ONE
Você ergueu os olhos do formulário rabiscado à sua frente, seus dedos deslizando lentamente sobre a caneta que você mal percebeu que segurava com força demais. O silêncio da clínica veterinária era quase sufocante... o tipo de calmaria que não trazia paz... trazia consigo uma sensação desesperadora, seus pensamentos ansiosos, focados em algo alem, em algo que nem ao menos sabia ao certo o que era. As paredes brancas, o cheiro forte de desinfetante, os "bipês" suave que tomavam conta do lugar silencioso, tudo aquilo parecia distorcido, quase como se estivesse deslocado, uma abertura de um portal para uma realidade paralela.
Por uma fração de segundos seus olhos desviaram-se para a janela grande da clínica quase como se fosse uma enorme parede de vidro, onde a chuva fina batia, desenhando trilhas pálidas que desapareciam tão rapidamente quanto surgiam, por algum motivo seu coração acelerou, sua respiração estava pesada, profunda, quase como se seu corpo implorasse para que você fugisse de lá, para que corresse, como se todo o seu ser previsse que algo horrível aconteceria. Você piscou, afastando a sensação persistente de que algo mais estava lá fora. Algo ou alguém.
— Sophie? — a voz de Megumi, suave, porém firme, quebrou o silêncio, fazendo você quase pular de susto. Você virou o rosto em direção a ele, encontrando seus olhos azuis completamente atentos, como se procurassem algo, como se apenas com o olhar ele pudesse deixar claro se o que você falava era verdade — Você está bem? Parece distante hoje.
Megumi sempre soube ler você de uma maneira que poucas pessoas podiam, você era uma pessoa por assim dizer fechada demais, calada demais, quase como se tivesse uma enorme placa pendurada em sua pescoço que gritava: afasta-se e Megumi tinha uma espécie de intuição afiada, quase irritante às vezes... Mas, naquele momento, você agradeceu silenciosamente por sua presença, nos últimos dias a única pessoa que estava fazendo com que você não enlouquecesse por completo era o homem de cabelos escuros levemente espetados.
— Estou bem — você respondeu, a mentira saindo automaticamente de seus lábios, quase como uma cantoria— só... cansada. Nada demais.
Você tentou parecer convincente, mas a verdade era que, nos últimos meses, você vinha se sentindo assim. Observada. Quase caçada. Às vezes, era uma sombra que se mexia no canto do olho. Outras vezes, uma sensação estranha, como se alguém estivesse respirando bem perto de você, quando você estava completamente sozinha.
Megumi franziu o cenho, os olhos azuis desconfiados mas mesmo assim não lhe pressionou, o homem jovem não era do tipo que insistia em perguntas quando você claramente não queria respondê-las e você agradecia mentalmente por aquilo, nunca havia sido o tipo de pessoa que gostava de conversar, apenas ficar próxima das pessoas que eram importantes para si já era mais do que o suficiente para você, ele puxou uma cadeira ao seu lado e começou a folhear alguns papéis que estavam sobre a mesa, o som das folhas de papel rasgando o silêncio.
Você tentou se concentrar novamente no que estava fazendo, mas a sensação de que havia algo errado continuava latejando no fundo da sua mente. Era como uma coceira, impossível de ignorar. Seus pensamentos corriam para a noite passada, quando você jurou ter ouvido passos do lado de fora da sua casa, o som abafado de algo... ou alguém... se movendo pelas sombras. Você tinha se levantado da cama, seu coração martelando contra as costelas, e corrido até a janela, apenas para encontrar o jardim vazio, banhado pela luz fraca da lua.
Mas você sabia. Sabia que havia alguém ali.
O toque do celular sobre a mesa te trouxe de volta à realidade, o nome de Nobara brilhava na tela. você suspirou de maneira cansada já imaginando o que ela queria. Provavelmente outra tentativa de convencê-la a sair naquela noite, beber e dançar, algo que você não tinha a menor vontade de fazer. Não com aquela sensação de estar sendo vigiada a cada momento, sentia que apenas por estar saindo de casa já estava colocando sua vida em risco.
— Você vai sair hoje à noite?
Megumi perguntou, juntando as sobrancelhas em um olhar extremamente reprovador, lendo seus pensamentos, você engoliu em seco antes de negar com a cabeça devagar.
— Acho que não — você respondeu, soltando o ar com força —, não estou no clima para isso.
Ele assentiu, mas você percebeu a sombra de preocupação em seus olhos. Megumi também estava preocupado com você. Ele notava o quanto você estava cada vez mais nervosa, inquieta, como se estivesse à beira de um colapso... E a verdade era que, talvez, você estivesse mesmo, nem ao menos conseguia se lembrar quando havia sido a última vez em que conseguiu dormir mais do que cinco horas antes que acordasse completamente apavorada jurando ver um vulto correndo por seu quarto.
Você passou o resto do dia tentando distrair a mente. Atendeu alguns donos, cuidou de alguns ferimentos simples daqueles animais pequenos, mas sempre havia aquela sensação persistente de que algo estava fora do lugar. Era como se as sombras no canto da sala estivessem se movendo sozinhas, como se os olhos de alguém estivessem sobre você, mas sempre fora do alcance da visão.
Você estava enlouquecendo.
Quando a noite começou a cair, a ansiedade dentro de você cresceu. Era sempre assim. O escuro parecia intensificar tudo; você se despediu de Megumi e saiu da clínica veterinária, o ar frio da noite envolvendo seu corpo em um abraço gélido. Você olhou ao redor, seus olhos varrendo a rua quase deserta, e sentiu o familiar arrepio subindo pela espinha.
Caminhando até o carro, seus passos ecoavam no silêncio, cada som amplificado pela quietude da noite. Você quase podia jurar que havia outro par de passos, seguindo logo atrás, mas quando você se virou, não havia ninguém.
Não havia ninguém.
— Porra, Sophia... você está maluca
Sussurrou para si mesma entrando no carro com certa pressa e fechou a porta com um clique surdo, mas a sensação de estar sendo observada ainda estava ali, grudada em sua pele como uma camada de poeira que você não conseguia limpar, quase como se estivesse impregnada em seu cérebro, o silêncio dentro do carro era pesado, como se o som tivesse sido engolido pelo ambiente ao seu redor. Você ligou o motor, o barulho ruidoso preenchendo o espaço, e tentou se acalmar... Era só a sua mente pregando peças.
Era o que você dizia para si mesma, mas no fundo, sabia que não era só isso.
Conforme você dirigia pelas ruas desertas da cidade, a sensação de inquietação aumentava. Cada sombra parecia mais escura, cada farol piscava com um toque sinistro, e o silêncio ao seu redor era quase esmagador. O rádio do carro estava desligado, e tudo o que você ouvia era o som dos pneus passando pela estrada molhada e o zumbido baixo do motor.
Quando finalmente chegou em casa, um alívio momentâneo se espalhou por você. A casa pequena que havia comprado com as economias que havia juntado antes de fugir de sua cidade natal era simole e aconchegante era o único lugar onde você se sentia segura — ou pelo menos era o que você tentava acreditar —, era repleta de flores claras e um portão enorme de ferro escuro. Você saiu do carro, pegou sua bolsa no banco do passageiro, sentiu novamente aquele arrepio percorrendo sua espinha, o vento frio tocando sua pele como dedos invisíveis. Você virou o rosto para olhar ao redor, a rua vazia iluminada apenas pelas luzes fracas dos postes. Não havia ninguém ali. Você estava sozinha. Respirou fundo e deu alguns passos rápidos até a porta da frente, as chaves tilintando entre seus dedos trêmulos. Quando finalmente entrou, fechou a porta com um suspiro de alívio, a trancando e checando ao menos umas cinco vezes tentando forçar a porta a se abrir para ter certeza que nada lhe observaria dessa vez.
O interior da casa estava quente e acolhedor, mas mesmo ali, algo parecia errado. Uma presença... um peso no ar. Como se houvesse algo a mais ali, escondido, nas sombras. Você tentou ignorar, jogando a bolsa no sofá e indo até a cozinha, mas o desconforto estava sempre lá, seguindo cada um dos seus passos.
A cozinha era pequena, com armários de madeira clara e um balcão que você quase nunca usava. Pegou um copo de água, as mãos ainda tremendo levemente. Seus olhos caíram sobre a janela da cozinha, onde o vidro refletia a sala atrás de você. Algo no reflexo parecia... estranho. Você piscou, forçando os olhos a se ajustarem, mas não havia nada de anormal. Era apenas o cansaço. Isso, e o maldito sentimento de estar sendo vigiada.
"Estou perdendo a cabeça," você pensou, levando o copo até os lábios, a água fria descendo pela sua garganta.
Decidiu ir para o quarto. Talvez uma boa noite de sono fizesse você esquecer dessa sensação de perseguição que se agarrava a cada pedaço do seu dia. Subiu as escadas com passos firmes, cada degrau rangendo levemente sob seus pés. Ao chegar no topo da escada, seus olhos vagaram involuntariamente até a porta do sótão. Ela estava fechada, como sempre, mas hoje, havia algo diferente. Algo perturbador. Você desviou o olhar rapidamente, forçando-se a ignorar.
Não havia nada no sótão.
Não havia nada.
Repetia diversas e diversas vezes como se daquele modo conseguisse fazer sua própria mente, andou até o quarto rapidamente em passos apressados, você trocou de roupa rapidamente, vestindo uma camiseta confortável e se jogando na cama. A luz da lua se filtrava pelas cortinas, criando sombras difusas nas paredes. Você se cobriu, tentando relaxar, mas sua mente não parava. A sensação de ser observada parecia se intensificar na escuridão do quarto, como se os olhos que te perseguiam ao longo do dia agora estivessem fixos em você com ainda mais força.
Foi então que o celular na cômoda vibrou. Você pegou o aparelho, e uma mensagem apareceu na tela:
Desconhecido: "Boa noite, minha luz".
Seu coração deu um salto, o ar preso nos pulmões. Você não reconhecia o número. Suas mãos começaram a suar enquanto você encarava aquelas palavras.
Soph: "Quem é?"
Apenas foi visualizado, nenhuma resposta, você engoliu em seco sentindo seu coração batendo quase que desesperado contra o próprio peito, sem pensar duas vezes bloqueou o número rapidamente sentindo seu ar falhado.
Antes que pudesse processar, outro som encheu o quarto. Não o telefone. Era algo lá fora. Um arranhão leve, vindo da janela. Seu coração começou a bater descontroladamente. Lentamente, você se virou na cama, olhando para as cortinas que tremiam levemente com a brisa da noite. O som se repetiu, mais insistente, como unhas raspando contra o vidro, você prendeu a respiração, sem saber se deveria se aproximar ou ficar imóvel. O medo te paralisava, suas mãos seguravam o cobertor com força. O arranhão continuava, metódico, quase como se alguém estivesse... brincando com você.
Lentamente, você estendeu a mão para as cortinas, as pontas dos seus dedos tocando o tecido macio. Com um único movimento, você puxou as cortinas para o lado, revelando a janela.
Nada.
O vento balançava suavemente os galhos da árvore do lado de fora. Nenhum sinal de alguém, nenhuma pista de que havia algo ali. Mas você sabia, sentia em cada osso do seu corpo, que havia alguém. Ele estava te observando, esperando.
E então, você percebeu. No canto inferior da janela, bem perto da borda, havia uma pequena marca. Um rastro de algo escuro e viscoso. Gasolina.
Seu corpo congelou, o sangue fugindo do seu rosto enquanto você encarava a mancha. O cheiro impregnado em sua memória.
Você fechou a janela com força, trancando-a como se isso pudesse te proteger. Mas nada poderia te proteger dele.
Não mais.
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