03. I know you
O despertador tocou, mas eu já estava acordada. A segunda-feira chegou mais rápido do que eu esperava, e com ela, uma mistura esquisita de ansiedade e receio. Meu peito parecia cheio de algo que não sabia se era medo ou apenas a expectativa do desconhecido. A luz que atravessava as frestas da cortina parecia mais fria do que acolhedora, me lembrando que aquele era um dia completamente novo, numa escola completamente nova, cheia de rostos completamente desconhecidos.
Levantei com preguiça, arrastando os pés no chão de madeira do quarto. Fiquei alguns minutos escolhendo uma roupa para o dia, optando por algo confortável: uma camiseta branca básica e jeans. Enquanto calçava meus tênis, olhei para o espelho pequeno apoiado na cômoda. Passei a mão pelo cabelo, prendendo-o em um rabo de cavalo simples, e respirei fundo, como se isso pudesse tirar o peso das minhas preocupações. Hoje é só o primeiro dia. Sobreviveu ao primeiro, sobrevive ao resto.
A casa estava estranhamente silenciosa, como se a discussão da noite anterior tivesse drenado toda a energia do lugar. Passei pela porta do meu quarto e caminhei até a cozinha, onde esperava encontrar pelo menos um café pronto, mas as bancadas estavam vazias. As únicas testemunhas do caos recente eram os copos sujos na pia e uma cadeira meio tombada na mesa.
Segui até a sala, e lá estava minha mãe, sentada no sofá, com a mesma expressão cansada que parecia não largar seu rosto nos últimos meses. Ela olhava para a televisão, mas seus olhos estavam desfocados, como se vissem algo muito além da tela.
— Mãe? — Chamei, hesitante, parando perto da porta.
Ela demorou a responder, mas virou o rosto em minha direção. Seus olhos pareciam fundos, exaustos, mas ela tentou sorrir, ainda que o gesto não tivesse força.
— Pega um achocolatado na geladeira ou... Uma maçã — Disse ela, com a voz baixa e arrastada.
Eu queria dizer algo para animá-la, mas as palavras não vieram. Caminhei até ela e a abracei levemente, tentando passar um pouco de carinho, mesmo que ela não conseguisse retribuir como antes.
— Vou indo. Te amo, mãe. — Disse, forçando um sorriso para ela.
— Te amo também, Lizzie — Ela murmurou, desviando o olhar.
Olhei ao redor rapidamente, mas meu pai não estava em casa. Suspirei, tentando não pensar muito nisso, e fui até a geladeira. Peguei uma maçã, a coloquei na boca e, com minha mochila jogada no ombro, segui para a frente da casa, onde minha bicicleta esperava.
Enquanto pedalava em direção à nova escola, o ar frio da manhã me atingiu, mas não era suficiente para aliviar o nó que apertava meu estômago. Vai dar tudo certo, pensei, repetindo como um mantra. O silêncio da casa ficava para trás, mas a incerteza de como seria o meu dia continuava comigo.
Pedalei lentamente até o final da rua, sentindo o vento fresco no rosto, mas minha mente ainda estava uma bagunça de pensamentos sobre o que me esperava na escola. Foi quando o vi, andando a poucos metros de distância, com a mochila jogada sobre um dos ombros e o olhar meio cabisbaixo, como se carregasse o peso do mundo junto com os livros. O garoto da loja de conveniência, pensei, reconhecendo-o instantaneamente.
Não resisti. Freiei com tudo a bicicleta ao lado dele, mas fiz isso com tanto ímpeto que o tranco quase me jogou no chão. Ele deu um pequeno salto, assustado, olhando para mim com os olhos arregalados.
— Foi mal! — Disse, soltando uma risadinha ao me equilibrar de novo. — Não queria te assustar.
Ele ficou parado, ainda tentando entender o que tinha acabado de acontecer, e então balançou a cabeça, como se decidisse não questionar minha entrada dramática.
— Tá tudo bem — Respondeu, ajeitando a alça da mochila com um gesto rápido.
— Você tá indo pra escola? — Perguntei, mesmo sabendo a resposta. Eu só queria puxar assunto, qualquer coisa que quebrasse o gelo.
— Sim — Ele respondeu, de forma seca, mas sem parecer rude.
Eu sorri, tentando aliviar a tensão. Ele não parece do tipo que fala muito, ou ele só está farto por eu falar tanto.
— A gente ainda nem se apresentou direito. — Soltei o guidão da bicicleta e estendi a mão para ele, em um gesto confiante. — Elizabeth Dankworth. Mas pode me chamar de Lizzie.
Ele olhou para minha mão por um momento, hesitante, como se não soubesse bem o que fazer. Então, deu um sorriso fraco e a apertou rapidamente.
— Kenny Payne.
O aperto de mão foi breve, mas me deixou satisfeita. Era um progresso.
— Bom, Kenny Payne, acho que somos vizinhos agora. E provavelmente vamos estudar juntos também — Continuei, apoiando o pé no chão para não perder o equilíbrio.
Ele deu de ombros, ainda meio desconcertado, mas parecia menos tenso do que antes.
— É, parece que sim.
O silêncio que se seguiu poderia ter sido estranho, mas não me incomodou. Ele parecia do tipo reservado, o oposto de mim, mas isso só me deixava mais curiosa. Enquanto ajustava o guidão, continuei andando ao lado dele, pedalando devagar para acompanhar seu ritmo.
— Então, Kenny, qual é a escola que a gente tá indo mesmo? — Perguntei, com um sorriso brincalhão.
Ele finalmente soltou uma risadinha curta, balançando a cabeça.
— Você fala como se não soubesse.
Eu sorri mais abertamente. Talvez começar o dia com um vizinho ao meu lado não fosse tão ruim assim.
Eu olhei para Kenny, ajustando o guidão da bicicleta enquanto andava devagar ao lado dele. Mesmo que ele fosse um pouco fechado, parecia melhor do que enfrentar o primeiro dia de escola sozinha.
— Ei, que tal a gente ir junto? — Sugeri, com um sorriso casual.
Ele hesitou, desviando o olhar para frente e franzindo a testa, como se ponderasse a ideia. Por um segundo, achei que ele fosse inventar uma desculpa, mas então ele encolheu os ombros.
— É... Tanto faz. — Respondeu, com a voz baixa, mas sem muita resistência.
Eu sabia que não era o tipo de entusiasmo que se espera, mas era o mais próximo de um sim que eu conseguiria. Sorri para ele, mesmo assim. Ok, Lizzie, talvez ele não seja o cara mais simpático do mundo, mas é o único que eu conheço aqui. Melhor do que nada.
Ajustei minha mochila no ombro e comecei a andar com a bicicleta ao lado dele. O silêncio entre nós era confortável, mas eu não conseguia ficar quieta por muito tempo.
— Então, você tá ansioso pro ensino médio? — Perguntei, tentando puxar conversa.
Ele apenas deu de ombros, olhando para a calçada à frente.
— Não muito.
— Eu tô apavorada. Quer dizer, é tudo novo, né? Nova cidade, nova escola... — Suspirei, deixando as palavras escaparem em um fluxo natural. — Tenho medo de ser aquela garota esquisita que ninguém quer conversar.
Kenny finalmente olhou para mim, embora por poucos segundos, antes de voltar a encarar o caminho.
— Não acho que você vai ser esquisita.
O jeito como ele disse isso, simples e direto, me pegou de surpresa. Não era exatamente um elogio, mas parecia honesto, o que já era alguma coisa.
— Obrigada — Respondi, sorrindo, antes de continuar. — Mas, sério, como é a escola? Grande? Pequena? Como são os professores?
Ele deu um suspiro leve, como se não tivesse muita vontade de entrar nos detalhes.
— É... Normal. Grande, mas não gigante. Tem gente legal, tem gente que não é. Os professores? Uns bons, outros nem tanto.
— Então, basicamente, como qualquer outra escola — Concluí, rindo.
— Basicamente.
Continuei a enchê-lo de perguntas, quase como se quisesse preencher o silêncio com minha ansiedade. Perguntei sobre os clubes, os esportes, o que os alunos costumavam fazer no intervalo. Ele respondia vez ou outra, com frases curtas, ou apenas balançava a cabeça em concordância. Mesmo assim, não parecia irritado, só reservado, como alguém que não estava acostumado a falar muito.
— Sabe, se você continuar quieto assim, vou acabar achando que você não gosta de mim — Brinquei, tentando aliviar o clima.
Ele finalmente deu um sorriso discreto, quase imperceptível, e balançou a cabeça.
— Não é isso. Só não sou muito de falar.
— Ah, então é bom que eu seja, não é? — Retruquei, rindo. — Acho que a gente faz uma boa dupla, nesse caso.
Ele não respondeu, mas parecia menos tenso do que antes, como se começasse a se acostumar com a minha presença. Enquanto nos aproximávamos da escola, meu nervosismo começava a diminuir. Não sabia se seria um dia fácil ou não, mas pelo menos tinha Kenny ao meu lado. Mesmo que ele fosse o tipo mais calado, já era um começo.
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Assim que chegamos à escola, senti que algo mudou no Kenny. O ritmo de seus passos diminuiu, seu maxilar parecia tenso, e o olhar que antes parecia apenas neutro agora era carregado de algo mais... pesado. Quando olhei para ele, percebi que ele fixava a atenção em um ponto mais à frente, os olhos semicerrados como se tentasse queimar a cena com o olhar.
— Ei, tá tudo bem? — Perguntei, mas ele não respondeu.
Segui a direção do seu olhar e meu coração deu um salto de surpresa. No meio do pátio, junto a um grupo de outros alunos, estava Anthony LaRusso.
— Anthony! — Gritei, animada, esquecendo completamente de Kenny por um momento. Desci rapidamente da bicicleta e corri até ele, meu alívio tomando conta de mim como uma onda quente. Durante as férias, tínhamos nos conhecido em uma colônia de férias, e depois disso, trocamos mensagens sem parar. Ter alguém conhecido aqui era como um presente dos céus.
— Lizzie! — Anthony sorriu, surpreso, quando me viu. Ele abriu os braços para um abraço rápido, que aceitei de bom grado.
— Eu nem acredito que você estuda aqui! — Exclamei, rindo. — Você não me disse nada!
— Achei que ia ser uma surpresa — Ele respondeu, dando de ombros. — Parece que funcionou.
Antes que eu pudesse dizer mais alguma coisa, senti o peso de algo estranho no ar. Quando me virei para chamar Kenny, vi que ele se aproximava de nós, mas seu rosto parecia esculpido em pedra. Ele não disse nada, apenas passou direto, esbarrando no ombro de Anthony de propósito.
O impacto foi pequeno, mas a tensão foi grande. Kenny não parou, continuando em direção à entrada como se nada tivesse acontecido, mas eu sabia que tinha.
— O que foi isso? — Perguntei, confusa, olhando de Kenny para Anthony, que suspirou e cruzou os braços, o rosto assumindo uma expressão séria que eu não esperava.
— Olha, Lizzie, só um conselho. Fica longe dele — Anthony disse, com a voz baixa, mas firme.
— O quê? Por quê? Ele é meu vizinho — Rebati, sem entender o tom de advertência.
Anthony fez uma careta, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado.
— Desde que ele começou a fazer karatê, ele... Mudou. Agora ele age como se fosse dono do lugar. E adivinha só quem é o principal alvo dele este ano?
— Você? — Perguntei, arregalando os olhos.
Anthony assentiu, com um toque de amargura.
— Ele me odeia. Não sei se você sabe, mas... Eu não fui exatamente legal com ele antes.
Hesitei, tentando processar o que ele estava me dizendo. Eu olhei na direção de Kenny, que já tinha sumido entre os outros alunos que entravam na escola. Aquele garoto calado, quase tímido, um valentão? Parecia impossível, mas o tom de Anthony não deixava espaço para dúvida.
— Isso não faz sentido — Murmurei, mais para mim mesma do que para ele. — Ele não parece...
— Confia em mim — Anthony cortou, olhando-me nos olhos. — Ele mudou, para pior.
Fiquei parada ali, segurando a alça da minha mochila, enquanto a confusão começava a se misturar com uma pontada de preocupação. Kenny não parecia ser do tipo que buscava briga, mas a tensão entre ele e Anthony era palpável. Era como se uma batalha silenciosa já estivesse em andamento, e eu tinha acabado de me colocar bem no meio dela, sem perceber.
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Ao final da aula, eu sentia uma sensação estranha, quase como se já tivesse me acostumado com o lugar. Eu gostei da escola, dos alunos, dos professores... Até fiz algumas amizades, como a Devon Lee, que parecia ser uma boa pessoa, e revi a Samantha, a irmã de Anthony. Tudo parecia tão... Fácil, de alguma forma, como se eu já tivesse encontrado meu lugar. Me sentia quase em casa.
Mas então, enquanto caminhava pelos corredores, ouvi gritos vindo do banheiro masculino. Parei por um segundo, estranhando. O que estava acontecendo ali? Fiquei uns instantes em silêncio, mas não ousaria entrar para averiguar. Fui seguindo em frente, tentando ignorar, até que a porta do banheiro se abriu, e Anthony saiu, com os cabelos encharcados e uma expressão de pura vergonha no rosto. O cheiro que vinha dele... Água de privada.
Ele me olhou por um instante, e o ódio nos olhos dele era tão claro que parecia que ele não conseguia esconder. A raiva e a humilhação estavam estampadas no rosto dele.
— Está vendo? Seu querido vizinho fez isso. Eu te disse. — A voz dele estava tremendo de tanta raiva, e ele se afastou rapidamente, como se quisesse desaparecer. — Por favor, fica longe dele, Lizzie. Antes que as coisas fiquem complicadas pra você também.
Antes que eu pudesse responder, ele virou as costas e saiu apressado, cabeça baixa, rumo à saída da escola, desaparecendo no corredor. Fiquei parada ali, tentando processar o que acabara de acontecer. Meu peito apertava, e uma sensação de indignação subiu. Kenny... Ele havia feito aquilo com Anthony. Eu não podia acreditar. Eu tinha visto algo em Kenny, uma bondade escondida por trás de sua quietude, mas agora tudo parecia tão distante. Ele havia decepcionado Anthony, e a mim também.
Fechei os punhos com força, a raiva crescendo dentro de mim. Não, isso não ia ficar assim.
Senti algo dentro de mim se acender, uma determinação que eu não sabia que tinha. Não ia deixar as coisas terminarem assim. Eu não podia permitir que Kenny fosse tão cruel com alguém que eu considerava meu amigo, mesmo que esse amigo estivesse distante agora. Se ele fosse o valentão que Anthony dizia, então eu também aprenderia a me defender. Eu não iria mais ser aquela garota que ficava em silêncio, assistindo às coisas acontecerem. Não mais.
A raiva que sentia agora não era só por Anthony, mas por mim mesma. Eu queria me proteger, e mais ainda, queria proteger as pessoas que eram boas comigo. Eu estava decidida. Eu vou aprender karatê.
Eu sabia que, se fosse me vingar de Kenny, teria que ser com algo mais do que apenas palavras, e eu já queria de qualquer forma um esporte para me distrair nas horas vagas. Então eu vou mostrar a ele que não sou alguém fácil de ser ignorada.
Com a cabeça erguida, tomei a direção da saída também, minha mente já totalmente focada no que viria. Karatê. A única maneira de eu colocar um fim nisso era me tornando mais forte, mais capaz. E eu faria isso.
Obra autoral ©
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