FELINO

Voltar para casa depois de um turno tumultuado no trabalho é um alívio completo quando se chega a sexta feira.

Adorava ficar sem ninguém ao meu redor me irritando ou dizendo coisas fúteis, mas sempre foi tão solitário de certa forma... E nos momentos em que mais queria ter alguém ao meu lado, minha voz ficava presa arranhando minha garganta e explodindo minha mente com inseguranças.

No fim, não me aproximava de ninguém.

Não terminaria minhas semanas num bar com os colegas de trabalho, nem karaokê, nem uma caminhada sequer. Eu tomava meu espaço no trem à noite de volta para casa e ansiava internamente pelo meu espaço quentinho no sofá.

Quando cheguei na entrada do meu novo prédio, um som não muito distante fez com que me virasse para o lado. Meu olhar encontrou de imediato o da garota que morava ao lado do apartamento da minha tia. Ela sinalizou para que eu me aproximasse, e, apesar do cansaço, algo enigmático nela fez com que me movesse.

Akira Hattori. Nunca havia conhecido uma garota com uma presença tão intensa quanto ela. Naquela noite, ela não usava aquele uniforme de couro típico, mas sim um conjunto de moletom vermelho como sangue e seus cabelos negros estavam presos em um coque frouxo. Pra ser sincera, eu nunca nem sequer a vi usando um uniforme escolar como as garotas de sua idade. Ela só dizia que tinha um trabalho que pagava bem e mantinha os criminosos longe do bairro. Sempre achei que não deveria insistir no assunto.

- Achou um novo amigo? - perguntei.

- Ele não é das redondezas. Deve ter se perdido e acabou aqui.

Me agachando ao seu lado, apoiei o queixo nas mãos, enquanto observava o gato de pêlo alaranjado que a garota alimentava. O pequeno fixou os olhos em mim por um breve instante antes de voltar sua atenção para a lata de comida em sua frente.

- Também parece perdida, senhorita Aikyo.

- Hum? Eu? - murmurei confusa.

- Viu um coelho branco por aí?

- Não, mas encontrei com seu irmão um dia desses - respondi encolhendo os ombros - Acho que falei besteira.

- Deixou ele indignado o suficiente pra me atormentar - comentou com um sorriso travesso - Gosto de você, Senhorita Aikyo.

O gato alaranjado se aproximou da garota lentamente, um pequeno miado quase como agradecimento escapando dele. Ela estendeu a mão coçando atrás da orelha peluda dele com um grande sorriso no rosto.

- Ele é fofo - sussurrei.

- Sim. Arisco no começo, mas fofo. Me lembra um certo alguém.

Com a sombra que se espalhou por seu olhar, achei melhor ficar quieta.

- Meu irmão não se dá tão bem com os gatos e o apartamento é dele, por isso não os levo para lá. Devia adotar um gato, Senhorita.

- Não acho que eu sirva pra isso. Não tenho ideia de como cuidar de um.

- Nunca teve um bichinho de estimação?

- Não - respondi cabisbaixa - Minha avó era meio alérgica ou algo assim.

- Hum... Então, você morou com ela antes? - perguntou se virando para me encarar - Sabe, moro nesse prédio a um tempo e não me lembro nem de te ver visitar esse lugar antes de ter se mudado.

- Dá pra dizer que sim. Passei mais tempo na casa dos meus avós do que na minha.

Me levantando com certa dor nos joelhos pela posição e clara falta de atividades físicas, me virei indo em direção ao prédio, mas a garota logo pulou para caminhar ao meu lado, já que seu amigo felino também encontrou seu caminho entre os arbustos.

- Vou te acompanhar até em casa.

- Não precisa se incomodar.

- Sem discussões, vamos.

Uma coisa que havia aprendido sobre a garota das poucas vezes que a encontrei, somado à longa lista de fofocas que corriam pelos moradores do prédio, é que ela só fazia o que dava na telha, quando queria e com quem quisesse. Não falavam coisas boas. Após passarmos pelo porteiro, que continuou seu cochilo sem interrupções, entramos no elevador indo em direção ao nosso andar. Para a minha surpresa, enquanto a máquina subia, a garota quebrou o silêncio com algo que me deixou confusa por um instante.

- Qual sua individualidade, Senhorita Aikyo?

- Por que a pergunta?

- Sou uma telecinética - respondeu dando um passo em minha direção - E sou muito boa no meu trabalho, mas não sinto nada emanando de você. Isso me deixa confusa às vezes e nem um pouco contente.

- O que quer dizer?

- Como meu irmão ficou paralisado por sua causa? - ela perguntou semicerrando os olhos acinzentados.

- ...

- O cara que mora no apartamento do lado - ela repetiu inclinando a cabeça para mais perto do meu rosto - Você sabe, o Hawks.

- ... Como é isso aí que você disse? - sussurrei sentindo meu rosto começar a queimar.

- Por que está ficando vermelha? - perguntou com o cenho franzido - Senhorita Aikyo? Está tudo bem?

O sinal de abertura do elevador me salvou bem na hora, e, apertando a alça da minha bolsa nos ombros, me desvencilhei da garota e me apressei pelo corredor dos nossos apartamentos.

- E-eu... Eu tenho que terminar com o meu trabalho, me desculpe!

- Vamos continuar conversando depois, ok! - a garota exclamou atrás de mim.

Fechando a porta atrás de mim com toda força, minhas costas encontraram a madeira, enquanto puxei todo o ar que conseguia manter nos meus pulmões.

- Mas o que foi isso?! - sussurrei correndo as mãos pelos cabelos. Minha mente é que era o verdadeiro problema, me levando à lembranças nem um pouco agradáveis.


"- Sua mãe escolheu o caminho mais fácil. E talvez tenha sido minha culpa por não ter insistido o suficiente. Eu devia ter feito mais.

- Não fala besteira. Nem tente ser legal a essa altura. Não combina nada com seu estilo.

Minha avó vinha passando alguns dias na casa do meu pai após o funeral de sua filha.

Morta em batalha.

Recebemos condolências de seus colegas de trabalho que restaram da polícia e cinzas para descartar. Atos de guerra, enfim. Não dava pra reconhecer o que restou de qualquer maneira. Vovó só chorava durante as madrugadas e como eu não conseguia mais pregar os olhos, acabava ouvindo os sons abafados no quarto ao lado.

Naquela manhã, me sentei ao lado dela na varanda observando os arbustos meio mortos no jardim. Papai nunca deu muito valor à eles e eu vinha me afastando cada vez mais dos cuidados com as plantas. Minha avó deixou a xícara de café ao lado de sua bengala no chão, descansando as mãos em seu colo, enquanto continuava a reclamar.

- Perdi minha filha para o mundo. Talvez eu devesse ter ficado com o ingrato do seu pai e aguentado as reclamações dele, seria um bom jeito de se pagar por isso.

- Que língua afiada - murmurei com um sorriso de canto - Nunca gostou dele, né?

- Conheço bem meu filho - ela respondeu entrelaçando as mãos em seu colo com ainda mais força, tentando disfarçar a tremedeira - É um garoto no corpo de um homem. São sempre os piores tipos.

Seus cabelos grisalhos estavam sendo ressaltados pelos trajes pretos formais. Ela ainda continuou o mantendo preso num coque tradicional com o prendedor de cabelo que possuía uma lótus prateada na ponta, presente de casamento que meu avô deu à ela. Sua vaidade nunca desapareceu, era visível com suas unhas sempre pintadas de vermelho, mas as olheiras que se espalharam por debaixo de seus olhos depois da morte da minha tia revelavam suas fraquezas.

Passei muito tempo da minha vida ao lado daquela mulher, mas acho que parte de mim nunca a entenderia por completo. Deixou que seus filhos escolhessem os caminhos que preferiram e no fim odiava ter feito isso.

- Não fique nessa casa por muito tempo - disse chamando minha atenção - Prometa pra mim.

Franzindo o cenho com o pedido dela, meu sangue gelou por um breve instante. O ar naquela casa já havia mudado há alguns anos, mas não era o tipo de pessoa que insistia em mudanças.

- Prometa. Vivi num casamento por conveniência, mas tive a sorte de encontrar alguém decente que me deu momentos felizes, principalmente quando perdia nos nossos jogos de apostas.

- Meu avô sempre fez isso de propósito porque te amava - respondi com um sorriso.

- Mais um homem idiota - ela falou um tom de diversão na voz - Amor... Coisa engraçada, não acha? Poetas tentam descrever essa coisa típica da humanidade, mas quem poderia estar dizendo a verdade sobre algo tão infeliz quanto o amor?

Porém, seus lábios se pressionaram numa linha fina e os olhos se fecharam tentando conter suas lágrimas de sofrimento pelas perdas. Ela nunca teve um coração de ferro.

- Não vai encontrar sua liberdade se viver nessa casa, nem vai aprender a dar valor em si mesma - ela continuou - Fique no apartamento da sua tia comigo por um tempo e procure a vida que desejava antes do mundo arrancar seus sonhos. O cara do 103 não é uma opção ruim, sabe?

Suspirando pesadamente, meus ombros caíram em desânimo com a boa memória que aquela senhora possuía.

- Não dê uma de cupido, você odeia romance.

- Ele já não te salvou uma vez? É um tipo bom. Eu aprovo.

- Não é da sua conta.

- É um bom garoto, sempre me ajuda com as compras e mantém as portas abertas pra mim - ela insistiu batendo o ombro no meu.

- Coisa de herói, vovó.

Ela revirou os olhos cansada das minhas respostas e logo se pôs a ficar de pé, se apoiando na bengala em suas mãos.

- Podemos ir agora. Diga ao inútil do meu filho que vai passar uns dias comigo."

Minha avó nunca ouviu ninguém além da voz maluca da cabeça dela, por isso eu sabia que era inútil protestar contra sua decisão.

Naquele dia eu saí de casa.

É a única decisão da minha vida de que não me arrependo por completo.

- Pare de invadir minha cabeça... Não quero saber das suas reclamações - sussurrei apertando os olhos entre os dedos.

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