1. vida nova, problemas velhos.
PAUL
HÁ UMA RAZÃO PARA lobos viverem em bandos.
Sam havia me dito isso no dia em que decidi partir, essa frase ficou na minha cabeça como se fosse uma maldição. Eu definitivamente me sentia amaldiçoado há algum tempo, como se nada fosse capaz de dar certo. Minha total desesperança tinha um motivo plausível: tudo que eu tocava virava um grande e poderoso pedaço de merda.
A verdade é que eu odiava Los Angeles.
Odiava as pessoas mesquinhas, os lugares imundos e os prédios enormes. Pelos Deuses! Eu odiava até o sol! Nunca pensei que sentiria falta da chuva.
Com o passar dos meses percebi que sentia falta de muitas coisas, sentia falta da matilha, do cheiro da floresta, da comida da reserva e de andar sob quatro patas. Ando em pés há um pouco mais de um ano. Conseguia ver agora em meu rosto jovem um pouco mais de maturidade, um ano muda muitas coisas nas feições que deveriam ser de um adolescente. Isso me agradava, a ideia de que daqui um tempo eu teria um rosto diferente, de que talvez eu me sentisse diferente.
Mas apesar de tudo nunca pensei em voltar. Eu olhava em volta e tudo o que via eram aqueles garotos se tornando homens, se tornando pais, se casando e encontrando um rumo pra vida. E eu só ficava lá, parado, observando tudo. Lutando com os demônios que assolavam minha mente. Doía ver eles. Doía ainda mais saber que eu os invejava.
A inveja é um pecado.
Com o passar dos anos na matilha eu me cansei de ter tantos empregos apenas pra não correr o risco de ficar em casa por tempo demais, me cansei de fugir dos pensamentos felizes dos meus amigos, não queria sentir minha agonia reverberando em cada um deles. Cheguei a conclusão de que não podia mais odiar cada minuto da minha existência.
Precisava mudar e seguir em frente, não havia nada pra mim na reserva.
Isso me faz lembrar do grosso papel no bolso de trás da minha calça, ele pareceu pesar uma tonelada de um momento pro outro. O pego em minhas mãos encarando as letras douradas:
Merliah Wilde Black e Seth Harrison Clearwater convidam você para fazer parte de um momento tão especial em suas vidas.
Isso me deu náusea. Rasgo o convite em vários pedaços minúsculos, levando bastante tempo para garantir um bom resultado. Respiro fundo, descontando toda minha frustração naquela ação idiota.
— Caralho Paul, pode não jogar essa merda no chão?
Resmungo e me agacho, começando a pegar os pequenos pedaços de papel. Cole se aproxima de mim e também se abaixa, me olhando nos olhos. Seu rosto redondo e as covinhas me lembravam o Quil, outra memória que eu preferia apenas ignorar.
— Que foi? — pergunto, desviando meus olhos dos seus.
— Isso me parece um convite — murmura, segurando um dos pequenos pedaços que estavam no chão.
Imediatamente o tomo de sua mão.
— Devia parar de ser fofoqueiro moleque!
Ele ri, mostrando as malditas covinhas.
— É mais forte que eu, eu não posso evitar.
Reviro os olhos enquanto ele se levanta. Consigo ouvir seus passos se afastando e o barulho da vassoura começando.
— Deixe tudo ai, já vou varrer de qualquer maneira.
Suspiro e solto os papéis novamente no chão.
— Onde está o Dave? — pergunto, me levantando.
— Com certeza de ressaca, jogado no sofá do apartamento com cocaína espalhada pela sala.
Nada que eu dissesse poderia expressar melhor a possível visão de Dave nesse momento. Todos seus montes de dinheiro deixados como herança permitiram que sua irresponsabilidade ainda lhe rendesse frutos. Ele contratou a mim que cuida de todo o problema que aparece aqui na casa de shows, advogados que cuidam das causas jurídicas, assessores que contratam os artistas e faxineiros que limpam sua bagunça. Ele aparecia no começo da noite e ficava curtindo shows e sendo paparicado por um monte de garotas até ir embora com uma delas.
Todo dia era isso. Ele não falhava nunca.
É nesse momento que o telefone começa a tocar.
— Falando no diabo — resmungo.
Cole dá risada e continua seu trabalho enquanto eu sigo até o telefone. Eu esperava que dessa vez eu não tivesse que ir até sua casa pra ajuda-lo a se livrar de alguma garota inconveniente. Isso definitivamente acabava com o meu dia.
— Casanostra, Paul falando.
— Preciso falar com o Dave.
— Boa noite — ironizo, fechando a cara.
Provavelmente é mais uma das garotas dele querendo soltar desaforos nos ouvidos do primeiro desavisado que encontrarem. Eu não estava com muita paciência pra coisas do tipo, na verdade, eu nunca estive.
— Boa noite, preciso falar com o Dave — ela insiste.
Isso me dá a ligeira impressão de que eu preferiria resgata-lo em seu apartamento do que enfrentar a conversa que está por vir.
— Olha, eu só estou apto a resolver problemas que envolvem a boate, se quiser discutir algo com o Dave é melhor ligar em seu número pessoal e...
— Ah que nojo! — ela me corta, aumentando seu tom de voz. — Você pensou mesmo que eu tenho algum problema pessoal pra resolver com o Dave? Eu sou da banda que vai tocar hoje a noite!
Isso faz com que eu pigarreie.
— Então prossiga.
— Preciso que paguem a metade inicial do cachê, há dias Dave vem dizendo que vai depositar e nada.
Faço careta. Ela havia tocado no único problema que eu não podia resolver.
— Infelizmente a questão de pagamentos é só com o Dave.
Ela fica em silêncio por alguns segundos, conseguia ouvi-la respirando profundamente. Acho que alguém estava tendo um dia ruim, assim como eu.
— Achei que resolvesse problemas sobre a boate.
— Só os que estão ao meu alcance.
— Bom, então me passe o número dele, acho que agora temos um problema pessoal.
Faço careta.
— Não posso te passar o número dele.
— Como é que é? — ela indaga, aumentando o tom de voz novamente.
— É pessoal. Não estou autorizado a...
— Então pelo visto você não pode resolver nada, que autoridade de merda você tem.
Fecho meus olhos e respiro profundamente tentando impedir o sangue de chegar a minha cabeça, conseguia sentir minha veia inflando. Eu estava com vontade de quebrar alguma coisa.
— Olha, se quer resolver algo com o Dave procure você o número dele, eu já dei minha resposta.
Me surpreende o fato de ela dar uma risada. Seguro o telefone com calma para não destrui-lo em minhas mãos.
— Você é muito insolente pra um funcionário — é o que ela diz.
— Eu não tenho paciência para pessoas que não entendem que eu só posso fazer o que eu estou autorizado. Tenho um emprego a zelar.
— E eu tenho aluguel pra pagar e uma geladeira pra encher. Pare de olhar apenas para seu próprio umbigo.
Vermelho. Eu estava vendo vermelho. Minha paciência se esvaiu com uma rapidez que nem minha família um dia havia conseguido.
— Não sou pago para ouvir desaforos. Já que só me preocupo com meu umbigo vou voltar ao meu trabalho e deixar que você mesma resolva seus problemas para os quais eu definitivamente não dou a mínima. Boa noite. Até mais tarde.
E boto o telefone no gancho.
— Calma lá amigão, não vamos quebrar nada hoje — Cole faz piada.
— É meio difícil quando tiram o dia pra te alugar.
— Quem está te alugando?
— Deixa pra lá — respondo. Era mais fácil controlar minha raiva quando eu ocupava minha cabeça com outra coisa, remoer o assunto não ajudaria em nada. — Vou ver se o pessoal já terminou com a limpeza. Fique aqui e se os assistentes de som aparecerem me chame, eles devem chegar em breve.
— Certo.
Foi uma surpresa para mim quando descobri que gostava do meu emprego no final das contas. Graças a minha pequena posição de poder as pessoas não me contrariavam ou me irritavam com frequência o que garantiu um enorme sucesso em me manter livre das transformações.
Costumava chamar de tremenda coincidência eu acabar empregado aqui. Havia cerca de duas semanas que eu chegara à Los Angeles, duas semanas na pele de um lobo, quando resolvi tomar um porre num bar de beira de estrada. Acabei encontrando Dave que me pagou algumas doses e contou sobre seus problemas, o que fez minha vida parecer um sonho. Aquele cara havia gostado de mim e isso me surpreendeu, as pessoas não costumavam tolerar muito bem a minha presença. Nunca fui o tipo de pessoa que as outras queriam por perto mas ele quis.
Dave tinha uma lista gigante de defeitos mas no geral era fácil conviver com ele, seu total desinteresse em qualquer outra pessoa além de si mesmo evitava qualquer pergunta desconfortável sobre minha família ou cidade natal. Ele depositava o meu salário e eu cumpria com o meu trabalho. Chamo isso de uma relação de sucesso.
Organizo todo o funcionamento da casa me atentando a limpeza e à segurança do salão, além de verificar o som junto com os técnicos. O DJ já está a postos há quinze minutos tocando alguma eletrônica terrível quando abrimos, meia hora depois Dave dá as caras, liberando Cole de ser meu braço direito. Fico feliz toda vez que ele vai embora. Cole era um cara legal mas na maior parte do tempo gostava de jogar conversa fora e não se importava nem um pouco em causar desconforto com suas perguntas, acho que ele nem ao menos percebia, isso me lembrava Seth e eu não queria mais lembrar dele. Nem de nenhum dos garotos na verdade.
Era meio difícil esquecer quando toda referência de vida que eu tinha vinha daquele bando de moleques.
Dave se remexe do meu lado exalando cheiro de cigarros mentolados e perfume masculino, seu cabelo que começava a ser ralo devido sua idade estava jogado para trás de uma maneira estratégica a fim de tampar suas falhas. Ele murmura algumas coisas sobre mulheres e música sem a menor empolgação, sua voz arrastada me indicava que ele estava sob o efeito de algo, que vindo dele, era difícil decifrar o que era. Um dos funcionários aparece com um copo de whisky e uma aspirina, a combinação perfeita.
Nesse ponto já o lugar já estava lotado, nós estávamos atrás do bar controlando tudo. Dave se levanta e vai checar a banda enquanto eu dou instruções ao garoto novo que havíamos contratado, ele deveria manter a higiene do banheiro masculino e com certeza não estava empolgado para a tarefa. Talvez estivesse sendo obrigado a estar ali, era o tipo de coisa que minha mãe faria.
Vou para o escritório juntar todos os papéis que havia deixado espalhado pela mesa hoje cedo e percebo que a banda havia começado a tocar. Reconheço a voz da garota que falou comigo no telefone, seu tom mudava radicalmente quando começava a cantar, era rouco, bonito, forte... quase me causou um arrepio ao chegar no refrão. Era rock. Com direito a guitarra e gritos e me agradava de certo modo. Era o tipo de música que costumava ouvir no meu tempo livre que geralmente era escasso. A garota cantava a plenos pulmões sobre estar perdida entre Elvis e o suicídio, uau.
Junto tudo e tranco a porta, ignorando minha antipatia por ela e indo até o som da sua voz. Paro atrás de todo o público escorado no bar, vendo quatro garotas no palco, a vocalista com o cabelo vermelho como o fogo. Todas brilhavam sendo o centro da atenção da boate, dando vida a esse local deprimente. Foi quando a vocalista, a insuportável do telefone, se virou pra mim.
Seus olhos encararam os meus e num mísero segundo tudo desapareceu. Eu não via nada, não ouvia nada, só ela.
A desconhecida de cabelos cor de fogo e língua afiada havia se tornado o meu mundo. Seus lábios cheios, seios fartos escapando de sua blusa apertada, as tatuagens que cobriam todos seus braços e colo, sua voz, tudo fazia com que ela parecesse um anjo. Ela era um anjo. Especialmente enviado a mim para dar algum sentido a minha vida patética.
Vi seu rosto redondo de criança, as tranças vermelhas a luz do sol, dedos pequenos tocando as teclas do piano, cordas do violão, hastes de bateria... tantas coisas. Tanto talento. Vi as lágrimas em seu rosto quando teve seu coração partido pela primeira vez. Vi felicidades, sorrisos, tristezas e desespero. E vi uma criança. O cabelo preto como a pena de um corvo.
Enquanto a névoa se dissipa consigo perceber que seus lábios não mais se moviam, seu microfone estava no chão e ela desviou seus olhos dos meus para pega-lo e voltar à música.
Meu lobo uiva dentro de mim, me arranhando, me queimando, exigindo que o libertasse e permitisse que se ele aproximasse daquele cheiro. Cacete. Havia tempo demais que meu lobo não lutava pra sair e eu não sei se ainda sabia como lidar com isso, na verdade acho que nunca realmente aprendi.
Minhas mãos tremiam, minha cabeça queimava. Ela, ela, ela. Eu não podia ficar aqui.
Passo pelo amontoado de pessoas e me enfio no banheiro dos funcionários. As cabines estavam vazias. Me tranco em uma delas e tento acalmar a bagunça instaurada dentro de mim.
Havia acontecido. Após tantos e tantos anos, após ver todos os meus se apaixonarem e constituírem família, após perder totalmente minhas esperanças. Ela estava ali. Havia alguém nesse mundo para mim, que foi escolhida a dedo e com quem eu poderia contar pelo resto de minha vida. Qual será o nome dela? De onde ela veio? Haviam tantas perguntas a serem respondidas, tanta empolgação dentro de mim, eu mal podia esperar para conhece-la e...
Ela nunca gostaria de mim.
Sou só um indígena ingênuo que fugiu de suas raízes, eu não tenho dinheiro e nem estudo, nem ao menos tenho educação o suficiente para conviver em sociedade. É por isso que vivo escondido nesse buraco. Não havia nenhum atrativo em uma pessoa como eu, nenhuma perspectiva, nenhuma felicidade. Tudo que eu tocava virava merda.
Jamais poderia condena-la a mim.
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