TWELVE

⚠️Tw: menções a abuso sexual e brigas familiares⚠️

Dez anos antes

A luz da manhã atravessava as cortinas gastas da janela. O cheiro de álcool velho misturado ao de algo queimado parecia ser parte da casa. Você desceu as escadas devagar, os pés descalços fazendo o mínimo de barulho possível no assoalho que rangia a cada passo.

No sofá, sua mãe estava largada de qualquer jeito, a cabeça pendendo para o lado e os cabelos desgrenhados caindo sobre o rosto. Uma garrafa vazia escorregava da mão dela, quase caindo no chão. Você segurou a respiração, passando ao lado dela como se estivesse tentando evitar acordar um urso em hibernação.

Ao chegar à cozinha, você encontrou sua irmã sentada à mesa, com a cabeça baixa e os cabelos cobrindo parte do rosto. O cheiro doce do cereal parecia deslocado no ambiente carregado. Você andou até ela, parando ao lado da mesa.

— Você tá bem?

Sua voz saiu baixa, quase um sussurro, enquanto seus olhos percorriam o rosto dela. Ela levantou a cabeça devagar, revelando a marca roxa que dominava sua bochecha e o corte no canto do lábio. Você engoliu em seco, desviando o olhar para a tigela quase vazia em frente a ela.

— Eu tô bem.

A voz dela soava fraca, cansada. Mas você sabia que não era verdade.

Você puxou uma cadeira e sentou ao lado dela, as mãos inquietas descansando sobre a mesa. O silêncio entre vocês era pesado, mas familiar. Olhando de perto, você viu como as mãos dela tremiam quando seguravam a colher, os dedos marcados por pequenos cortes que pareciam novos.

— Foi ele de novo?

Você perguntou, mesmo sabendo a resposta. Ela hesitou, desviando o olhar para a janela. O vento lá fora sacudia as árvores, mas dentro da casa tudo parecia imóvel.

— Não importa — Ela respondeu, com uma risada fraca que parecia que a qualquer segundo se transformaria em um choro sofrido —, ele já foi trabalhar.

Sua garganta apertou com as palavras dela, mas você não respondeu. Estava sempre assim: silêncio e medo, até o próximo dia, o próximo golpe, o próximo grito. Sua mãe resmungou algo na sala, e o som fez vocês duas congelarem no lugar. Você olhou para a porta como se esperasse que ela entrasse a qualquer momento. Mas o silêncio voltou.

— Sophie, não fica aqui. — Sua irmã quebrou o silêncio, virando-se para você com o olhar urgente. — Um dia isso vai piorar. Você não pode acabar como eu.

Você não respondeu. Não sabia o que dizer. Afinal, onde mais você poderia ir? Você se levantou da cadeira assim que ouviu o som de passos vindo da sala. Era um andar lento, arrastado, mas pesado o suficiente para fazer as tábuas do chão rangerem.

Sua mãe apareceu na porta da cozinha, os olhos vermelhos enquanto ela cambaleava para o lado. Os cabelos desgrenhados emolduravam o rosto envelhecido antes do tempo, e o cheiro de álcool parecia ainda mais forte agora. Ela parou na entrada, encostando-se no batente como se precisasse de apoio para se manter de pé.

— Já tão fofocando de mim, né?

A voz dela era rouca, áspera. Você olhou para sua irmã, mas ela evitava o olhar, como sempre fazia quando sua mãe estava assim. Sabia que, a qualquer palavra errada, a situação poderia piorar.

— Não estamos falando de você. — Você respondeu baixo, tentando manter a calma.

Sua mãe riu, uma risada amarga que soou mais como um grunhido. Ela deu alguns passos para dentro da cozinha, os olhos semicerrados fixos em você.

— Sempre tem a ver comigo. — Ela murmurou, a voz carregada de ressentimento. — A princesinha acha que pode se sentar à mesa e agir como se fosse melhor que todo mundo?

— Mãe, não começa — Sua irmã tentou intervir, a voz fraca —, a Sophie não tem nada haver com isso.

Mas isso só fez sua mãe virar a atenção para ela, os olhos estreitando.

— E você, o que tá fazendo aí com essa cara de coitadinha? Não era pra estar limpando alguma coisa? Ou vai me dizer que tá esperando ele fazer por você?

Sua irmã abaixou a cabeça, apertando os lábios, mas não respondeu. A tensão na sala aumentou, e você sentiu o estômago revirar.

— Não fala assim com ela.

Você disse, a voz firme, embora o coração batesse rápido no peito. Sua mãe riu de novo, mas dessa vez havia algo mais sombrio na risada. Ela andou até a mesa, apoiando as mãos na madeira enquanto inclinava o rosto para você.

— E desde quando você manda aqui, hein?

Ela perguntou, os olhos brilhando com algo que parecia loucura. Você ficou em silêncio, tentando acalmar sua respiração enquanto sua mãe se dirigia à sua irmã. O olhar dela era carregado de algo ainda pior do que o ódio, desprezo.

— E você? — Ela começou, apontando um dedo trêmulo para sua irmã. — Tá toda machucada, mas aposto que é porque fica se metendo onde não deve.

Sua irmã engoliu seco, desviando o olhar.

— Não é nada, mãe.

Ela murmurou, a voz quase inaudível.

— Nada? — Sua mãe riu, estreitando os olhos. — Você acha que eu sou cega, menina? Acha que eu não vejo o jeito que você fica atrás do seu pai, como uma cachorrinha faminta?

O silêncio tomou conta da cozinha. Você sentiu o sangue gelar nas veias, o coração disparando com a crueldade das palavras dela.

— Mãe, para com isso...

Você tentou intervir, mas sua mãe ergueu a mão, mandando você calar a boca.

— Não. Ela precisa ouvir. — Ela continuou, encarando sua irmã com olhos quase como navalhas. — Fica aí, toda machucada, se fazendo de vítima. Não é ele que te procura, é você que se oferece.

Sua irmã tremeu, apertando os braços ao redor do corpo, mas não disse nada. Você viu uma lágrima escorrer pelo rosto dela, mas ela rapidamente tentou limpá-la com as costas da mão.

— Você tá errada — Você disse, a voz saindo firme, mesmo que tudo dentro de você gritasse para correr dali. —, ele é um monstro, e você sabe disso.

Sua mãe girou o rosto para você tão rápido que você recuou um passo, instintivamente.

— Cala essa boca antes que eu faça você se arrepender.

— Você tá culpando a pessoa errada. Ele é o problema aqui, não ela.

Você respondeu, sentindo as palavras saírem antes mesmo de pensar. Sua mãe ficou imóvel por um segundo, os olhos fixos em você. Então, ela deu um passo à frente, depois outro, até estar a poucos centímetros de você.

— Você acha que sabe de alguma coisa, menina? — Ela sussurrou, o hálito cheirando a álcool e cigarro. — Você não sabe de nada.

Ela se afastou de repente, respirou fundo e coçou os cabelos desgrenhados.

— Vocês duas são iguais. Duas ingratas. — Ela murmurou, voltando para o sofá. — Espero que saibam que tudo que acontece aqui é culpa de vocês.

Você olhou para sua irmã, que continuava em silêncio, os ombros tremendo levemente. Você se aproximou dela, tocando de leve seu braço.

— Tá tudo bem.

Você disse baixinho, mas sabia que era mentira. Nada estava bem, e, no fundo, você sentia que nunca estaria. Sua irmã olhou para você com os olhos marejados, mas não disse nada. O silêncio entre vocês era pesado, como se as palavras presas na garganta dela fossem pedras que a impediam de respirar. Você se sentou ao lado dela, as duas espremidas na pequena cadeira da cozinha. Mesmo machucada, ela tentou oferecer um sorriso fraco, mas você viu o quanto doía até isso.

— Ela não sabe o que tá dizendo.

Você murmurou, querendo que sua voz soasse mais confiante.

— Ela sabe, sim. — Sua irmã respondeu depois de um tempo, a voz rouca, quase quebrada. — Só não se importa.

bVocê franziu a testa, apertando as mãos nos joelhos. O nó no seu estômago parecia crescer a cada segundo.

— Você devia contar pra alguém.

Você disse, o coração batendo rápido enquanto esperava a reação dela. Sua irmã balançou a cabeça imediatamente, os olhos arregalados de pânico.

— Contar o quê? Pra quem? Ele vai me encontrar, Sophie. Ele sempre me encontra.

A intensidade das palavras dela fez seu peito apertar. Você sabia que ela estava certa. Ele sempre dava um jeito de sair impune, de jogar toda a culpa em vocês, de manipular sua mãe até que ela acreditasse que ele era o único certo naquela casa.

— Então a gente devia ir embora.

Você sugeriu, a ideia escapando antes mesmo de você perceber. Ela riu baixinho, mas o som era fraco, quase sem vida.

— Ir embora pra onde? Não temos ninguém. Nem dinheiro — Sua irmã virou o rosto para você, e por um breve momento, viu algo que parecia esperança nos olhos dela. Mas então, ela balançou a cabeça, olhando para baixo novamente. — Não dá, Sophie. Ele... ele nunca vai deixar a gente em paz.

Você sentiu a raiva borbulhar no seu peito. Não era justo. Nada disso era justo. Sua irmã não merecia viver com medo, não merecia carregar as cicatrizes, tanto físicas quanto emocionais, que ele causava.

— Eu vou dar um jeito.

Você disse, quase como uma promessa. Sua irmã te olhou, o rosto cansado e machucado, mas não disse nada. Antes que mais alguma coisa fosse dita, o som da porta da frente se abrindo ecoou pela casa. Vocês duas congelaram, e o ar pareceu desaparecer da cozinha.

— Vai pro quarto.

Você sussurrou para ela, sentindo o coração bater tão forte que parecia prestes a explodir. Sua irmã hesitou, mas, com uma última olhada para você, se levantou e foi. Você ficou, os olhos fixos na entrada da cozinha, esperando.

E então ele apareceu. Seu pai.

Ele tirou o casaco e o pendurou no encosto de uma cadeira, o sorriso nos lábios, mas o olhar... aquele olhar frio e calculado fazia seu sangue gelar.

— Onde tá todo mundo?

Ele perguntou, casual, enquanto abria a geladeira para pegar uma cerveja.

— Minha irmã foi dormir.

Você respondeu, tentando não demonstrar o pânico que crescia dentro de você.

— Ah, é? — Ele virou o olhar para você, dando um gole na cerveja antes de se aproximar. — E você, Sophie? Não tá com sono?

Você recuou um passo instintivamente, mas tentou manter a voz firme.

— Eu tô bem.

— Que bom.

Ele disse, e o tom na voz dele fez cada músculo no seu corpo se retesar. Você sabia o que aquilo significava. Sabia que precisava sair dali, mas ele já estava muito perto. O cheiro de álcool no hálito dele te enjoava, o olhar dele era pesado, predatório. Você correu para o quarto assim que ele deu mais um passo em sua direção. Trancou a porta com tanta força que o trinco tremeu, seus dedos ainda agarrados à maçaneta enquanto você ouvia os passos dele pelo corredor. Sua respiração estava rápida, curta, e o coração batia como um tambor nos ouvidos.

Encostando a testa na madeira, você tentou escutar o que estava acontecendo lá fora. A casa estava estranhamente silenciosa, um silêncio pesado tomava conta de seus ombros.

Então, o primeiro som.

Um grito.

Sua irmã.

Você se afastou da porta, os olhos arregalados, o peito apertado. Cada célula do seu corpo dizia para abrir a porta, para correr até ela, para fazer alguma coisa. Mas você estava paralisada, as pernas pesadas.

— Pai! Para!

A voz dela ecoou mais alto agora, misturada a soluços desesperados. Você apertou as mãos contra os ouvidos, tentando abafar o som, mas ele parecia ainda mais alto, como se estivesse dentro da sua cabeça.

— Alguém... — Você sussurrou, mas a voz falhou. — Por favor...

Outro som, desta vez um barulho seco, como algo sendo derrubado. Sua irmã gritou de novo, e você deu um passo involuntário para trás, tropeçando na cama. De repente, ouviu a porta do quarto dela abrir com um rangido longo e agourento.

— O que tá acontecendo aqui?!

A voz rouca e irritada da sua mãe cortou o ar. Você congelou, segurando a respiração enquanto esperava ouvir algo mais. Mas o que veio em seguida foi silêncio. Um silêncio tão profundo que parecia engolir todos os outros sons da casa.

O chão sob você parecia sumir, a cabeça girava, e o nó no seu estômago apertava como nunca antes. Você se aproximou da porta, hesitante, o ouvido colado na madeira. Nada. Nem um som.

O que aconteceu?

Uma parte de você sabia que deveria sair, que deveria verificar, mas outra parte... outra parte sabia que, seja lá o que estivesse atrás daquela porta, era algo que você nunca esqueceria.

E o silêncio continuava.

O silêncio no quarto era insuportável. Você se afundou no colchão, abraçando os joelhos contra o peito, os olhos cheios de lágrimas que não paravam de cair. Seu corpo tremia, mas não era só o medo que o fazia estremecer. Era a dor. Uma dor tão profunda, tão insuportável, que você não sabia como respirar sem sentir que estava se afogando dentro de si mesma.

A notícia chegou pela manhã, como um soco no estômago.

"Seu corpo foi encontrado no rio."

Você não queria acreditar. Não podia.

A polícia estava fazendo perguntas, olhando para todo mundo, mas ninguém parecia ser culpado. A mãe. O pai. Todos ali, fingindo que nada tinha acontecido. Mas dentro de você, você sabia. Sabia o que tinha acontecido. Sabia o que ele tinha feito. Mas ninguém acreditava em você.

A polícia continuava com as investigações, mas nada mudava. A dor de perder sua irmã era uma ferida aberta, mas o que realmente corroía era a sensação de impotência.

Você se sentou na beira da cama, o rosto entre as mãos, chorando como nunca antes. Não havia mais risos entre vocês. Não havia mais segurança. Só uma sombra de um passado que agora se esvaia por entre os seus dedos com a morte de sua irmã.

Lágrimas escorriam pelo seu rosto, caindo no travesseiro, mas tudo o que você conseguia fazer era esperar. Esperar por justiça, por respostas, por algo que pudesse aliviar a dor. Mas, acima de tudo, você sabia que o silêncio de agora era mais cruel do que qualquer grito que tivesse ouvido.

E enquanto o mundo continuava girando lá fora, você estava paralisada, perdida entre o luto e a raiva, esperando por um fim que nunca parecia chegar.

O silêncio da casa parecia mais pesado desde a morte da sua irmã. Ninguém falava sobre ela. Sua mãe passava o dia inteiro dormindo no sofá, a garrafa de vodka sempre ao alcance da mão. Seu pai saía para trabalhar e voltava como se nada tivesse acontecido, mas você sabia. Ele sabia.

Você vestiu o uniforme escolar com movimentos lentos, tentando não fazer barulho. A camisa azul clara parecia mais apertada do que o normal, ou talvez fosse o nó na sua garganta que tornava tudo insuportável. Enquanto ajeitava a saia no espelho rachado do quarto, você tentou não olhar muito para o próprio reflexo. Os olhos inchados de tanto chorar eram um lembrete constante de que nada estava bem.

O som de passos ecoou pelo corredor. Você congelou por um momento, a respiração presa no peito. Quando a porta rangeu, você já sabia quem era.

— Sophie...

A voz do seu pai soou baixa, quase calma. Você virou de costas para ele, fingindo ajustar a camisa.

— O que foi? Estou me arrumando para a escola.

— Não precisa se apressar tanto, menina. — Ele disse, dando alguns passos para dentro do quarto. O cheiro de cigarro e suor invadiu o ambiente, fazendo seu estômago revirar. — Vem cá, quero conversar.

Você se afastou instintivamente, mas ele era rápido. Antes que pudesse reagir, sentiu a mão dele em seu braço, puxando você para mais perto.

— Me solta!

Você gritou, o pânico tomando conta.

— Não grite comigo, garota!

Ele rosnou, apertando mais forte. Seus olhos estavam fixos em você, mas não como um pai deveria olhar para uma filha. Você lutou, tentando se soltar, e quando ele tentou aproximar o rosto do seu, você agiu por instinto. Com toda a força que tinha, empurrou o peito dele, fazendo-o tropeçar para trás. Ele não esperava a resistência, e isso deu a brecha que você precisava.

"Corre, corre, corre".

    A voz gritou em sua cabeça e sem pensar duas vezes, você correu. O corredor parecia mais longo do que nunca, os sons dos seus passos ecoando como tambores. Sua mãe sequer se mexeu no sofá, os olhos vidrados na TV enquanto você passava por ela. A porta da frente rangeu quando você a abriu, e o ar frio da manhã bateu em seu rosto, mas você não parou. Seus pés a levaram para longe, para qualquer lugar que não fosse aquele inferno.

   Foi então que você viu.

   O depósito no final da rua estava em chamas, a fumaça negra subindo para o céu como uma bandeira de destruição. Havia pessoas correndo, gritando, mas você ficou imóvel por um momento, os olhos fixos nas chamas que pareciam dançar em um espetáculo cruel.

   Seu coração disparou. Não era o tipo de pessoa que ignorava alguém em perigo, mesmo em meio ao caos que era sua própria vida. Sem pensar, você correu em direção ao fogo, ignorando os protestos de quem estava ao redor.

   O calor era insuportável, mas você entrou mesmo assim. A fumaça fazia seus olhos arderem, e a tosse sacudia seu peito enquanto você tentava encontrar a origem do som.

   Foi então que o viu.

   Um jovem estava encurralado entre as chamas e os destroços, o rosto coberto de fuligem e os olhos arregalados de terror. Ele não deveria ser muito mais velho que você, mas havia algo de selvagem nele, uma força que parecia deslocada naquela situação de vulnerabilidade.

   — Ei! — Você gritou, tentando se aproximar. — Eu vou tirar você daqui!

   Ele não respondeu, apenas olhou para você como se não acreditasse que alguém realmente tivesse vindo.

   E, naquele momento, enquanto o fogo rugia ao seu redor, você soube que nada mais importava. Você o salvaria, mesmo que isso significasse se perder também.

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