﹙003﹚ 𝐉𝐔𝐒𝐓 𝐒𝐔𝐑𝐕𝐈𝐕𝐈𝐍𝐆 .
FEVEREIRO DE 2024
Uma semana depois.
Eu não morri.
Infelizmente.
Apenas ignorei. Tentei esquecer. Fingi que nada aconteceu. Mas era impossível. Ainda mais quando você tem que conviver com o cara que um dia foi tudo para você, e agora age como se te odiasse com cada fibra do corpo.
Zachary.
Eu não sabia dizer o que doía mais: a frieza dele ou o fato de que, no fundo, eu ainda me importava.
Hoje é meu primeiro dia na faculdade. Eleanor Fine Arts University, ou EFAU. Faculdade de fotografia. Não era o que esperavam de mim, mas, ao mesmo tempo, todos esperavam.
Minha mãe queria que eu estudasse direito. Meu padastro, administração. Mas fotografia sempre foi minha válvula de escape. Algo que eu podia controlar, congelar no tempo, diferente da minha vida, que sempre parecia escapar por entre meus dedos.
E no momento, havia um cigarro entre meus dedos. Como sempre.
O carro de Blake seguia pela estrada em uma velocidade aceitável, mas minha mente ainda estava presa na noite em que tudo saiu do controle.
──── Tá melhor? ──── Blake perguntou, pegando o cigarro de mim e tragando como se fosse dele.
Soltei uma nuvem de fumaça, revirando os olhos.
──── Sim, já tô melhor ──── menti.
A verdade era que eu me sentia vazia. Como se algo tivesse sido arrancado de mim naquela noite. Algo que eu não conseguia nomear.
Eu perguntei para Blake o que tinha acontecido, e ele repetiu a mesma história de sempre: ele e Bennett me encontraram dormindo no carro dele.
Mas eu sabia que isso não era verdade.
Eu não estava dormindo. Eu estava desmaiada.
Eu me lembrava dos lírios brancos. Da sensação do chão de terra sob minhas mãos. Da figura sombria com o machado.
Mas eu não ia contar.
Porque eu sabia o que aconteceria se eu contasse.
Eles achariam que eu estava louca.
A EFAU ficava a poucos quilômetros de casa. Mas em um bairro como Lake Hill, tudo era perto. Pequena, sufocante, tradicional. O tipo de lugar onde todo mundo conhece todo mundo, e os sobrenomes carregam mais peso do que qualquer diploma.
A EFAU não era diferente. Uma instituição elitista, repleta de jovens herdeiros que fingiam ser artistas enquanto queimavam dinheiro dos pais. O edifício era imponente, um contraste de branco e preto que exalava sofisticação e exclusividade. Suas janelas de vidro refletiam a cidade como se pertencessem a outro mundo, um mundo onde dinheiro comprava não apenas status, mas também talento e influência.
Ao atravessar os portões de ferro trabalhado, senti o peso dos olhares analisando cada passo meu. Filha da senadora. Herdeira da família Law. Bastarda dos Morissette. Eu não precisava que ninguém dissesse em voz alta; estava escrito em cada sussurro, em cada olhar carregado de julgamento.
Aqui dentro, eu não era apenas uma estudante de fotografia. Eu era um nome. Uma história. E, acima de tudo, um erro que nunca deveria ter acontecido.
Caminhando pelos corredores da universidade, minha visão ficava levemente turva nos cantos, distorcendo as extremidades como se eu estivesse presa em um sonho mal ajustado. Isso já era normal para mim.
Síndrome de Alice no País das Maravilhas.
Eu já havia me acostumado com a sensação de que o mundo ao meu redor às vezes parecia encolher e crescer sem aviso. Como se as paredes se alongassem, os corredores se estreitassem e o tempo simplesmente perdesse o sentido.
Quando eu tinha nove anos, minha mãe percebeu que algo estava estranho. Eu falava sobre coisas que pareciam mudar de tamanho do nada, sobre minutos que passavam como horas ou horas que desapareciam em segundos. Eu achava que era normal, mas ela não.
Então, ela me levou ao médico.
O diagnóstico veio rápido. Uma condição rara e sem muita explicação. Nenhuma cura, apenas um fato sobre mim que eu teria que aceitar.
Desde então, eu vivi assim. Vendo o mundo de um jeito que ninguém mais via. E, às vezes, me perguntando se aquilo era mesmo só uma condição neurológica...
Ou se eu estava vendo algo que ninguém mais conseguia enxergar.
Talvez fosse por isso que eu gostava tanto das festas de Blake.
As luzes piscando em tons de neon, a batida da música reverberando dentro do meu peito, a sensação de perder o controle sem que ninguém realmente se importasse. A bebida queimando na garganta, as drogas nublando meus pensamentos, os toques desconhecidos de corpos quentes e despreocupados.
Ali, no meio do caos, eu não era a garota estranha que via o mundo distorcido. Não era aquela que se perguntava se estava ficando louca.
Eu era só mais uma.
Mais uma que ria alto demais, que bebia até perder o equilíbrio, que se jogava sem pensar.
E pela primeira vez, eu sentia que pertencia a algum lugar.
Empurrei a porta do banheiro feminino com mais força do que pretendia, fazendo-a bater contra a parede com um estrondo. O som ecoou pelo espaço vazio, mas ninguém apareceu. Era a primeira aula, e eu duvidava que alguém estivesse ali. Melhor assim.
Me apoiei na pia de mármore frio, sentindo o peso do dia inteiro antes mesmo dele começar. A voz da minha mãe ainda ecoava na minha cabeça, seca e objetiva, como sempre.
"Não esqueça de tomar seu remédio."
Nada mais. Nem um "boa sorte", "vá com Deus", ou qualquer coisa remotamente carinhosa. Apenas um lembrete, quase uma ordem.
Eu sabia que os remédios me ajudavam. Deveriam me ajudar. Mas às vezes parecia que, para ela, era a única coisa que importava. Como se meu bem-estar dependesse unicamente das pílulas que eu engolia todas as manhãs. E talvez dependesse mesmo. Talvez ela estivesse certa.
Mas eu também sabia que um dia isso não seria suficiente. Um dia, tomar meus remédios não seria o bastante para impedir o que quer que estivesse me esperando no final dessa estrada tortuosa que era a minha vida.
Antidepressivos, triptanos para as enxaquecas, antiepilépticos. Três de uma vez, quase sempre. Um coquetel químico que deveria me manter funcional.
Abri a bolsa, sentindo os frascos frios entre meus dedos. Peguei os comprimidos e os encarei por um instante, como se esperasse que me dessem alguma resposta. Como se, de alguma forma, aquelas pequenas pílulas tivessem o poder de consertar tudo.
Joguei os comprimidos na boca e engoli com um gole de água direto da torneira. O gosto amargo ficou na minha língua, e por um segundo, um pensamento sombrio cruzou minha mente.
E se um dia eu tomasse mais do que deveria?
Meus pensamentos foram interrompidos por um fungar baixo, um som abafado de alguém tentando conter o choro.
Franzi a testa, meus olhos varrendo o banheiro silencioso.
──── Tem alguém aí? ──── perguntei, inclinando-me ligeiramente para espiar entre as cabines.
Por um momento, apenas o som da minha própria respiração preencheu o espaço. Então, com um rangido suave, uma das portas se abriu.
Uma garota loira saiu de lá. Pequena, magra, de olhos mel que pareciam brilhar sob a luz fria do banheiro. Seu rosto estava manchado de lágrimas, mas sua expressão não revelava nada. Apenas ignorou minha presença, caminhando diretamente até o espelho.
Sem dizer uma palavra, pegou um gloss da bolsa e começou a passá-lo nos lábios com a precisão de quem já fez isso mil vezes. Como se não estivesse chorando segundos atrás. Como se eu não estivesse ali.
Porra.
O contraste entre sua aparência frágil e a frieza do seu comportamento me deixou desconfortável. Ela enxugou os vestígios de lágrimas com um gesto rápido, sem nem estragar a maquiagem. Treinada. Acostumada.
Eu deveria dizer alguma coisa? Perguntar se ela estava bem? Mas parte de mim sabia que ela não responderia. E se respondesse, provavelmente mentiria.
Então apenas encostei na pia ao lado, observando-a pelo reflexo do espelho.
──── Gloss resolve tudo? ──── soltei, sem pensar muito.
Ela parou por um segundo, os olhos encontrando os meus no reflexo. Um meio sorriso surgiu, mas não havia humor ali.
──── Pelo menos esconde ────
Soltei uma risada baixa, balançando a cabeça enquanto observava a garota pelo reflexo do espelho. Havia algo nela, algo na forma como se recompunha tão rapidamente, como se estivesse acostumada a esconder as rachaduras, que me intrigava.
Foi só quando olhei melhor que percebi: ela não era da elite.
Não reconhecia seu rosto, e em um lugar como a EFAU, onde todo mundo sabia quem era quem, isso significava alguma coisa.
──── Qual seu nome? ──── perguntei, cruzando os braços.
A garota fechou o tubo de gloss com um estalo suave antes de me encarar diretamente, sem qualquer hesitação.
──── Lessie Nowak ──── Sua voz era firme, mas carregava um tom de desafio, como se já soubesse o que viria a seguir. Antes que eu pudesse perguntar qualquer coisa, ela completou: ──── E antes que você pergunte, sim, eu sou bolsista ────
Direta. Sem rodeios. Como se estivesse acostumada a esse tipo de conversa.
Bolsistas na EFAU eram raros, quase como peças exóticas dentro da bolha de luxo e privilégios da universidade. E eles sabiam disso. Sabiam que eram vistos como estranhos no ninho, como alguém que deveria agradecer todos os dias por ter o "privilégio" de estudar ali.
Mas Lessie não parecia do tipo que agradecia alguém.
Mordi os lábios, tentando decifrar a garota à minha frente. Seu tom não era exatamente hostil, mas havia algo afiado nele, como se estivesse sempre pronta para um ataque.
──── Faz faculdade de quê? ──── perguntei, inclinando levemente a cabeça.
Lessie ergueu uma sobrancelha, cruzando os braços enquanto me encarava com um brilho divertido nos olhos mel.
──── Teatro ──── Ela disse como se fosse óbvio, como se qualquer um pudesse perceber só de olhar para ela. Depois, um sorrisinho provocador surgiu em seus lábios enquanto acrescentava: ──── E você, riquinha? ────
Riquinha.
Soltei uma risada pelo nariz, sem me incomodar com o apelido. Era sempre assim. Qualquer um que não fazia parte da elite de Lake Hill já assumia que eu era igual ao resto deles.
──── Fotografia ────
Os olhos dela brilharam com um interesse genuíno por um instante, mas logo sua expressão voltou ao tom casual de antes.
──── Então você gosta de capturar momentos, e eu de fingir que sou outra pessoa. Interessante ────
Olhei para ela de cima a baixo, tentando entendê-la. Tinha uma confiança desconcertante, algo na forma como me olhava sem medo, sem aquela necessidade de agradar que muitas pessoas aqui dentro tinham.
Soltei uma risada baixa, ainda um pouco incrédula. Peguei minha mochila de cima da pia e me joguei contra a porta, empurrando-a com o ombro.
Antes de sair, lancei um último olhar para ela pelo reflexo do espelho.
──── Nos vemos por aí, Lessie ────
Ela não respondeu de imediato, apenas passou mais uma camada do gloss nos lábios, como se não tivesse pressa alguma.
Mas antes que a porta se fechasse atrás de mim, ouvi sua voz ecoar pelo banheiro.
──── Mal posso esperar, riquinha ────
⋅˚₊‧ ୨୧ ‧₊˚ ⋅
Depois da aula, sabia que Blake demoraria para chegar. E não era necessário explicar o motivo. A boate. Ele sempre se enrolava por lá, como se fosse a única coisa que realmente importasse para ele.
Me sentei na escadaria da escola, o frio da pedra penetrando através das calças, e acendi um cigarro. A fumaça subiu devagar, dançando no ar, e eu a segui com os olhos, pensando no quanto meu mundo também parecia se dissipar lentamente. Cada dia, mais difícil de controlar, mais difícil de respirar sem a sensação de estar me afogando em tudo o que não podia dizer.
A EFAU estava vazia, exceto pelos poucos alunos que passavam apressados, olhando para mim como se eu fosse uma estranha. Talvez fosse mesmo. Ali, no meu próprio lugar, me sentia cada vez mais desconectada.
Olhei para o cigarro, sentindo o calor na ponta, e me perguntando se ele ajudava a apagar a ansiedade ou se só a tornava mais evidente. Cada tragada parecia me manter à tona, mas o alívio era temporário. Por mais que tentasse, não conseguia parar de pensar na noite em que tudo tinha saído do controle, e no quanto nada parecia ser mais real do que aquele momento de vazio.
Respirei fundo e soltei a fumaça, observando as palavras não ditas se dissipando junto com ela.
No final do corredor, avistei Lessie. Ela estava conversando com um garoto, que não parecia saber o significado de "não". Ele insistia, tentando impressioná-la com palavras que ela parecia ignorar completamente. Quando ele passou dos limites, ela deu uma risada seca e, antes que ele pudesse reagir, soltou uma série de xingamentos que ecoaram pelo corredor. Era um espetáculo. Ele ficou boquiaberto, sem saber o que fazer, até que ela, sem hesitar, deu-lhe um tapa firme no rosto. O som foi nítido, como um estalo em meio ao silêncio.
O garoto, agora ruborizado de vergonha e raiva, não disse mais uma palavra. Menos de um segundo depois, Lessie virou-se e caminhou até mim, com aquele passo confiante e descomplicado. Sentou-se ao meu lado na escadaria, seu comportamento inabalável como sempre. Puxou um cigarro de dentro da jaqueta, o acendeu com um gesto rápido e experiente, e então me entregou a ponta, sem pedir permissão, como se já soubesse que eu aceitaria.
──── Melão ──── ela disse, exalando a fumaça do cigarro, o cheiro doce preenchendo o ar ao redor de nós. Não era um sabor qualquer, mas algo inesperado, quase contraditório com a sua aura de rebeldia.
Eu a observei, mais curiosa do que qualquer coisa. Ela tinha essa habilidade de ser quem quisesse quando quisesse. Agora, ao meu lado, parecia o oposto do que eu era. Ela não se importava com nada. Ou, pelo menos, parecia não se importar. E isso, de algum jeito, me incomodava e me atraía ao mesmo tempo.
──── O que foi isso? ──── Perguntei, ainda sem entender por completo a cena que acabara de presenciar.
Lessie deu de ombros, como se o incidente fosse algo trivial. Olhou para mim, soltando a fumaça devagar, e disse, com um sorriso torto no rosto:
──── Garotos são sempre iguais, riquinha. Eles acham que podem tudo, até tomar um tapa na cara ────
O sarcasmo na sua voz não passou despercebido, mas havia algo mais ali. Uma frieza calculada, como se ela soubesse exatamente o que estava fazendo e a que se arriscava.
Eu, por outro lado, me senti deslocada, mais uma vez. Ao meu redor, a escola parecia um grande teatro onde todos interpretavam seus papéis, mas Lessie... Lessie parecia ser a única que sabia ser ela mesma, no palco ou nos bastidores.
Ofereci o cigarro de volta, e ela simplesmente sorriu, um sorriso rápido, sem desviar os olhos.
──── Melão é só o começo ──── ela disse, com um tom de desafio, antes de se recostar na parede fria, fazendo tudo parecer tão simples, enquanto a fumaça ao redor nos envolvia como uma espécie de barreira, um escudo invisível que nos separava do mundo lá fora.
Agora, eu não sabia se estava tentando entender a garota à minha frente ou se estava simplesmente tentando me encontrar em meio a tudo isso. Mas uma coisa era certa: algo em Lessie me fazia questionar se, talvez, eu pudesse começar a me perder de mim mesma também.
──── Eu joguei seu nome no Google ──── Lessie disse, soltando uma risada baixa, como se estivesse se divertindo com algo que apenas ela sabia. Ela fez uma pausa, observando minha reação. Quando os olhos dela finalmente encontraram os meus, ela continuou, com aquele tom curioso que sempre parecia marcar suas palavras. ──── Você é filha da senadora? ────
A pergunta veio sem rodeios, direta e implacável. Não era surpresa; ela era daquele tipo de pessoa que não tem medo de arriscar, de tirar as camadas de mistério que cercam os outros. Mas, de algum jeito, isso me fez sentir vulnerável. Como se o mundo estivesse tentando me encaixar em um lugar que eu não havia pedido.
──── Por que isso importa? ──── Perguntei, tentando manter a voz firme, mas não consegui esconder a leveza do desconforto. Eu sabia que o nome da minha mãe carregava peso, e não necessariamente o tipo de peso que eu gostaria de carregar.
Lessie deu um sorriso quase divertido, como se já soubesse a resposta antes de eu perguntar. Ela acendeu outro cigarro, mais uma vez me oferecendo a ponta, mas dessa vez eu hesitei. Em vez de aceitar, apenas observei a fumaça se espalhando no ar, observando a maneira como ela parecia tão à vontade na própria pele, como se o resto do mundo fosse apenas uma distração.
──── Você é uma herdeira, não é? ──── ela disse, seus olhos cintilando com um interesse renovado. ──── Filha da política, vivendo nas sombras da fama. Deve ser... interessante ────
Havia algo no modo como ela disse "interessante" que não soou como um elogio. Era mais uma observação fria, quase como se ela estivesse medindo o peso da minha vida em uma balança invisível. Um julgamento não falado que pairava entre nós.
Eu senti o calor crescente no meu rosto. Não era a primeira vez que alguém fazia essa associação, mas com Lessie parecia diferente. Ela não me olhava com os mesmos olhos de admiração ou medo que a maioria das pessoas da escola. Não parecia me ver como algo a ser idolatrado ou invejado. Ela me via como eu era, ou, pelo menos, como ela queria que eu fosse. E isso me desconcertava.
──── Não sei se "interessante" é a palavra certa ──── respondi, tentando não mostrar o quanto aquela análise me afetava. ──── Mas eu definitivamente não pedi essa vida ────
Lessie riu, mais uma vez sem pressa, sem se importar com o que eu sentia ou com o que o resto do mundo pensava. A maneira como ela se entregava ao momento, sem arrependimentos, me fez questionar se ela sabia algo que eu não sabia. Algo sobre viver fora das expectativas, fora das regras que as pessoas tentam impor.
Ela deu uma tragada longa, deixou a fumaça escapar lentamente, e seus olhos se encontraram com os meus mais uma vez, agora com um brilho diferente, mais intensamente curioso.
──── Você ainda vai se acostumar, riquinha. Vai ver. Um dia, vai estar tão cansada de ser o que eles querem que você seja, que vai começar a querer ser só você mesma ────
Eu não sabia se ela estava tentando me dar um conselho ou se estava apenas provocando. Mas, naquele momento, ao olhar para Lessie, com seu cigarro e seu sorriso desafiador, percebi que ela sabia algo que eu ainda não entendia. Algo sobre a liberdade que vem de se despir das máscaras e viver sem se preocupar com o que os outros pensam.
──── Eu não sou exatamente a herdeira da família Morissette. Mas sou, sim, a herdeira da minha mãe, da família Law. O verdadeiro herdeiro, é meu irmão, Blake. Ele é o escolhido, o "legítimo", se é que você entende o que quero dizer ──── expliquei, tentando dar uma dose de sinceridade à minha voz, embora soubesse que estava evitando as camadas mais complicadas dessa história.
Lessie me olhou com um interesse calculado. Ela não parecia impressionada, mas também não estava desinteressada. Pegou o celular do bolso, desbloqueou com um gesto rápido e começou a digitar no Google, a tela iluminando seu rosto por um segundo. Eu ri baixo. Nunca fui muito boa em esconder que, para ela, eu era apenas mais uma curiosidade a ser explorada.
Ela parou por um momento, lendo o que tinha encontrado, e então voltou a me olhar com um sorriso travesso.
──── Vamos ver o que eu encontro... ──── murmurou para si mesma, como se fosse uma espécie de desafio.
──── "Família Law"... ──── Ela leu em voz alta, antes de começar a fazer uma pesquisa frenética. Eu não sabia se estava mais curiosa com o que ela encontraria ou com a sua habilidade de se envolver tanto em algo tão trivial. Finalmente, ela fez uma pausa e me olhou de canto, como se tivesse encontrado algo, mas ainda estivesse tentando entender.
──── Originais da Inglaterra, certo? E são donos de uma universidade há mais de 70 anos? Ou... uma marca de vinhos? ────
Ela hesitou, e eu não pude evitar uma pequena risada. Ela parecia estar formando uma teoria na cabeça, mas parecia meio perdida em seu próprio raciocínio.
──── Marca de vinhos ──── respondi com um tom quase indiferente, embora, no fundo, soubesse que o nome "Law" carregava mais do que apenas negócios. Aquela marca de vinhos era o símbolo da nossa dinastia, de um legado que se expandia de uma geração para a outra. Um símbolo de status, claro, mas também um peso.
Lessie olhou para mim por um segundo, com um brilho de compreensão, mas também uma ponta de desafio.
──── Ah, claro. Nada como um bom vinho para vender a ideia de classe e tradição ──── Ela parecia brincar, mas havia algo em seu olhar que sugeria que ela estava começando a entender a complexidade por trás de quem eu era. Ou, talvez, ela estava apenas tentando me decifrar, como se eu fosse um enigma a ser desvendado.
Eu balancei a cabeça, fingindo que a atitude dela não me incomodava.
──── Não é tão glamouroso quanto parece. Só um monte de dinheiro e convenções. E, sim, uma empresa que passou de geração em geração ────
Lessie deu uma risadinha baixa, sem desviar o olhar, e então jogou o celular de volta na bolsa.
──── Já vi isso antes ──── ela disse, mais para si mesma do que para mim. Eu a observei, intrigada, sem saber se aquilo era algum tipo de elogio ou apenas uma observação.
──── O quê? ──── perguntei, embora já tivesse uma ideia do que ela poderia querer dizer.
Ela deu de ombros.
──── Famílias grandes, dinheiro, expectativas... O peso de ser alguém importante, sem querer realmente ser. Parece cansativo ────
Havia uma verdade crua nas palavras dela, algo que me fez parar por um momento e realmente refletir. Eu costumava fugir dessas conversas, desviar para não mostrar o quanto aquilo me afetava. Mas, de alguma forma, Lessie não tinha medo de tocar nas feridas abertas.
──── E você? ──── perguntei, tentando mudar o foco da conversa. ──── Tem família? ────
Lessie hesitou por um momento, uma pausa curta, mas perceptível. Talvez eu tivesse sido um pouco insensível. Ela não parecia exatamente a pessoa que compartilhava seus sentimentos facilmente, mas ao menos estava disposta a falar.
──── Dois irmãos. Gêmeos. Dieter e Gustav. Eles fazem... um pouco de tudo. Se é que me entende? ──── Ela disse isso com uma expressão vaga, como se estivesse tentando encaixar as palavras certas para algo que, na verdade, não tinha uma forma clara.
Levantei uma sobrancelha, sentindo a curiosidade borbulhar em mim. Lessie, com seu jeito de falar sem filtro, era uma mistura intrigante de frieza e humor. Eu não sabia se deveria acreditar em tudo o que ela dizia, mas alguma coisa no jeito dela me dizia que estava sendo honesta. E ainda assim, não conseguia imaginar como aqueles dois irmãos poderiam ser tão diferentes dela.
──── Trafi... ──── comecei a falar, já desconfiando de onde ela estava indo, mas não consegui me conter. ──── Não me diga que eles são... ────
Lessie me olhou com um sorriso malicioso, como se estivesse se divertindo com a minha reação. Ela deu de ombros, soltando uma risada baixa e sem remorso.
──── Também ──── ela respondeu, sem pressa de me dar mais detalhes, como se já soubesse que eu poderia fazer minhas próprias suposições.
Eu não sabia se me sentia mais chocada ou impressionada. Lessie não estava apenas se afastando dos estereótipos de "boa menina" da elite, ela parecia completamente alheia ao que o mundo esperava dela. Ela falava dos irmãos como se fosse a coisa mais normal do mundo, como se traficantes e criminosos fossem uma espécie de mercado de trabalho válido, sem as dramáticas cores que a sociedade sempre atribuía a esse tipo de vida.
──── Isso é... interessante ──── falei, tentando disfarçar minha surpresa. ──── Então seus irmãos fazem o que exatamente? Sem julgamentos, é claro ────
Lessie deu mais uma tragada no cigarro, o cheiro doce de melão preenchendo o ar ao redor de nós. Ela estava começando a se abrir, mas a maneira como falava ainda tinha uma camada de mistério, como se não fosse fácil descascar a casca que a envolvia.
──── Dieter e Gustav? Eles vendem de tudo. Drogas, dinheiro, informações, você sabe... ──── ela fez uma pausa, como se estivesse escolhendo as palavras com cuidado, ou talvez apenas se divertindo com o meu desconforto. ──── Não tem muito glamour nisso, se você acha que é como nos filmes. Só pessoas desesperadas tentando conseguir o que querem. A diferença é que, em vez de se esconderem, eles fazem questão de ser... bem visíveis ────
Fiquei em silêncio por um momento, tentando processar o que ela acabara de dizer. O que ela estava me contando não era apenas sobre seus irmãos, era sobre a vida que ela, de algum modo, aceitava como normal. Uma vida sem as amarras do certo e do errado, onde as escolhas eram guiadas pela sobrevivência e pelo desejo de poder.
──── Uau ──── foi tudo o que consegui dizer.
Lessie sorriu, o tipo de sorriso que dizia "Eu sei que você está surpreso, mas está tudo bem". Ela não parecia envergonhada de nada disso, como se fosse apenas uma parte da história dela, nada mais, nada menos.
──── Não se impressione ──── ela disse com um tom de voz casual. ──── Não sou do tipo que entra nesse mundo. Só observadora. Mas eles... bem, sabem o que fazem ────
Por um momento, me vi sem palavras. Olhando para ela, para aquela garota que, de alguma forma, parecia mais real e menos encoberta pelas máscaras da sociedade do que eu jamais seria. Ela estava vivendo à margem das expectativas, desafiando tudo o que eu achava que sabia sobre vida, sobre o certo e o errado.
──── Então, o que você faz? ──── perguntei, tentando mudar a direção novamente, sentindo uma pontada de curiosidade genuína. ──── Além de... observar? ────
Lessie deu uma risada baixa, como se tivesse mais para contar, mas preferisse guardar tudo para si. Ela sabia que eu queria saber mais, mas também sabia que não me daria todas as respostas.
──── Eu só vivo ──── ela respondeu com um sorriso enigmático, apagando o cigarro na beira de uma lata de lixo próxima. ──── E isso, minha cara, é mais complicado do que você imagina ────
Finalmente, Blake apareceu. O som da buzina ecoou pelo estacionamento vazio, um barulho que ele adorava fazer só para se exibir. Lá estava ele, com o carro do papai dele, o que parecia ser a extensão do ego dele. Como sempre, a imagem era mais importante do que a essência. E para completar a cena, ele já estava me bombardeando com um milhão de mensagens ao mesmo tempo, o que só mostrava como ele nunca era capaz de se comunicar de forma direta. Eu sorri sarcasticamente ao ver a tela do celular iluminada por tantas notificações.
Levantei-me, decidida a não perder mais tempo. Antes que pudesse dar o primeiro passo na direção do carro, porém, uma mão inesperada agarrou meu pulso. Lessie, que me olhava com aquele olhar desafiador, como se soubesse exatamente o que eu estava pensando.
──── Se precisar, riquinha, eles também são seguranças particulares ──── ela disse, com uma leve risada, sem sequer se incomodar em esconder o quanto estava se divertindo com a situação. ──── Até amanhã ────
Ela me soltou o pulso com um movimento rápido, como se fosse algo trivial, e levou o cigarro à boca, puxando mais uma tragada, o cheiro de melão impregnando o ar entre nós.
Eu dei uma risada baixa, sem acreditar que ela acabara de me oferecer aquilo, como se fosse algo tão simples quanto trocar uma informação qualquer.
──── Vou ver se o valor está na minha mesada milionária, até amanhã ──── respondi, um sorriso irônico brincando nos meus lábios.
Lessie arqueou uma sobrancelha, sem perder o ritmo, como se a troca de farpas já fosse uma parte natural da nossa interação. Ela parecia sempre pronta para provocar, mas havia algo mais por trás de suas palavras. Algo que, apesar de sua postura de quem "não se importa com nada", dizia muito sobre sua visão de mundo. Uma visão dura, realista, onde as pessoas jogavam as regras para o alto e viviam de acordo com suas próprias normas.
Ela deu mais uma tragada, a fumaça saindo devagar de seus lábios, como se não tivesse pressa nenhuma. Menos preocupada com o que acontecia ao seu redor do que com as pequenas vitórias que conquistava na troca de palavras.
Eu a observei por mais um momento, mas logo dei de ombros, sabendo que já tinha o suficiente para pensar por um bom tempo.
O som da buzina de Blake voltou a me chamar de volta à realidade. Não que eu quisesse voltar, mas ele não ia esperar para sempre. E, sinceramente, eu não estava muito a fim de prolongar essa conversa com Lessie. Não ainda.
──── Até amanhã, Lessie ──── eu disse, virando as costas e começando a andar em direção ao carro de Blake.
Ela não respondeu imediatamente, apenas continuou ali, imersa no seu próprio mundo. Antes que eu pudesse abrir a porta do carro, porém, escutei sua voz ecoar atrás de mim, sem pressa alguma, com aquela mesma confiança de sempre.
──── Nos vemos, riquinha ────
Sorri para mim mesma, sem olhar para trás, e entrei no carro de Blake, deixando tudo o que acabara de acontecer para trás. Mas algo em mim sabia que Lessie não era uma pessoa fácil de esquecer.
Entrei na BMW de Blake e me joguei no banco de couro com uma sensação de exaustão que parecia ser mais do que física. Suspirei profundamente, tentando processar tudo o que tinha acontecido nas últimas horas. O peso da conversa com Lessie ainda estava na minha cabeça, e o fato de que Blake sequer notara minha expressão de cansaço só me fez sentir mais distante.
Blake deu uma olhada rápida para mim antes de ligar o carro e, com um sorriso de quem ainda estava totalmente imerso no próprio mundo, perguntou:
──── Como foi a aula, Lope? ────
Eu o olhei com um olhar cansado, sem paciência para suas tentativas de manter tudo leve e descontraído. Não era que eu não gostasse dele, mas às vezes ele parecia viver em um universo paralelo onde nada realmente importava.
──── Uma merda ──── resmunguei, revirando os olhos. Minha voz estava carregada de frustração, e não tinha como esconder isso. Eu sabia que ele não ia entender, mas precisava dizer de algum jeito.
Ele soltou uma risada, aquela risada imatura e despreocupada que fazia qualquer coisa parecer irrelevante, e começou a dirigir. O som do motor da BMW preencheu o espaço, mas não parecia ter o poder de acalmar meus pensamentos.
──── Ah, então foi ótima, né? ──── ele zombou, ignorando o tom sério da minha resposta. Ele parecia genuinamente achar que eu estava brincando, ou que tudo na faculdade era um grande jogo de aparências.
Blake girou o volante com um movimento suave, desviando de alguns carros enquanto acelerava. Eu me recostei no banco, tentando não me deixar consumir pela raiva que começava a ferver por dentro. Tudo ao meu redor parecia ser uma farsa, e eu não conseguia lidar com isso da maneira que queria. Na verdade, eu nem sabia mais como lidar com nada.
──── Claro que foi ótima ──── continuei, com sarcasmo. ──── Porque não seria, não é? Todos os idiotas riquinhos lá, fingindo que são artistas enquanto desperdiçam o dinheiro dos pais ────
Blake não parecia nem um pouco afetado, o que só aumentava minha frustração. Ele simplesmente riu de novo, sem se dar conta do meu desânimo.
──── Relaxa, Lope ──── ele disse, com um tom de voz leve. ──── Todo mundo se encaixa em algum lugar. Você vai achar o seu, e no final, a faculdade é só um trampolim pra algo maior, né? Vamos aproveitar a viagem ────
Eu o olhei, sentindo o peso da indiferença dele me sufocar. Blake não se importava com o que eu estava dizendo. Ele tinha uma visão simplista das coisas, e não havia espaço para mais do que aquilo. "Aproveitar a viagem", ele dizia. Claro, porque para ele, tudo era uma grande diversão.
A BMW zumbiu enquanto ele acelerava mais rápido, e eu olhei para fora da janela, observando as luzes da cidade se misturando ao meu turbilhão interno. Eu queria ser como Blake, conseguir apenas desligar e seguir em frente, mas havia algo em mim que não conseguia. Algo que me impedia de seguir em frente sem questionar cada pedaço da minha vida.
──── Às vezes eu só queria que as coisas fossem simples ──── murmurei, mais para mim mesma do que para ele.
Blake não respondeu de imediato. Ele parecia absorto no caminho à frente, até que, depois de alguns segundos de silêncio, ele olhou rapidamente para mim.
──── Não vai ser simples, Lope. Mas quem quer que seja simples, né? ──── Ele deu mais uma risadinha, o som de seus dedos batendo na direção do volante, como se isso fosse a solução para todos os problemas.
Eu me calei, sentindo o peso daquelas palavras caírem sobre mim. Eu não queria que fosse simples, mas, por algum motivo, eu também não sabia mais o que queria.
──── Vai ter festa hoje? ──── perguntei, tentando desviar a atenção do peso do meu dia para algo mais trivial, ainda que a pergunta estivesse carregada de uma certa impaciência.
Blake olhou para mim, hesitando por um momento, como se estivesse avaliando se eu realmente queria saber ou se estava só tentando arrancar uma resposta qualquer. Quando ele falou, o tom foi mais baixo, quase como se estivesse lembrando de algo secreto.
──── Na Boate Black Rose? ──── Ele quase sussurrou, como se o nome da boate fosse algo proibido.
Eu revirei os olhos, mais uma vez me segurando para não dar um tapa na mão dele e acabar com essa conversa de uma vez. A verdade era que eu já sabia onde ele queria chegar. Não era uma pergunta inocente, era só um jogo de palavras para se certificar de que eu ainda estava disposta a ir. E, claro, a resposta estava na minha cara.
──── Óbvio ──── eu disse com um tom de sarcasmo, mas a verdade era que Black Rose era o único lugar onde eu conseguia me esconder, onde as regras podiam ser esquecidas, e onde, por algumas horas, tudo o que estava quebrado em mim parecia não importar.
Black Rose. A boate de Blake. O lugar onde ele se sentia mais "em casa". E onde, secretamente, eu me sentia como alguém diferente. Uma versão minha que ninguém sabia quem era. Ninguém, exceto Blake, claro. E talvez Lessie, mas aquela era uma história diferente.
Era o tipo de lugar que minha mãe nunca soube da existência, e que provavelmente não seria capaz de aceitar se soubesse. Ela não entendia essas minhas fugas, essas noites de silêncio entre as luzes de néon, o barulho abafado da música e os rostos desconhecidos. Para ela, eu deveria estar em casa, em uma vida mais "normal". Mas eu não estava. Eu estava ali, e era onde eu queria estar, mesmo que fosse por motivos errados.
Blake deu de ombros, passando a mão pelo cabelo com aquele movimento característico de quem sabe que está no controle da situação. Ele tirou algo de dentro do bolso da jaqueta e me entregou um pequeno saquinho plástico.
──── Claro ──── ele disse, com um sorriso torto, e uma expressão que sugeria que ele sabia exatamente como eu estava me sentindo. ──── Isso vai te ajudar a relaxar um pouco ────
Eu peguei o saquinho, sentindo o peso do que ele me entregava. Não era a primeira vez que ele me dava algo assim, e com ele, essas coisas pareciam sempre tão normais. Para mim, isso era apenas mais uma camada na construção do meu próprio muro de defesa, mais uma forma de continuar fugindo da realidade.
Suspirei, guardando o saquinho na bolsa, sabendo que, mais tarde, eu provavelmente usaria. Não porque eu precisava, mas porque, de algum jeito, fazia tudo parecer mais fácil. Eu não precisava de nada disso, mas, ao mesmo tempo, era a única coisa que me dava algum tipo de alívio.
──── Não sei se "relaxar" é o que eu preciso, mas... ──── eu dei um sorriso fraco, tentando disfarçar o turbilhão de pensamentos que rodava na minha cabeça. ──── Pelo menos me faz esquecer por um tempo ────
Blake deu uma risada baixa, aquela risada de quem sabia que, no final, éramos todos iguais ali. Todos tentando encontrar uma saída, mesmo que fosse só por algumas horas. Ele ligou o carro, e a viagem até a boate começou.
Eu me joguei contra o banco, fechando os olhos por um momento. Talvez, por essa noite, eu fosse encontrar alguma forma de respirar. Mesmo que fosse apenas por um segundo.
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