𝐂𝐀𝐏𝐈́𝐓𝐔𝐋𝐎 1

CAPÍTULO 1

8 dias para o fim do mundo

Não vou dizer que não faço isso com frequência. Eu faço. Qualquer um faria. Principalmente aqueles que foram largados à própria sorte aos dezoito. Furtar acabou fazendo parte do meu dia-a-dia, mesmo não sendo o que planejei para a minha vida.

Eu entro numa loja de roupas renomada da cidade, e caminho pela sessão de agasalhos, julgando o preço das etiquetas de longe. Eu nunca conseguiria comprar um desses tão cedo, tenho contas atrasadas, mas está frio e a tendência é ficar ainda mais. Eu preciso de um.

Colocando a mão sobre o agasalho, eu olho ao redor me certificando que ninguém me vê. Com um pouco de esforço, um campo de força isolado é criado ao meu redor, e logo não estou mais visível para as pessoas. Nem eu e nem esse agasalho.

Saio da loja vestindo ele, ninguém na rua me vê. Tenho que desviar de cada pessoa para não esbarrar, e chegar a tempo na minha antiga casa antes que a chuva fique mais densa. O meu casaco novo consegue me aquecer o suficiente para chegar até lá.

Em frente aos portões da Academia, tomo liberdade para deixar de lado os meus poderes. Eu encaro as grades como se elas fossem as culpadas por todos os problemas da minha vida. Metaforicamente, elas foram. Agora, por causa delas, preciso respirar fundo demais para conseguir dar o passo seguinte.

Os portões desse lugar prendem qualquer um que entre. Há dez anos eu estava livre deles, mas sei que eles vão arranjar um jeito de me prender aqui de novo. Não estou nada contente em estar de volta para essa mansão.

Abrindo a porta da Academia, dando de cara com o saguão, encontro duas figuras pouco familiares. Tenho que admitir que eles estão bem mais velhos pessoalmente.

— Amber? — a mulher vira em minha direção, com tom de surpresa. Não me lembrava de sua voz ser tão madura, os filmes que ela fez meio que distorceram — Você veio.

— Eu não podia perder — eu falo, mas apenas o homem acha graça. Também não lembrava da voz dele ser tão grave.

— Você continua a mesma. É bom te ver de novo — Diego ri pelo nariz, sarcástico, passando pelas portas laterais. Há facas em suas costas num suporte horroroso onde não se vê nem em filmes de super-heróis.

— Ele usa isso agora? — aponto para o homem-porta-facas. É a vez de Allison rir, o que confirma retoricamente.

— Que bom que veio. Não ia ser a mesma coisa sem você aqui — Allison chega perto para me abraçar. Deve ser nosso primeiro abraço em cinco anos. — Belo casaco, estou sonhando com um desse.

— Valeu — dou uma risada sem graça. Allison é muito simpática, porque ela sabe que eu roubei, e ela tem plenas condições de comprar um igual — Como vai? Claire está bem?

Nunca conheci essa garota pessoalmente, mas sei por vídeos que é uma graça. Aliás, preciso me lembrar de cobrar os vinte dólares que apostei com Klaus, dizendo que Allison seria a primeira de nós a ter um filho.

— Sim, estamos bem. Claro, tirando a questão do divórcio. Você sabe como é.

Assim que termina de falar, ela parece querer engolir as próprias palavras, arrependida. Porém eu relevo, acenando com a mão.

— É, eu sei como é.

Allison olha para os dois lados, buscando outra forma de continuar a conversa. É um tópico indesejado para nós duas agora, o melhor a fazer é fingir que nada disso aconteceu.

— Estão todos na sala te esperando. Vamos? — ela aponta o braço para a sala de estar, e nós caminhamos até lá.

Muitos deles não vejo há anos. Como Luther, o número um, está enorme. Achei que sua super-força não iria interferir em seus músculos, porém ele está consideravelmente maior desde a nossa adolescência. Klaus, por sua vez, está mais magro. Drogas, eu aposto.

Viktor continua introspectivo, e o encontro com a família reforçou esse comportamento, visto tudo o que ele escreveu sobre nós em seu livro. Não guardo ressentimento, há muitas verdades escritas lá, mas eu gostaria de uma permissão antes de ele mostrar para o mundo como era nosso funcionamento na Academia, em especial, a minha relação com cada um deles, que é obviamente diferente.

Todos nós fomos expostos, e ninguém gosta disso.

— Amber? É você mesmo? — Klaus se levanta quando me vê, tropeçando na própria saia. Ele chega mais perto para me abraçar — Não é um fantasma, né?

Ainda não.

— Sempre depressiva, minha garota — ele distribui tapinhas nas minhas costas.

Eu aceno para Luther e Viktor. Eles não vão receber mais que isso de mim. O líder, ou como gostam de chamá-lo, se levanta para anunciar:

— Bom, já que estão todos aqui, acho que já dá para começar. A gente podia fazer uma cerimônia em homenagem, no pátio, ao pôr do sol. Para dizer algumas palavras no lugar preferido dele.

— Ele tinha um lugar preferido? — Allison pergunta, interrompendo.

— Tinha. Embaixo do carvalho.

— Vai ter comes e bebes? Chá? Bolinho? Sanduíche de pepino, que sempre faz sucesso — Klaus acende seu cigarro.

— Apaga isso. Ainda temos coisas importantes a discutir.

— Tipo o quê? — Diego contraria o irmão.

— Tipo a causa da morte.

— Vai começar…

— Eu não estou entendendo. Disseram que ele morreu do coração — Viktor fala.

— Teoricamente — Luther diz. Seu tom de conspiração faz todos nós suspirarmos, descrentes.

— Teoricamente? Foram os médicos que disseram — eu argumento.

— O papai andava estranho ultimamente. Dizia que não podia confiar em ninguém. Sem contar que o monóculo sumiu.

— Quem liga pra essa porcaria de monóculo? — Diego resmunga.

— Exato. Não vale nada. Quem o pegou deve ter um motivo pessoal — Luther continua agindo como um detetive, causando mistério em nós — Klaus, sei que não gosta de fazer isso, mas tem que falar com o nosso pai.

Ele imediatamente se contorce no sofá.

— Gente, eu não tô pronto... mentalmente.

— Tá chapado?

— É! Vocês também tinham que estar.

— Reggie finalmente empacotou. Acho que devemos deixar ele descansar em paz e não incomodá-lo no outro plano — eu aconselho, limpando a barra para Klaus.

— Você ainda não entendeu, Amber, ele acha que um de nós matou o nosso pai — Diego se levanta, ficando de frente com Luther.

Sua frase deixa a sala inteira num silêncio absoluto. Afinal, uma vez na vida Diego falou algo que é realmente inteligente. Nós ainda estamos abismados sobre como nosso Número Um pôde pensar em algo do tipo. Tudo bem que nós queríamos o fim precoce de Reginald, mas nenhum de nós faria.

— Isso é sério? — Klaus diz, irritado.

— Como pôde achar isso? — Viktor fala baixo.

— Vai se foder — eu murmuro.

— Parabéns, Luther. Que líder.

— Você enlouqueceu. Está louco. Louco.

— Eu ainda não terminei — Luther tenta recuperar a atenção.

— Tá bom, eu vou só matar a mamãe ali rapidinho e já volto — Klaus se levanta, deixando a sala, sendo seguido por todos nós.

Luther deve ter ficado sozinho, se nem mesmo Allison quis estar na sua presença depois do que ele especulou. Nós acabamos fazendo o mesmo caminho, ela foi para o seu quarto e eu a segui. Enquanto a cerimônia não começar, não quero perambular por essa casa e me lembrar do que eu fui um dia.

Me lembrar de Ben, que se foi tão cedo. De Cinco, mais cedo ainda. Eu sequer sei se ele está vivo, uma das dúvidas que me pega toda vez que deito minha cabeça no travesseiro. Em cada canto dessa casa tenho uma memória dos dois, é como se seus fantasmas ainda estivessem aqui.

Quero ir embora logo.

— Posso ficar com você? — eu pergunto, dando batidas na porta aberta de Allison. Ela estala a língua, descontraída.

— Que pergunta. Entra aí.

Eu caminho até sua cama, me jogando nela com preguiça. Allison está sentada em sua penteadeira, com um colar dourado em sua mão. Me lembro do colar porque quando éramos crianças dividíamos nossos dramas amorosos. Apesar de nascermos no mesmo dia, Allison é como minha irmã mais velha, e as palavras sábias sempre vinham da sua parte.

— Amber? — ela chama, e dou espaço para ela continuar — Podemos falar sobre os divórcios? No plural?

Não. Com certeza não. Quero que todos parem de me fazer a mesma pergunta. Não é da conta de absolutamente ninguém.

— Claro.

— Como você lidou? Sabe, você parece tão bem. Às vezes eu sinto que vou desmoronar — Allison pisca algumas vezes, afastando as lágrimas. — O Patrick, ele… ficou com a guarda da Claire.

— Merda… — Eu murmuro. Nunca dei tantos conselhos à Allison, sempre foi o contrário, agora não sei o que faço já que nossas experiências não foram tão parecidas assim — Você ainda tem seus poderes.

— Eu não faço mais isso.

É compreensível. Fomos abençoadas com poderes que vão além da moral, que questiona nossas éticas. Minha única irmã não poderia ser mais parecida comigo.

— Se serve de consolo, eu estou me recuperando bem. Claro, eu não tive filhos com Ethan, mas ele também tirou tudo de mim. Tudo o que conseguiu — Eu dou uma pausa, fazendo uma autoanálise — Cá entre nós, isso deve ser porque eu tolerava ele.

— É, são casos diferentes. Eu amava o Patrick.

— Você não pode abrir uma exceção só para ter a Claire de volta?

— Esse foi o motivo pelo qual perdi ela. É o mesmo ciclo: eu faço um pedido, ele acontece, não dá para voltar atrás.

Eu secretamente acho que usar os poderes na própria filha é passar dos limites, mas não digo isso em voz alta porque nunca fui mãe para entender essa decisão.

Allison tomou fôlego para falar outra vez, porém esse fôlego foi substituído por um susto, ao ver que o colar em sua mão foi arremessado contra a parede, onde ele permanece grudado como uma espécie de imã. A luz que entrava pela janela foi embora, trazendo apenas sons de trovões e relâmpagos.

— O que foi isso? — pergunta ela, se levantando depressa. Nós duas estamos confusas, sem saber se precisamos nos defender do que quer esteja acontecendo lá fora.

Concordamos em descer para encontrar os meninos, ou até descobrir se isso é obra de um deles. Vemos eles correndo para o pátio, então fomos atrás. Aqui fora o barulho é bem maior. Há uma distorção estranha no céu, alguns metros de nós, é azulada e lembra um pouco o que meu poder faz.

— Não cheguem perto! — pede Diego, colocando seus braços na frente de nós.

— Parece uma daquelas anomalias temporais. Ou um mini buraco negro, das duas uma — Luther opina.

— Boa, gênio — respondo.

— Sai da frente! — Klaus corre no meio de nós, jogando um extintor de incêndio para dentro da anomalia.

— O que achou que isso ia adiantar?

— Sei lá, você tem outra ideia?! — ele responde nervoso para o irmão.

Luther e Allison dão as mãos, enquanto aquela bola de energia ultramagnética acima de nós parece ficar cada vez mais forte. O ambiente do outro lado da anomalia começa a ganhar um rosto, tem alguém tentando passar para o nosso lado.

Nós esperamos essa passagem acontecer, o que levou bastante tempo e ficamos esse período escutando os gritos da pessoa. Acho que já podemos afirmar que é um homem. Segundos depois de seu rosto estar mais nítido dentre os trovões e distorções, esse homem despenca no chão bem na nossa frente.

A anomalia vai embora, o céu fica mais claro de novo.

O homem se levanta gemendo, aparentemente vivo, e nós tomamos coragem para chegar devagarzinho perto dele. Está bem vestido com um terno cinza escuro, e seus olhos confusos miram cada um de nós. Mas esses olhos…

— Gente, sou só eu ou vocês também estão vendo o… — Klaus começa a falar, mas sua voz fica distante na minha cabeça.

Não deve ser só eu. Klaus também vê. Esse homem carrega tantos traços familiares que me faz lacrimejar. Eu procurei esses olhos verdes em todos os homens que passaram por mim nos últimos dezessete anos. Eu não consigo acreditar no que está na minha frente, tenho medo da minha mente estar me pregando peças.

Não quero ser a primeira desesperada a falar, mas esse homem é a cara do…

— Número Cinco — Klaus completa meu pensamento sem saber.

É ele.

Só pode ser ele.

Eu não me dei conta quando vi a anomalia temporal, mas não sei se outra pessoa no mundo poderia fazer isso além de Cinco. Ele voltou mesmo. Cinco voltou.

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