante, tão fechado, e às vezes até frio comigo. Achei que ele estava falando por impulso, mas quando olhei nos olhos dele, percebi que era sincero. Isso me deixou mais perdida ainda.
Eu queria dizer algo, mas nada vinha à minha mente. Meus pensamentos estavam embaralhados, minha garganta parecia seca. Quando finalmente abri a boca, tudo que consegui murmurar foi um "tudo bem". Nem sei como as palavras saíram.
Olhei para trás uma última vez, para a luz ainda acesa na janela da sala da minha casa. O som abafado de vozes altas ainda ecoava. Respirei fundo, tentando engolir o nó na garganta, e segui Kenny para dentro da casa dele.
Assim que entrei, a atmosfera era completamente diferente da minha casa. Era simples, mas parecia acolhedora. O cheiro de algo fresco, talvez algum tipo de produto de limpeza, ainda pairava no ar. No entanto, o desconforto entre mim e Kenny era palpável. Eu sentia como se cada passo ecoasse mais alto do que deveria, e meu coração parecia estar batendo tão forte que ele podia ouvir.
Quando passamos pela sala, vi o irmão dele parado perto da porta da cozinha. Ele estava segurando um copo, provavelmente de água, mas o olhar dele estava fixo em mim, a expressão confusa.
— O que significa isso? — Ele perguntou, com as sobrancelhas franzidas, apontando para mim.
Kenny se adiantou antes que eu pudesse dizer qualquer coisa.
— Ela vai passar a noite aqui.
O irmão dele parecia mais confuso ainda.
— E vai dormir onde, exatamente?
— No meu quarto — Kenny respondeu com firmeza, como se fosse óbvio.
Minha reação foi imediata. Balancei a cabeça, cruzando os braços e dando um passo à frente.
— Não, não. Eu posso dormir no sofá, tá bom? Não precisa fazer isso.
Kenny me encarou, com aquela teimosia estampada no rosto que eu já estava começando a reconhecer.
— Você vai dormir no meu quarto. Eu fico no sofá. Sem discussões.
Revirei os olhos, frustrada com a insistência dele, mas acabei soltando uma risadinha nervosa.
— Você é bem mandão, sabia?
Ele não respondeu, apenas deu de ombros e caminhou para pegar alguma coisa na cozinha. Enquanto isso, o irmão dele ainda me olhava com uma expressão que era uma mistura de curiosidade e suspeita.
— O que tá acontecendo aqui? — O irmão perguntou novamente, agora dirigindo a pergunta para mim.
Eu dei um pequeno suspiro e tentei sorrir, mesmo que fosse difícil.
— É só... Uma situação complicada, sabe?
Ele arqueou uma sobrancelha, claramente ainda confuso, mas acabou apenas dando de ombros, murmurando algo como "tá bom" antes de sair da sala.
Quando Kenny voltou, ele tinha um cobertor e um travesseiro nas mãos. Ele colocou tudo no sofá sem dizer nada, mas dava pra ver que ele estava desconfortável também. Eu quase quis rir da situação, porque era estranho demais estar na casa dele assim, mas ao mesmo tempo, me sentia um pouco aliviada por não ter que voltar para a minha.
— Olha, sério, eu posso ficar no sofá. Não tem problema. — Minha voz saiu mais suave agora, sem toda a teimosia de antes.
Kenny virou para mim, me encarando com aquela expressão de determinação que parecia tão característica dele.
— Já falei que você vai dormir no quarto. Só vai.
Eu bufei, jogando as mãos para o alto em derrota.
— Tá bom, tá bom. Você venceu.
Enquanto ele me levava até o quarto, o desconforto voltou a crescer entre nós. Ele abriu a porta e acendeu a luz, revelando um quarto simples, mas arrumado. Era o oposto de como eu imaginava o quarto de um garoto. A cama estava feita, e havia algumas revistas e um videogame no canto, com um par de tênis perfeitamente alinhado perto da porta.
— É... Aqui. — Ele parecia um pouco sem jeito enquanto apontava para a cama.
— Valeu, Kenny. — Murmurei, entrando no quarto e olhando ao redor. Eu me virei para ele, tentando aliviar um pouco a tensão. — Prometo que não vou mexer em nada.
Ele riu de leve, mas parecia mais nervoso do que qualquer outra coisa.
— Tá.... Boa noite.
Antes de fechar a porta, ele hesitou por um momento, como se quisesse dizer algo. Mas então balançou a cabeça e saiu, fechando a porta atrás de si.
Sentei na beira da cama, olhando para as paredes e pensando no que tinha acabado de acontecer. Tudo parecia surreal, mas de alguma forma, estar aqui me fez sentir um pouco mais segura. Talvez Kenny realmente se importasse, afinal. E talvez, só talvez, eu estivesse começando a entender o porquê.
Deitei na cama, afundando no colchão macio. Era estranho, diferente da minha cama em casa, mas de algum jeito, mais confortável. Talvez fosse porque eu sabia que, pelo menos por uma noite, não precisaria me preocupar com as paredes finas, com os gritos do outro lado da porta, ou com os olhares de julgamento do meu pai.
Peguei meu celular, que estava começando a vibrar novamente. A tela mostrava várias mensagens de Anthony. Algumas eram desculpas, outras perguntas, e até uma ou duas que pareciam ter sido escritas no impulso, cheias de erros de digitação. Rolei as mensagens sem responder. Não sabia o que dizer, e sinceramente, não queria me desgastar com isso agora.
Havia também uma mensagem de Silver. Ele perguntava se eu queria continuar as aulas extras. Ele disse que eu estava fazendo progresso e que não queria que eu perdesse o ritmo. Suspirei, sentindo o peso do dia inteiro apertar meu peito. Não respondi. Talvez eu respondesse amanhã.
Abri o Spotify em busca de algo que pudesse me distrair. Minha playlist favorita apareceu na tela. Chamei de "Músicas pra Sobreviver," porque era exatamente isso que eu fazia quando as escutava. Sobrevivia. Coloquei no modo aleatório e esperei.
A primeira música a tocar foi "Every Breath You Take", do The Police. No instante em que a melodia começou, um sorriso pequeno e involuntário surgiu no meu rosto.
Minha mãe adorava essa música. Lembro dela me puxando para dançar na cozinha quando eu ainda era só uma garotinha. A gente estava tentando fazer um carbonara, ou melhor, ela estava tentando e eu só atrapalhava. Ela dizia que eu era sua pequena assistente-chefe, mesmo quando eu fazia mais bagunça do que ajudava.
Eu podia ouvir a risada dela como se fosse ontem. O som leve e sincero, como se nada no mundo pudesse nos alcançar ali, naquele momento. Eu me lembrava de como os raios de sol entravam pela janela, iluminando seu rosto enquanto ela mexia no molho, e depois largava tudo para me rodopiar no meio da cozinha.
As lembranças vieram como uma avalanche. Eu sentia falta dela. Da versão dela que parecia feliz, inteira. Antes das coisas piorarem. Antes do meu pai começar a perder a paciência com tudo, inclusive com ela. Antes dela ficar mais doente, mais cansada, e mais... Distante.
As lágrimas começaram a brotar nos meus olhos sem aviso, ameaçando escorrer. Eu mordi o lábio, tentando me segurar, mas a melodia da música e as lembranças estavam arrancando toda a força que eu tinha.
Respirei fundo, tentando engolir o choro. Eu precisava ser forte. Por mim. Por ela. Não era o momento para desmoronar. Era o momento para lutar.
Olhei para o teto, os olhos ainda marejados, mas com uma determinação crescente no peito. Eu não sabia como, mas eu tinha que encontrar uma maneira de mudar as coisas. Para mim e para ela.
Fechei os olhos, deixando a música continuar tocando, tentando absorver a coragem que eu sempre imaginava que minha mãe tinha. Afinal, ela também nunca desistiu de lutar. Mesmo quando parecia impossível.
⋆౨ৎ˚ ⟡˖
Na manhã seguinte, acordei com a luz do sol atravessando as cortinas do quarto de Kenny. Por um momento, quase esqueci onde estava, mas assim que me sentei na cama, a realidade caiu sobre mim como uma tonelada de tijolos.
Passei as mãos pelo rosto, tentando despertar completamente, e me levantei. Precisava lavar o rosto, ao menos. Fui até o banheiro, olhei no espelho e suspirei. Meu cabelo estava um caos. Não era exatamente novidade, mas depois de uma noite difícil, parecia pior.
Molhei o rosto com água fria, tentando tirar aquela sensação de cansaço grudada em mim. Escovei os dentes com o dedo, já que obviamente não tinha trazido minha escova de dentes, e improvisei com o que dava. Olhei para a pia, notando uma escova de cabelo ali, provavelmente de Kenny. Peguei-a por um segundo, mas ao imaginar meus fios embaraçados enroscados nela, decidi que os dedos seriam minha melhor opção. Passei os dedos pelos fios, desembaraçando o que consegui, e amarrei o cabelo em um coque meio desajeitado. Não era perfeito, mas servia.
Depois disso, voltei para o quarto, arrumei a cama como pude e saí. Segui pelo corredor até a cozinha, onde o cheiro de comida quente tomou conta do ambiente. Meu estômago roncou baixinho, e só então percebi que estava faminta.
Quando entrei, vi Kenny sentado no balcão, comendo algo e Shawn de costas para mim, mexendo em uma frigideira. Ele percebeu minha presença e se virou, me lançando um sorriso caloroso.
— Bom dia, Lizzie — Disse ele, com um tom despreocupado. — Panquecas?
Dei um passo para trás, hesitante.
— Ah, não quero incomodar, de verdade...
Shawn apenas riu, como se o que eu tivesse dito fosse a coisa mais absurda do mundo.
— Ótimo, então duas panquecas pra você.
Aquele comentário me arrancou um sorrisinho. Não tinha muito o que argumentar contra isso.
— Obrigada — Murmurei, me sentando ao lado de Kenny.
Ele estava comendo em silêncio, mas quando percebeu que eu tinha sentado, parou de mastigar por um momento e perguntou.
— Dormiu bem? Conseguiu pegar no sono?
Assenti, devolvendo um pequeno sorriso.
— Sim, obrigada. Foi tranquilo.
Ele apenas balançou a cabeça, voltando a comer. Pude notar o esforço em sua expressão, como se quisesse dizer mais alguma coisa, mas se segurasse.
Shawn colocou um prato de panquecas na minha frente, com manteiga derretendo no topo e xarope de bordo escorrendo pelas laterais.
— Aqui está. Se precisar de mais, só falar.
— Obrigada — Repeti, dessa vez com mais firmeza.
Peguei o garfo e comecei a comer, e pela primeira vez em dias, me senti um pouco melhor. Era uma sensação estranha estar ali, com Kenny e Shawn, como se fosse parte daquela rotina.
Depois de alguns minutos, olhei para o relógio na parede e suspirei.
— Eu preciso voltar pra casa. Ainda preciso me arrumar antes do horário da escola.
Kenny, com a boca cheia, apenas assentiu. A cena era quase cômica, mas eu apenas peguei meu prato vazio, lavei-o rapidamente e me preparei para sair. Shawn se ofereceu para me dar uma carona, mas eu recusei.
— Eu vou com ela — Kenny disse de repente, levantando-se.
Olhei para ele, surpresa, mas assenti. Talvez fosse melhor assim. Enquanto saíamos, senti um pequeno peso no peito, mas também um conforto estranho. Por mais que minha vida estivesse caótica, era bom saber que alguém ainda se importava, mesmo que fosse do jeito complicado e cheio de tropeços de Kenny.
Enquanto caminhávamos até minha casa, o silêncio era confortável, mas também cheio de significados. Kenny estava comigo, e isso era algo que não esperava que acontecesse tão cedo. Quando chegamos perto do meu quintal, parei de repente, olhando ao redor para me certificar de que ninguém estava nos observando.
— Acho melhor você esperar aqui — Falei, minha voz mais baixa do que o normal. — Meu pai ainda deve estar em casa, e ele... Bem, ele não gosta muito que eu tenha... Muitos amigos garotos.
Kenny deu uma risadinha curta, aquela que ele sempre dava quando algo parecia levemente absurdo, mas apenas assentiu, recuando alguns passos para ficar longe da vista da porta.
Eu respirei fundo, tentando reunir coragem, e fui até a porta. A ideia de entrar depois de tudo o que aconteceu na noite anterior fazia meu estômago revirar, mas eu precisava. Assim que abri a porta, fui recebida pelo som familiar do jornal sendo dobrado e desdobrado. Meu pai estava na mesa, tomando café, o rosto concentrado nas páginas à sua frente. Ele levantou o olhar assim que me viu entrar.
— Onde você estava? — Perguntou, com aquele tom que não era exatamente agressivo, mas estava sempre carregado de autoridade.
Eu engoli seco, mantendo a voz o mais tranquila possível.
— Dormi na casa da Sheila.
Ele estreitou os olhos, como se tentasse captar qualquer falha na minha explicação, mas para meu alívio, não fez mais perguntas. Apenas voltou sua atenção para o jornal, como se eu não estivesse mais ali.
Minha mãe estava encostada no balcão da pia, segurando uma xícara de café com leite. Seus olhos pareciam mais cansados do que o habitual, mas ela ainda tinha aquele sorriso suave que me fazia sentir um pouco mais segura.
— Você se divertiu ontem? — Perguntou, a voz baixa e quase apática.
Eu forcei um sorriso, querendo afastar qualquer preocupação dela.
— Claro, foi bem legal.
Ela assentiu lentamente, bebendo mais um gole de café, enquanto eu segui direto para o meu quarto, dizendo que precisava me arrumar para não me atrasar para a escola. Assim que fechei a porta, me encostei contra ela, deixando escapar um longo suspiro.
Odiava mentir para minha mãe. Sempre me dava a sensação de que estava carregando algo pesado demais, mas ao mesmo tempo, sabia que era a coisa mais fácil a fazer. Se ela soubesse de tudo, provavelmente ficaria ainda mais desgastada, e isso era a última coisa que eu queria.
Olhei para minha cama, ainda desarrumada, e por um momento lembrei do quarto de Kenny. Lembrei da maneira como ele tentou me ajudar, mesmo quando provavelmente estava bravo comigo. Talvez ele realmente quisesse ser meu amigo, por mais que tentasse evitar isso. Esse pensamento me fez sorrir.
Fui rápida em me arrumar, colocando o uniforme da escola e pegando minha mochila. Passei pela cozinha novamente, pegando uma maçã da fruteira, e murmurei um "tchau" apressado antes de sair pela porta.
Assim que saí, avistei Kenny encostado em uma árvore perto da calçada, as mãos nos bolsos e a expressão distante, mas ele se animou ao me ver acenando. Corri até ele, mordendo a maçã e sentindo meu peito um pouco mais leve.
— Aí.... Finalmente. — Falei, respirando fundo.
Ele apenas sorriu, de um jeito meio torto, e começamos a caminhar em direção à escola. Dessa vez, eu me sentia... mais eu. Comecei a falar sobre tudo e qualquer coisa, sobre uma música que não saía da minha cabeça, sobre como a aula de matemática era insuportável, sobre o quanto queria comer donuts no almoço. Era como se o peso das últimas horas estivesse começando a diminuir.
Kenny, como sempre, respondia de forma breve, mas diferente de antes, ele estava sorrindo mais, até rindo das coisas que eu dizia. Cada vez que eu o via assim, sabia que estava conseguindo alcançá-lo, quebrando aquela barreira que ele tanto tentava manter.
Chegamos à escola mais rápido do que eu esperava, e pela primeira vez em muito tempo, eu me sentia um pouco mais feliz. Talvez as coisas ainda fossem complicadas, mas pelo menos agora eu sabia que não estava completamente sozinha.
Os corredores da escola estavam tão barulhentos quanto sempre, mas a energia entre eu e Kenny parecia tranquila. Pelo menos, até ele parar de repente, o rosto antes mais animado se fechando em uma carranca irritada. Franzi o cenho, confusa, e segui seu olhar. Foi aí que eu vi Anthony vindo na nossa direção, os olhos fixos em mim.
Eu já sabia que aquilo ia dar problema. Kenny ficou tenso ao meu lado, como se estivesse pronto para saltar, mas Anthony sequer olhou para ele. Em vez disso, parou na minha frente e, com o tom mais casual do mundo, perguntou:
— Lizzie, a gente pode conversar... A sós?
Eu nem tive tempo de responder antes que Kenny soltasse uma risada curta, carregada de sarcasmo.
— A gente tá bem aqui. Não precisa arrastar ela pra um canto pra fazer sei lá o quê.
Anthony finalmente olhou para ele, o rosto já se contorcendo em irritação.
— Qual é o seu problema?
Kenny cruzou os braços, dando um passo à frente.
— Quer saber qual é o meu problema? Eu posso te mostrar.
Ele cerrou os punhos, claramente pronto para começar algo. Eu revirei os olhos, impaciente.
— Já vai começar a palhaçada logo cedo? — Falei, encarando os dois com aquele olhar que eu sabia que os fazia parar na hora.
Me virei para Kenny, apontando para o corredor.
— Vai pra aula, Kenny. Eu preciso falar com ele.
Ele me lançou um olhar irritado, bufou, mas acabou se afastando, resmungando algo que eu não consegui entender. Suspirei aliviada e me virei para Anthony, que já estava com aquele olhar meio satisfeito, como se tivesse vencido alguma disputa.
Não pude evitar. Dei um leve empurrão no ombro dele, o suficiente para tirá-lo do transe.
— Você sempre faz isso, né? Sempre pedindo pra alguma coisa ruim acontecer, sempre provocando.
— Eu não fiz nada — Ele disse, levantando as mãos em defesa. — Ele que sempre tá atrás de confusão.
— Tá bom, Anthony. — Falei, apontando para o corredor. — Anda logo, antes que eu mude de ideia.
Ele sorriu um pouco, mas obedeceu, caminhando ao meu lado em direção à sala. Eu sabia que ele não ia perder tempo e começar a falar, e não deu outra.
— Por que você não respondeu as minhas mensagens? — Perguntou, o tom preocupado, mas também curioso. — Tá tudo bem? Vi você ontem com o Silver.
Suspirei, passando a mão pelos cabelos e tentando organizar os pensamentos. Não queria entrar em detalhes demais.
— Tá tudo bem. — Minha voz saiu firme, mas não queria me alongar muito. — Só aconteceram uns problemas em casa, e eu precisei voltar mais cedo. O Silver estava passando por perto, então aproveitei a carona.
Anthony parou por um momento, como se estivesse processando minhas palavras, antes de balançar a cabeça.
— Lizzie, o meu pai conhece o Silver. Ele é um maluco. Um maníaco. Controlador. Você devia ficar longe dele.
Fiquei parada, encarando Anthony com as sobrancelhas erguidas. Era sério isso? Ele realmente achava que tinha o direito de dizer essas coisas pra mim?
— Engraçado você dizer isso — Comecei, o tom mais afiado do que eu pretendia. — Você já disse a mesma coisa sobre o Kenny, lembra? Que ele era perigoso, problemático, isso e aquilo.
Anthony desviou o olhar, claramente desconfortável.
— E sabe o que aconteceu? — Continuei, cruzando os braços. — Ele provou ser o contrário de tudo que você falou. Então, talvez seja melhor medir suas palavras antes de sair por aí julgando as pessoas.
Ele abriu a boca pra dizer algo, mas acabou fechando de novo, parecendo sem resposta. Suspirei, tentando deixar a irritação de lado.
— Olha, eu sei que você tá tentando me proteger ou sei lá o quê, mas eu sei cuidar de mim, tá bom? — Disse, mais suavemente dessa vez.
Anthony apenas assentiu, por mais que contra sua vontade, e continuamos andando em silêncio até a sala. Por mais que ele fosse meu amigo, às vezes ele tinha que entender que nem tudo girava ao redor da opinião dele.
Entrar na sala de aula depois daquela conversa com Anthony foi como passar direto para um campo minado. De um lado, Anthony ainda com aquela expressão fechada, provavelmente remoendo o que eu disse. Do outro, Kenny, que provavelmente estava mais irritado com a simples ideia de eu ter dado atenção ao Anthony. E eu? Eu não ia ser babá emocional de nenhum dos dois.
Então, fiz o mais óbvio, sentei longe de ambos. Bem no meio da sala, enquanto Anthony estava no fundo e Kenny mais perto da janela. Assim, ninguém poderia começar a se alfinetar por causa de onde eu estava ou de "quem eu preferia". Só de pensar nos dois agindo como crianças, eu já queria revirar os olhos de novo. Melhor manter a paz, mesmo que fosse com distância.
A aula passou devagar, como sempre, e eu me peguei olhando para o relógio mais vezes do que deveria. Por fim, o sinal tocou, e eu quase saí correndo da sala. Mas, claro, Kenny estava esperando na saída, me encostando o ombro antes mesmo de eu perceber sua presença.
— Tá tudo bem? — Ele perguntou, a voz carregada com uma preocupação que parecia genuína.
Franzi o cenho, tentando entender o que ele queria dizer.
— Sim, por quê? Eu não pareço estar bem?
Soltei uma risada curta, mas ele balançou a cabeça negativamente, esboçando um pequeno sorriso.
— Não é isso. Só... Fiquei preocupado, sabe, por causa do Anthony. Ele parecia irritado, e se tivesse descontado a raiva em você... — Kenny parou, como se estivesse ponderando a próxima frase. — Eu ia matar aquele moleque.
Revirei os olhos, não conseguindo segurar uma risada. Dei um tapinha no ombro dele, balançando a cabeça.
— Relaxa aí, herói. Ele não tentou me matar, acredite.
Usei o tom mais irônico possível, mas ele pareceu levar a sério mesmo assim, olhando para longe como se ainda estivesse planejando algo. Antes que ele pudesse se afundar mais nas próprias ideias, comecei a caminhar para a saída.
E quando já estava quase virando o corredor, me virei de repente e apontei na direção dele.
— Sorveteria Wheels, às 16h15. Não esquece.
Kenny franziu o cenho, claramente confuso, mas não disse nada. Eu não dei espaço pra isso, só acenei e continuei andando. Melhor não dar tempo para ele pensar demais sobre o convite... Ou eu mesma pensar demais.
Assim que saí da escola, o nervosismo começou a bater. Eu praticamente chamei ele pra um encontro. Bom, não era um encontro de verdade, certo? Certo? Era só um sorvete, algo casual. Só que, e se ele achasse que era um encontro?
Balancei a cabeça, tentando afastar os pensamentos enquanto seguia para o mercado. Minha mãe tinha me pedido pra passar lá, e eu não podia ignorar um pedido dela, especialmente com tudo que já estava acontecendo em casa. Hoje, pelo menos, eu não precisava treinar. O dojô estava fechado, já que Silver e Kreese estavam, como Silver mesmo disse, "tratando de negócios".
Enquanto andava, a ideia do sorvete continuava martelando na minha cabeça. Era só um sorvete. Não tinha nada de mais. Mas, então, por que eu estava ansiosa? Por que meu coração parecia acelerar cada vez que eu pensava em como Kenny poderia interpretar aquilo?
Cheguei ao mercado ainda perdida nesses pensamentos, pegando a lista que minha mãe tinha feito. Enquanto caminhava pelos corredores, a ansiedade deu lugar a um sorriso tímido. Talvez fosse bom, afinal. Talvez um sorvete fosse tudo o que precisávamos pra... Sei lá, consertar as coisas. Seja lá o que isso significasse.
Quando voltei do mercado, meu alívio ao ver que meu pai já tinha saído foi quase palpável. Não havia sinal dele, e provavelmente demoraria a voltar, como sempre fazia quando saía para "resolver negócios", o que em outras palavras, era beber com seus amigos. Isso me deu um respiro. Passei pela sala, coloquei as sacolas na cozinha, e, ao olhar o relógio na parede, percebi que já eram 16h. 16h!
— Ah, que droga... — Murmurei para mim mesma, sentindo o pânico começar a bater.
Eu tinha perdido muito tempo no mercado, tentando descobrir se minha mãe queria margarina com sal ou sem sal — quem escreve "manteiga" numa lista sem especificar? —, e também debatendo mentalmente qual produto de limpeza ela tinha em mente. Agora, faltavam só quinze minutos para o horário combinado.
Saí correndo pela sala como um raio, quase derrubando uma cadeira no processo. Minha mãe, que estava sentada no sofá, ergueu a cabeça com um olhar alarmado.
— Lizzie? O que foi? Por que tanta pressa?
— Nada, mãe, só... Treino! Tô atrasada! — Gritei, já disparando para o quarto.
A resposta parecia plausível o suficiente, e antes que ela pudesse fazer mais perguntas, eu estava dentro do quarto, jogando minha bolsa na cama e vasculhando o guarda-roupa. Peguei o primeiro vestido que vi, algo simples e leve, e fui direto ao banheiro para tentar me arrumar.
Enquanto penteava os meus cabelos, testando alguns penteados e consequentemente desistindo de todos, comecei a me perguntar, por que eu estava me esforçando tanto? Era só um sorvete. Com um amigo. Nem era como se fosse um encontro ou algo do tipo. Mas então, ao passar um pouco de perfume e ajeitar o vestido no espelho, percebi que eu não queria parecer desleixada. Não com Kenny. Não depois de tudo.
Respirei fundo, tentando não pensar demais nisso, e saí de casa apressada. A sorveteria não era longe, o que significava que eu chegaria lá a pé em tempo. Cheguei ofegante, parando em frente ao lugar para me recompor antes de entrar.
Foi então que o vi. Kenny estava lá, parado perto da entrada, olhando para o celular. Eu ri baixinho ao vê-lo. Ele parecia mais relaxado do que o habitual, com a postura menos tensa. Acenei com a mão, chamando a atenção dele enquanto me aproximava.
— Ei! — Chamei, sorrindo ao parar ao lado dele.
Ele levantou o olhar do celular, me encarando por um segundo como se estivesse processando algo.
— Você tá... Diferente.
Franzi o cenho, rindo um pouco sem graça.
— Ok... Vou levar isso como um elogio.
Ele deu de ombros, um sorrisinho de lado no rosto.
— É um elogio.
Senti minhas bochechas queimarem, mas fingi que estava tudo normal, desviando o olhar por um segundo.
— Você veio.... Pensei que você não viria. — Comentei, voltando a encará-lo.
— Você chamou. — Ele respondeu de forma direta, como se fosse óbvio.
E era isso que me fazia gostar dele, acho. Kenny era tão... Simples, no melhor sentido possível. Não havia rodeios ou joguinhos. Ele simplesmente estava ali porque eu pedi, e de alguma forma, isso fazia eu me sentir... Bem.
— Tá legal, então. Vamos entrar?
Ele assentiu, e juntos atravessamos a porta da sorveteria. Eu tentava parecer calma, mas por dentro, meu coração parecia estar acelerado demais para algo que "não era um encontro".
Obra autoral ©
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