02. The outgoing neighbor

Enquanto descarregávamos as últimas caixas da caminhonete, senti uma mistura de cansaço e alívio. Essa mudança era o tipo de coisa que minha mãe dizia ser um "recomeço". Um bairro melhor, uma casa com paredes limpas e sem as manchas de umidade que eram quase uma marca registrada do apartamento antigo. Minha mãe mal estava presente, como de costume. O trabalho dela exigia muito, mas, sinceramente, eu estava acostumado. O importante era que agora tínhamos uma nova chance, e, principalmente, meu irmão estava aqui comigo.

Depois de tudo o que aconteceu, ver Shawn fora do reformatório parecia surreal. Ele sempre foi a pessoa que eu mais admirei, mas as escolhas ruins que ele fez nos últimos anos criaram um buraco na nossa família. Ainda assim, ele estava tentando, estávamos tentando. Embora eu não dissesse em voz alta, tê-lo por perto me dava uma sensação de segurança que não sentia há muito tempo. Ele era mais alto, mais forte, com aquela aura intimidadora que fazia as pessoas pensarem duas vezes antes de mexer com ele. Mas, ao contrário de antes, agora ele parecia estar focado em algo positivo.

Peguei uma caixa pesada e a carreguei para dentro. A casa era simples, mas decente. Nada extravagante, mas também não havia aquelas grades enferrujadas nas janelas, e os vizinhos não gritavam palavrões na calçada. Um recomeço de verdade. Era estranho pensar que, por muito tempo, vivi em um lugar onde a polícia fazia visitas frequentes. Aqui, tudo parecia mais tranquilo, como se a vida tivesse desacelerado.

Enquanto voltava para pegar mais uma caixa, algo chamou minha atenção. Uma garota parada na calçada, montada em uma bicicleta. Ela parecia mais ou menos da minha idade, talvez um pouco mais nova. Seu cabelo brilhava sob a luz da tarde, e ela tinha uma expressão curiosa, quase hesitante. Antes que eu pudesse desviar o olhar, ela acenou para mim.

Não sei exatamente por que, mas a ideia de acenar de volta não passou pela minha cabeça. Fiquei ali, olhando para ela, franzindo o cenho sem querer. Não estava tentando ser rude, mas minha mente ainda estava cheia. Nova casa, novo começo, nova escola, e, além de tudo, o treino no Cobra Kai. Eu não tinha tempo para pensar em mais uma coisa. Sem dizer nada, virei as costas e entrei na casa, sentindo o peso da caixa em meus braços e algo mais leve, mas ainda presente, pressionando meu peito. Culpa, talvez?

Quando terminei de levar tudo para dentro, Shawn jogou uma almofada no sofá e se espreguiçou, como se o trabalho tivesse sido mais exaustivo do que era.

— Vai descansar ou treinar? — Perguntou ele, com um meio sorriso que carregava a velha arrogância que eu conhecia tão bem.

— Treinar, claro. Não posso parar agora, não depois de tudo que já fiz — Respondi.

E era verdade. O Cobra Kai não era só um dojo para mim, era minha saída. Depois de um bom tempo sendo o alvo fácil na escola, finalmente estava aprendendo a me defender. O karatê me dava mais do que força física; me dava confiança. No próximo ano, quando o ensino médio recomeçasse, eu seria diferente. Não mais o garoto que todos cutucavam por diversão. Eu ainda ouvia as risadas e os xingamentos, mas agora eu podia rebatê-los, não só com palavras, mas com a certeza de que podia me proteger, se precisasse.

Caminhei até meu quarto, que ainda estava vazio, exceto por um colchão jogado no chão e minha mochila no canto. Me sentei e comecei a imaginar como seria a rotina daqui para frente. O Cobra Kai era mais do que um lugar para aprender golpes. Era um lugar onde você aprendia a ser forte, implacável. Terra Silver, um de meus senseis, dizia que o mundo não era feito para os fracos, e eu acreditava nele. Cada golpe, cada chute, cada grito de "Kiai!" me fazia sentir que eu tinha valor, que podia ser alguém.

Ainda assim, uma pequena dúvida pairava no fundo da minha mente. Seria isso suficiente? Será que, mesmo com o karatê, eu conseguiria deixar para trás quem eu era antes? Não sabia a resposta, mas estava determinado a descobrir. E, pela primeira vez em muito tempo, sentia que tinha uma chance de verdade.

Depois que terminei de organizar meu quarto, se é que jogar uma mochila no canto e esticar um lençol no colchão pode ser chamado de organizar, me joguei no chão e comecei a fazer flexões. A rotina era clara, flexões, abdominais, chutes na sombra, depois a sequência de golpes que eu memorizava com a mesma dedicação que outros garotos decoravam letras de músicas. O suor escorria pelo meu rosto, mas eu não parava. Cada movimento era mais do que um exercício físico, era um passo em direção à redenção.

Enquanto treinava, minha mente inevitavelmente voltou para o último ano. Anthony LaRusso. O nome dele sempre vinha com um gosto amargo. Ele e seus amigos, com aquela risada irritante, seus comentários sarcásticos e as brincadeiras que ultrapassavam todos os limites. A lembrança de estar no corredor, com os olhares de todos fixos em mim, enquanto ele fazia de mim o centro de suas piadas, era como uma ferida que nunca cicatrizava. O pior não era a dor física das vezes que eles me empurravam ou derrubavam minhas coisas, era o riso. O riso era a arma deles, e cada risada era uma faca que me esfaqueava de novo e de novo.

Eles vão pagar. Esse pensamento surgia mais vezes do que eu gostaria de admitir. Durante os treinos no Cobra Kai, as palavras de Kreese ecoavam na minha cabeça como um mantra, "Sem compaixão." Ele sempre dizia que mostrar piedade era o que separava os vencedores dos perdedores. "Se você hesitar, se mostrar fraqueza, o mundo vai te esmagar," ele dizia, com aquele olhar penetrante que parecia enxergar dentro da sua alma.

Eu acreditava nele. Cada golpe que desferia no saco de pancadas no dojo era mais do que um treino, era um lembrete de que eu nunca mais seria a vítima. A cada "Kiai!" que soltava, imaginava o rosto de Anthony. Imaginava ele no chão, pedindo desculpas, implorando para que eu parasse. Sem compaixão. Não havia espaço para misericórdia no meu coração.

Enquanto fazia um chute giratório, senti uma onda de raiva percorrer meu corpo. Parei por um momento, respirando fundo, as palavras de Kreese ainda ecoando na minha mente. "O karatê não é só para defesa, é para atacar. Você destrói o inimigo antes que ele tenha a chance de te atacar." Fechei os olhos e me forcei a lembrar do que Silver dizia, algo um pouco diferente, "É sobre equilíbrio, força e confiança." Mas a verdade era que Kreese sempre parecia fazer mais sentido. O mundo não era justo, e não seria justo comigo. Então, por que eu deveria ser justo com ele?

O próximo ano seria diferente. Eu não era mais o garoto fraco que deixava Anthony e seus amigos pisarem em mim. Eu estava treinando para ser alguém que eles temessem. E quando o momento certo chegasse, quando eu tivesse a oportunidade de retribuir tudo o que eles me fizeram, eu faria isso sem hesitar.

Sem compaixão.

⋆౨˚ ˖

A noite estava fria e silenciosa quando saí de casa. O vento cortava pelas ruas quase desertas, e eu puxei o capuz do meu casaco para proteger as orelhas do frio. Shawn tinha me pedido para buscar alguma coisa na conveniência, já que nossa mãe, mais uma vez, estava atrasada no trabalho. Não era novidade. Nenhum de nós tinha habilidades culinárias que fossem além de esquentar comida congelada, então, mais uma vez, o jantar seria algo saído diretamente de um pacote.

As ruas do bairro estavam tranquilas, apenas algumas luzes acesas nas janelas e o som ocasional de uma TV ecoando pelas paredes das casas. O centro comercial ficava a algumas quadras de distância, e apesar do frio, a caminhada não era tão ruim. O asfalto úmido brilhava sob a luz fraca dos postes, e o som dos meus passos parecia ecoar mais alto do que o normal.

Quando cheguei à conveniência, o sino na porta tocou com aquele som característico que parece anunciar sua chegada para todo o mundo. O lugar estava vazio, exceto por um atendente que parecia entediado, folheando alguma revista atrás do balcão. Eu fui direto para o freezer de comida congelada no fundo da loja, o vidro já começando a embaçar por causa da diferença de temperatura. Abri a porta e comecei a vasculhar as opções, tentando decidir entre lasanha ou nuggets de frango, quando ouvi o sino da porta novamente.

Curioso, virei a cabeça para ver quem era, e meu estômago revirou. Era ela.

A garota da bicicleta. A garota que eu ignorei mais cedo. Ela entrou com passos leves, o cabelo brilhando sob a luz fluorescente da loja. Ela parecia tranquila, como se estivesse apenas dando uma volta para explorar o lugar, mas, para mim, parecia que todo o ar do ambiente tinha sumido.

Meu primeiro instinto foi desviar o olhar, e foi exatamente o que fiz. Voltei minha atenção para o freezer com uma urgência quase ridícula, como se a decisão entre lasanha e nuggets fosse a coisa mais importante do mundo naquele momento. Mas meu coração estava batendo rápido, e eu sabia o porquê.

Fui estranho mais cedo. Não só estranho, fui rude. Ela acenou para mim, e eu simplesmente a ignorei. Não foi minha intenção, mas isso não tornava as coisas menos constrangedoras agora. Eu podia sentir a presença dela no lugar, mesmo sem olhar. O som de seus passos ecoava pelo piso, e me perguntei se ela também tinha me notado.

Fiquei ali, parado, a porta do freezer aberta, o frio subindo pelos meus dedos enquanto eu segurava uma embalagem qualquer. Uma parte de mim queria olhar de novo, talvez até me desculpar pelo jeito que agi. Outra parte queria que ela simplesmente pegasse o que precisava e saísse antes que as coisas ficassem ainda mais embaraçosas.

Mas, no fundo, sabia que isso era covardia. E se eu tivesse aprendido alguma coisa no Cobra Kai, era que fugir dos seus problemas só os tornava maiores.

Fiquei ali, tentando manter o foco na embalagem congelada que segurava, mas a presença dela era impossível de ignorar. Como se o universo quisesse me testar, ela foi até o freezer ao lado do meu, abrindo a porta para pegar algumas latinhas de refrigerante. O som do metal batendo enquanto ela movia as latas fez meu coração acelerar. Não era como se estivesse fazendo algo errado, mas eu simplesmente não sabia como agir.

Minha mente estava dividida entre continuar olhando para o freezer e, quem sabe, dizer algo casual para quebrar o silêncio. Antes que eu decidisse, ela suspirou alto, de uma maneira que parecia carregada de exasperação, mas também com uma pitada de humor.

— Você vai continuar me ignorando? — Ela perguntou, sua voz leve, mas direta, como se quisesse me provocar de propósito.

Meu corpo travou por um momento. Droga. Ela notou. Tentei conter um sorriso envergonhado e soltei uma risada fraca, quase sem graça.

— Não, eu... Desculpa por mais cedo. — As palavras saíram mais baixas do que eu pretendia, mas estavam lá. — Eu só estava meio estressado com a mudança, sabe? Não foi nada pessoal.

Ela pegou mais uma lata, virou-se para mim e sorriu. Era um sorriso aberto, sem sinais de mágoa ou ressentimento.

— Eu também estou me mudando, então entendo. — Ela deu de ombros. — É sempre complicado, né?

Assenti, ainda desconcertado. Minha mente estava tentando acompanhar o tom casual dela, mas algo na energia que ela trazia era o completo oposto da minha. Ela parecia confortável, como se estar ali e puxar conversa com alguém fosse a coisa mais natural do mundo.

— Quantos anos você tem? — Ela perguntou, inclinando ligeiramente a cabeça para o lado, curiosa.

— Dezesseis — Respondi, ainda me sentindo um pouco nervoso.

Ela arregalou os olhos, parecendo genuinamente animada com a resposta.

— Sério? Então a gente vai estudar na mesma turma! — Sua empolgação era contagiante, mas eu só consegui sorrir timidamente, ainda um pouco inseguro sobre como lidar com toda essa extroversão.

— É, parece que sim — Murmurei, ainda meio travado.

— Ah, isso é ótimo. — Ela riu, fechando a porta do freezer com um movimento fluido. — Pelo menos já conheço alguém. Não vou parecer uma completa deslocada na escola, né?

Eu ri um pouco mais dessa vez, menos forçado, mas ainda um tanto desconcertado. Ela falava com uma energia que parecia iluminar o lugar, completamente diferente de mim. Enquanto eu sempre ficava na defensiva, tentando medir minhas palavras e ações, ela parecia simplesmente se jogar nas situações sem pensar duas vezes.

— E você? — Perguntei, tentando retribuir o esforço dela de ser sociável. — Quantos anos tem?

— Quinze. Faço dezesseis no mês que vem. — Ela abriu um sorriso e deu de ombros. — Então, tecnicamente, não estou tão longe.

Ela parecia tão confortável que comecei a relaxar, mesmo sem querer. Ainda assim, algo dentro de mim me lembrava do meu desconforto natural em situações como essa. Fiquei pensando em como ela e eu éramos completamente diferentes, como fogo e gelo. Mas talvez isso não fosse tão ruim.

Nós seguimos até o caixa juntos, ela carregando as latinhas de refrigerante e eu com uma lasanha congelada que nem tinha certeza se Shawn iria gostar. Ela continuava falando com a mesma energia de antes, como se as palavras fluíssem dela sem esforço. Aparentemente, tudo no mundo era digno de comentário, a música baixa tocando na loja, o preço dos snacks na prateleira próxima, e até a estampa meio brega na camiseta do atendente. Eu só concordava com palavras simples, lançando um "É" ou "Verdade" aqui e ali, tentando acompanhar, mas claramente ficando para trás.

Quando ela pediu dois pedaços de pizza que estavam expostos em uma estufa no balcão, o atendente, um homem latino de uns prováveis vinte e poucos anos, entregou a ela com um sorriso simpático.

— Gracias! — Ela respondeu com fluidez, dando um sorriso antes de pegar as fatias.

Eu levantei uma sobrancelha e deixei escapar.

— Olha só, bilíngue. Impressionante.

Ela riu, equilibrando as pizzas em uma mão e as latas na outra.

— Não é nada demais. Só umas palavrinhas básicas que aprendi vendo novelas com a minha avó.

A resposta dela me fez rir de leve, mais descontraído dessa vez. Ela parecia ter esse jeito de fazer tudo soar simples e divertido, o que era quase o oposto de como eu via o mundo. Saímos da loja juntos, o ar frio da noite nos envolvendo enquanto parávamos em frente à conveniência.

Ela olhou ao redor, mordendo um pedaço da pizza, até que seus olhos pousaram em algo à distância. Com a mão livre, apontou para o centro comercial do outro lado da rua, onde o letreiro amarelo brilhante do Cobra Kai dominava a fachada.

— Olha ali — Disse ela, com a boca ainda parcialmente cheia de pizza. — Passei por lá mais cedo. Vi um velho super assustador saindo de lá. Ele parecia ter saído de um filme de ação dos anos 80 ou algo assim. Mas, sério, o lugar parece bem maneiro.

Minha expressão mudou na hora, e não consegui evitar um pequeno sorriso.

— Eu treino lá. — A declaração saiu mais casual do que eu esperava, mas internamente, senti um pouco de orgulho.

Os olhos dela brilharam, claramente impressionados.

— Sério? Que legal! Talvez eu entre também, hein? Sempre quis tentar algo assim, sabe? Artes marciais parecem ser uma coisa que... Não sei, muda a gente de verdade. E, pelo menos, nem todo mundo lá é assustador. — Ela riu, me lançando um olhar brincalhão.

Eu não pude evitar uma risadinha, balançando a cabeça. Não sabia bem como responder, então só disse.

— Pode ser uma boa.

Ela terminou o último pedaço de pizza e limpou os dedos no guardanapo, enquanto eu ajustava o capuz do casaco, ainda tentando parecer mais à vontade do que realmente estava.

— Bom, te vejo por aí, então? — Ela perguntou, já se virando para ir embora, mas com aquele sorriso descontraído que parecia ser sua marca registrada.

— É, talvez — Respondi, acenando de leve enquanto começava a andar na direção oposta, com a comida congelada na mão.

Mesmo depois de nos separarmos, eu não conseguia parar de pensar no quão diferente ela era. Tão cheia de energia, tão à vontade consigo mesma. Ela era como uma lufada de ar fresco, enquanto eu estava acostumado a manter tudo fechado, guardado. Mas, por alguma razão, não parecia tão ruim. Talvez o próximo ano não fosse tão horrível quanto eu imaginava.

Obra autoral ©

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