𝐂𝐚𝐩𝐢́𝐭𝐮𝐥𝐨 𝟏

Eu observava o sol escondendo-se após o seu longo e turvo dia de verão, levando consigo a alegria da luz quente que banhava-nos todas as tardes, que me trazia os curtos momentos de distração durante minha monótona e tediosa rotina.

Estava sentada no topo da colina de grama alguns generosos metros distantes da propriedade de meu pai, com o último exemplar de um romance empoeirado apoiado em meu colo, passando as páginas com um suspiro preso em minha garganta a cada frase de amor que me puxava o fôlego perdendo-se em minha imaginação. Sempre me imaginava como a protagonista dos livros, mas a fantasia acabava quando lembro-me que nenhuma daquelas histórias me pertenciam, suas aventuras foram levadas por ventos que não sopraram para aonde uma pequena alma solitária como a minha residia.

Não me via como alguém capaz de viver um amor proibido, ou de sequer viver um amor que me tirasse o fôlego. Era condenada a vi dentro dos padrões infelizes da alta sociedade.

Minha irmã claramente detestaria descobrir que eu ando mexendo escondida em sua biblioteca particular - aquela que ela mal visitava - Papai ficaria feliz ao descobrir que eu tinha interesse em leitura e mamãe ficaria uma fúria quando soubesse que eu estou mais interessada em ler histórias de amor do que bordar..

Mas não era como se alguém fosse descobrir.

Escondi o exemplar por baixo da saia de meu vestido quando vi Margareth se aproximando aos berros, com as roupas de criada sendo seguradas de um jeito desastroso enquanto tentava me alcançar colina acima.

- Meu Deus menina, por que ainda continua se enfiando em lugares tão difíceis de subir? - a senhora de idade estava ofegante e vermelha de raiva ou pelo esforço. Escutei aquilo com a vontade de xingar subindo a garganta, me disseram isso vezes demais para que eu precise controlar minha vontade de revirar os olhos.

- Perdão, já vou descer - remexo o livro mais para baixo, para que ela não veja o exemplar, mas quando percebo que ela não irá sair enquanto eu não descer finjo uma expressão de confusão e começo a farejar algo que não existe - Está sentindo este cheiro de queimado? Acho que está vindo da cozinha...

Apontei inocente para as janelas do cômodo, que surpreendentemente, estavam saindo fumaça. Talvez eu não estivesse mentindo.

Margareth me alertou uma última vez sobre descer antes de correr colina abaixo desesperada, era compreensível o fato dela odiar ter ajudantes de cozinha, sempre dizia que eles eram incompetentes e parece que dessa vez ela tinha razão.

Rapidamente coloquei o livro debaixo dos braços fazendo o mesmo percurso da senhora só que com bem mais habilidade, sem os tropeços ou os gritos.

Deveria estar agora em um ensaio do casamento de minha irmã, mas não tenho o mínimo interesse em quem quer que seja o azarado que irá chamar Luci de esposa. Tolero minha irmã, sem sombras de dúvidas, já que somos obrigadas a viver juntas, porém, ela não é uma pessoa muito agradável de se conviver... Ou de conversar.

Ouço o caos na cozinha quando Margareth entra no cômodo profundamente irritada praguejando todos os nomes que conhecia enquanto colocava ordem em todos os ajudantes que estavam em pânico, sentia pena de todos eles. Primeiro por enfrentar a fúria da governanta mais rabugenta que alguém poderia ter e segundo pela onda de humilhação que iriam sofrer caso Lucinda Evans, minha irmã mais velha, sequer sonhasse que eles haviam estragado o tão precioso banquete com o seu tão prestigiado noivo.

Me contento em desviar da cozinha para apenas contornar a casa pelo jardim até a porta da frente, me encantando brevemente com os funcionários carregando mesas para os fundos, decorações belíssimas junto de centenas de arranjos de flores. Uma coisa que eu não poderia falar mal de Luci era de seu gosto, ela era uma mulher requintada e extremamente elegante.

Mas eu realmente acho um exagero e um gasto desnecessário, era literalmente um jantar com um homem que já havia aceitado fazer o pedido de casamento, ele não precisava de tudo isso, já estava nas garras da família e não necessitava mais de nossas bajulações para aceitar.
Se bem que casar com Luci era um sacrifício que dificilmente eu estaria disposta a aceitar caso estivesse no lugar dele, talvez eu esteja sendo dura demais com o homem e deveria ter pena dele.

Fui tirada de meus pensamentos contraditórios quando me deparei fortemente com algo grande que me fez dar passos para trás - Desculpe-me, estava distraída por um momento...

- Tudo bem, querida - levantei o olhar para encarar o homem de voz grave e aveludada - Precisa de alguma ajuda?

Sinto os olhos negros do homem percorrendo meu corpo de cima a baixo, não com saliência, e sim, me analisando, tentando saber quem sou de maneira grandiosa, como se ele fosse um rei. Ele era lindo, essa foi a única palavra simplista que consegui pensar para descrevê-lo, meu vocabulário que foi treinado para ser extenso se tornou vago diante dele.

- Estou bem - fiquei ereta, com a feição impassível não demonstrando absolutamente nada do que aqueles olhos negros vítreos me fizeram sentir.

Ele sorri ladino, parecendo perceber tudo aquilo que eu quis esconder.

Vejo que ele não está com roupas finas, e sim com apenas uma camisa branca com dois botões desabotoados e calças de montaria, então supus que ele fosse um dos ajudantes de meu pai. Relaxo os meus ombros, firmando a voz e o olhar quando digo:

- Está perdido? Ou procurando alguém? - Ele abre um sorriso ainda maior quando olha em volta, por um curto momento acho que é para conferir se não há ninguém por perto mas afasto o pensamento de minha mente antes que ele tome influência demais.

- Procuro a madame Louise Evans - não consigo conter minha expressão de surpresa - Pode me dizer onde ela está?

Até então ele poderia ser um estranho que entrou na propriedade por brecha na segurança e estaria me procurando para me levar e me usar como moeda de troca nos becos da cidade, ou exigir uma quantia de dinheiro avassaladora para me devolver, eram tantas possibilidades perante aquela curta informação que minha única reação rápida foi mentir.

- Não faço ideia de onde ela está - ele ergue uma sobrancelha e eu tento dizer com o máximo de imponência que consigo encenar, mas o sorriso debochado e prepotente do homem só parece aumentar diante de minha resposta.

- Certeza? - faço que sim com a cabeça - Então diga a ela, quando a encontrar, que ela é uma garota estupidamente bonita e uma péssima mentirosa.

Não tenho tempo de me defender pois ele toma seu caminho adiante e me deixa plantada no jardim, me viro para olhá-lo uma última vez mas ele já sumiu de vista, se misturou com outras dezenas de criados pelo jardim.

Por um momento, quase o deixo ir, mas minha curiosidade se sobrepõe a razões lógicas. - Ei! - ele para, mas não se vira - Você mesmo, que acabou de falar comigo!

Vejo-o virar comicamente, com um sorriso irônico e curioso, me olhando como quem dissesse "Continue, oh pobre critura burra." Engoli em seco, prendendo as palavras na garganta antes de me emplumar, tentando mostrar o máximo de compostura que a filha de um duque poderia mostrar.

- Creio que me expressei mal - o homem cruzou os braços enquanto refazia o caminho até mim novamente. - Eu sou Louise.

- Jura? Se não tivesse me dito...

- Sem sarcasmo, por favor. - rebati, seca e incisiva. Não gostava de sarcasmo, a maneira mais passiva-agressiva que tinham de machucar e ludibriar o outro. - Quero que diga o que você quer comigo. Como sabe quem sou e como tem a ousadia de querer me encontrar.

Seus lábios tremem como se quisesse cair na gargalhada, ele percebe que não estou para brincadeiras e tem a decência de parar de tirar sarro - Todos sabem quem você é, duquesa.

Não posso ver minha própria expressão, mas tenho certeza de que estou consternada. Eu não era duquesa. Sequer seria um dia.

Meu pai não teve filhos homens, não há um herdeiro certo para a casa Evans, então para a linhagem não morrer, Benedict Evans resolveu casar suas duas filhas e a primeira que tiver um filho homem atuará como duquesa da casa juntamente ao seu marido, até que a idade alcance o garoto e ele possa assumir com legitimidade a propriedade.

- Não sou duquesa. Cheguei a maioridade há pouco, não tenho marido ou filhos, acho que errou de irmã. - disse curta e grossa, sentindo o gosto amargo do título encher minha boca.

- Mas quem garante que sua irmã será a duquesa?

Meus olhos se arregalaram, falar isso em voz alta com olhos e ouvidos por todos os lugares era praticamente blasfêmia.

Estou pronta para retrucar quando ouço gritos e barulhos de coisas derrubando no lado interno de minha casa me desviam da memória dos olhos do homem e me fazem correr para o interior da mansão.

Subo as escadas rapidamente torcendo para não tropeçar na saia longa de meu vestido rose, meus sapatos são deixados no caminho enquanto desesperadamente tento subir os lances de escada, que nesse momento parecem ser infinitos, ouço o grito de Luci e o choro agudo de minha mãe ao fundo, por Deus, meu coração desanca para a boca e as palmas de minhas mãos começam a suar tanto que minha pele desliza pelo corrimão.

Cheguei a porta com o fôlego desregulado, com meus pulmões pedindo o máximo de oxigênio que eu conseguisse, meu corpo tremia e meus olhos marejados já entregavam que eu pensava o pior.

Mas quando observo a cena do quarto de Luci me deparo que minha mãe chora olhando para um medalhão quebrado, Luci está ao lado de uma estante de livros destroçada e jogada ao chão e criadas tentando limpar outros vestígios de destruição como vasos, porcelanas, perfumes e outras coisas que havia no quarto de minha irmã.

- Alguém pode me explicar o que aconteceu aqui?! - Digo exaltada, não tenho o costume de gritar, mas naquele momento a raiva sobe a minha cabeça. Estava cansada dos chiliques das duas.

- Saia daqui! - minha irmã joga um pequeno vaso de cerâmica em minha direção, errando apenas por um palmo de distância do meu olho esquerdo, acertando a parede ao meu lado, fico estática com que acabara de acontecer.

- Marrie - com o rosto impassível viro-me para a criada de cabelos ruivos que agora limpa o vaso estilhaçado aos meus pés - Pode me explicar o que aconteceu?

A mulher se encolhe tremendo olhando para minhas duas parentes, com medo estampado na face, odiava como aquelas duas faziam os funcionários se sentirem.

- Sua irmã quebrou o medalhão da família e teve um ataque de raiva pois a casa a qual iria morar com seu noivo foi vendida a outra pessoa - Minha mãe diz com lágrimas nos olhos - Te dei tudo do bom e do melhor a sua vida inteira e é assim que me recompensa, quebrando o medalhão da família? - Ela olha para Luci com bravura mas desmonta assim que a mesma abre a boca.

- Fique quieta, não lhe devo nada! - Luci berrou do canto quarto - Não passa de uma velha estúpida que viveu às custas de meu pai desde que era uma simples prostituta!

Nossa mãe abaixou a cabeça, com os olhos tristes e desgastados, minha irmã a destruiu a cada vez que a insultava por seu passado e a desrespeitava como mãe.

Eu estava farta disso.

Estava cansada dos caprichos de Luci, da submissão de minha mãe diante dela, do fato de que todos ali se sentiam na obrigação de servi-lá quando ela não merecia um mísero copo de água. Seus ataques de raiva eram sempre por motivos banais, e todos naquela casa pagavam por isso, por cada peça errada que entrava na vida perfeita dela.

Luci Evans era a pior pessoa que eu já tive oportunidade de conhecer.

Não raciocinei quando caminhei pesado em direção a ela, não cogitei o que poderia dar errado quando ergui a mão e não consegui evitar as lágrimas ao acertar o rosto abobado de minha irmã com um tapa.

- O que... - ela me olha escorada na parede pelo impacto - O que pensa que fez? - Luci chegou a um outro estado de raiva, aquele onde gritos, berros, agressões, choros ou ofensas não bastavam para expressar o que ela sentia, me olhava com indignação perante ao meu ato, com ódio de mim.

Mas eu não dava a mínima para o que Luci sentia por mim. Não importava mais, o foco era fazê-la parar.

- Nunca mais - digo mirando os olhos azuis dela, com uma coragem que nos meus longos vinte anos nunca tive - Repito. Nunca mais diga isso sobre nossa mãe novamente.

Algo como medo percorre pelas orbes azuladas dela, e um pingo de vitória invade o oceano vasto de meu ego quebrado.

Me viro de costas ignorando as duas que agora me olhavam com surpresa. - Tirem o dia de folga, só os que estão cuidando do evento vão ficar. Ninguém aqui entra no quarto de Luci até segunda ordem. - Encaro minha irmã de novo por cima dos ombros - Se arrume sozinha para essa besteira de ensaio de casamento ou eu cancelo essa bobagem ainda hoje. E mãe, saia daqui e fale sobre isso com meu pai, não tenha medo dela.

Saio do quarto às pressas, preciso respirar, a casa parece pequena, não consigo processar o que aconteceu. Eu nunca tive voz nesta casa, mas naquele exato momento todos estavam fazendo o que eu mandei. Como se de alguma forma me respeitassem, mas eu nunca senti como se tivesse tal agrego sobre mim.

Minhas pernas estão castas, preciso de um banho e de uma cama quente, porém, o ensaio. O maldito ensaio não havia sido cancelado. Luci iria pagar por cada evento ridículo que forçava nossa família a participar, volto a subir as escadas mas desviando com prontidão o quarto da tão temida herdeira mais velha, vou até o fundo do corredor, na ala mais escura e afastada. Era um tanto quanto deprimente visualmente falando, entretanto, ninguém imaginaria que aquele era o único quarto distante o suficiente para não escutar os ruídos da casa, conversas paralelas e outras milhares de coisas que incomodavam pessoas que gostavam de ler, além de ter uma visão maravilhosa das colinas que cercam a propriedade e do jardim de girassóis e tulipas. O sol não era tão forte na ala, mas também não a deixava fria, era tudo na medida certa.

A entrada em meu quarto era estritamente proibida, eu mesma o limpava e não me incomodava com isso, uma jovem não iria morrer se limpasse as próprias coisas. Gostava de privacidade e sabia muito bem que seria algo impossível de se ter caso liberasse a entrada, então quando fiz 18, pedi ao meu pai que me deixasse fazer isso sozinha e por vontade própria.

Em minha vida eu sempre tive completa certeza de meu lugar, mesmo não querendo pertencer a ele, eu gostava do luxo, do dinheiro e das inúmeras vantagens que nascer em família rica me proporciona, seria hipocrisia caso dissesse o contrário, mas eu abria mão de uma grande parte para poder viver.

Crescer trancada em uma casa onde aparências importam mais do que qualquer outra coisa era perturbador, eu me casaria com um lorde de uma cidade vizinha daqui a quatro meses, eu nunca o vi, mal sei o seu nome e nem sei se irei gostar tanto dele a ponto de passar o resto da vida com ele, isso era a parte ruim, não ter vontade própria, não poder se defender e ter que aguentar qualquer atrocidade que façam a você em nome da família.

Eu odiava isso, com todo o meu ser.

Já Luci parecia não se importar com esse fato, ela viu o noivo duas vezes na vida e proclamou aos quatro cantos do mundo que o ama profundamente, tenha paciência, nunca ri tanto em minha vida no dia em que ela disse isso em voz alta.

Como ela pode amar um homem que não conhece?

Desamarro o corpete deixando frouxo para relaxar os meus seios esmagados pela força que aquela velha governanta os amarrou dentro daquela armadilha, era lindo, mas nada confortável. Percebo que meus pés estão descalços e me dou conta que esqueci o par no meio da escada, estou cansada demais para ir buscá-los, quando estiver indo para o ensaio aproveito a deixa para pegá-los. Deito-me em minha cama, relaxando as costas nos lençóis emaranhados e dos cobertores espalhados, talvez a ideia de eu mesma limpar o meu quarto não fosse a melhor mas pelo menos era minha bagunça, só minha e ninguém teria o direito de tirá-la de mim.
Passo minutos a fio tentando tomar coragem para levantar e ir me lavar, mas quando me deparo, já estou quase pegando no sono quando alguém bate na porta.

Me assusto como primeira reação, porém, logo peço para quem quer que esteja atrás daquela porta entrar.

Era o meu pai. O meu amado pai que eu mal trocava palavras estava para de pé na minha porta.

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