𝐒𝐈𝐗, brisa de primavera

Miho Hanasaki

⠀─ Me conta como é ser uma caçadora, irmã!

⠀As paredes de shoji que nos cercam permitem que a luz das lanternas de papel filtrem para dentro, deixando o ambiente acolhedor. No canto da sala, o tokonoma exibe um pergaminho caligrafado com precisão e um ikebana* delicado.

⠀Tomando mais um pequeno gole da xícara de chá em minhas mãos, eu observo enquanto a criança de poucos anos de idade se acomoda no zabuton* em minha frente. Seus olhos, presos em mim, carregam uma ingênua curiosidade.

⠀─ Não sei se seria adequado para uma criança. ─ falo baixo, mas sincera, contornando a beirada da xícara com o indicador.

⠀─ Por favor! ─ ele insiste. ─ Eu sei que vocês matam onis e tudo mais, não se segure!

⠀Eu o encaro por alguns segundos antes de liberar um suspiro, seu entusiasmo é contagiante.

⠀A iluminação quente do cômodo reflete sobre uma cicatriz profunda em sua bochecha esquerda, o que me faz lembrar do grande motivo pelo qual nós, do Esquadrão de Caçadores de Onis, permanecemos lutando, noite após noite.

⠀Não se trata apenas de acabar com demônios... Nós salvamos as pessoas, acima de tudo.

⠀─ Bem, está certo ─ coloco a xícara no tatame, abrindo um sorriso leve. ─ Ser uma caçadora é um trabalho difícil e perigoso, mas também pode ser muito gratificante... Treinamos arduamente todos os dias e estamos sempre enfrentando diversos tipos de onis para proteger aqueles que não podem se defender.

⠀Ele me escuta atentamente; seus olhos, quase sem piscar, brilhando com uma mistura de admiração e medo. Que adorável.

⠀─ Nós vamos à missões sabendo que nossas vidas estão sempre por um fio ─ seu sorriso se desfaz por um momento e eu sei que ele consegue sentir o peso de minhas palavras. ─ Mas também sabemos que cada oni derrotado é uma vida salva, uma família protegida... E é isso o que nos dá força para continuar em frente.

⠀─ Isso é incrível, irmã... ─ ele diz com uma voz mais fraca, mas o olhar continua o mesmo.

⠀Eu o vejo levar uma mão para a cicatriz exposta na bochecha em um movimento quase involuntário, e permanece ali. Atrás de si a sombra que se projeta é a de um passado sombrio e sangrento, posso perceber claramente pois também o tenho cravado em minha alma.

⠀É a minha vez de ficar curiosa, guardando para mim a pergunta de sua história.. No entanto, o garoto se manifesta primeiro, como se conseguisse ler os meus pensamentos.

⠀─ Alguns anos atrás, eu... Nós ─ ele se corrige, mantendo o olhar baixo ─ fomos salvos de um desses monstros. Ele era tipo, muito grande e assustador! ─ seu rosto se ergue para mim, de repente animado, com aquele brilho que só uma criança teria. ─ Na hora eu só pensava em proteger a minha irmã a qualquer custo, aí eu fiquei corajoso do nada e queria ficar na sua frente, mesmo ela gritando para que eu fugisse e deixasse ela pra trás!

⠀Meu coração se aperta de repente.

Algo muito parecido aconteceu comigo, há muito tempo atrás...

⠀─ Então, eu lembro de ver um vulto entrando e foi, tipo, a coisa mais legal que já vi! Com aquele uniforme preto descolado, ele enfrentou aquela coisa com tanta coragem! Depois, ele quase desmaiou de tanto medo, mas eu ainda gritava como aquilo foi incrível e tudo! Ah ─ sua voz vacila ao lembrar de algo ─, mas ao mesmo tempo, eu não entendia porque minha irmã continuava chorando e me abraçando forte... Até eu perceber que tinha sangue caindo na minha roupa sem parar. Meu rosto estava muito machucado.

⠀─ Então foi assim que aconteceu...

⠀Ele assente com a cabeça, abaixando a mão e a deixando sobre o joelho dobrado.

⠀Um silêncio confortável se instaura entre nós por alguns segundos até ele voltar a me olhar como antes, em um ímpeto de coragem.

⠀─ É por isso que eu quero ser um caçador também, assim como vocês! ─ o mesmo entusiasmo emoldura sua expressão, desta vez com o contorno de uma determinação feroz.

⠀─ Eu entendo a sua vontade, mas... Saiba que ser um caçador exige muito mais do que aventuras heroicas.

⠀─ Mas vocês salvam tantas vidas! ─ ele tomba a cabeça levemente para o lado, um pouco confuso, a determinação que esbanjava começando a vacilar. ─ Isso não vale a pena?

⠀─ É claro que vale ─ respondo, sem hesitar. ─ Mas também acredito que é importante aproveitar uma vida normal, se tiver essa chance... ─ me aproximo um pouco, ainda ajoelhada no tatame, para pegar em sua mão. ─ Se você realmente deseja ajudar as pessoas, pode encontrar outras formas de fazer isso.

⠀Assim como Senjuro, que está indo muito bem, a propósito. Eu sempre me orgulho dele.

⠀O jovem fica em silêncio, parecendo pensativo.

⠀─ Deve pensar bem antes de tomar qualquer decisão que comprometa o seu futuro, garoto... E tente conversar com sua irmã, também. É muito importante.

⠀Antes que o pequeno pudesse me responder, escutamos o barulho do fusuma se abrindo e nos viramos, revelando uma mulher de cabelos presos, esboçando um enorme sorriso.

⠀─ Kasumi, espero que não esteja enchendo nossa visita com suas besteiras! ─ ela faz menção de se aproximar, o jovem rapidamente se levanta, pronto para se defender.

⠀─ Irmã!

⠀─ Não se preocupe, só estávamos tendo uma conversa divertida ─ me apresso a dizer, tranquilizando a ambos e também me levantando.

⠀─ É isso? Que alívio! ─ ela ri alto, apoiando as mãos na cintura. ─ Eu preparei o seu banho, venha comigo! Deixei roupas frescas para você e um belo prato de comida estará esperando quando terminar!

⠀─ Desculpe pelo trabalho... ─ abaixo a cabeça timidamente conforme a acompanho pelos corredores, nossos passos rangendo sobre a madeira abaixo.

⠀─ Que nada! Ficamos sempre muito felizes em acolher Caçadores de Onis como vocês!

⠀Um sorriso doce se alarga em meus lábios.

⠀Eu sempre tenho um sentimento tão gratificante ao saber que existem essas pessoas boas que nos apoiam com o que podem, e apreciam o nosso trabalho... Mesmo nas sombras. Qualquer ajuda é muito bem recebida pelo Esquadrão.





惡鬼滅殺





⠀O vapor sobe lentamente, envolvendo o pequeno cômodo com uma névoa reconfortante.

⠀A água quente do ofurô* no qual estou imersa permite que cada músculo de meu corpo relaxe, e eu fecho os olhos. Não é todo dia que podemos apreciar um momento de serena tranquilidade... Caçadores vivem uma vida muito difícil.

⠀O calor da água parece penetrar até os ossos, aliviando a tensão acumulada após a batalha. Respiro profundamente, e logo penso mas palavras que disse ao jovem mais cedo:

⠀"Aproveitar uma vida normal, se tiver essa chance..."

⠀Eu sinceramente acredito que seja o melhor para ele. Está tudo bem ficar de fora, não há vergonha em querer ajudar de qualquer outra forma... No entanto, se mesmo assim desejar fazer parte disso tão veementemente, eu só espero que seja com o sentimento certo.

⠀E, claro, que tenha um treinamento adequado para começar. Isso pode ser um fator decisivo que manterá a sua vida.

⠀Alguns minutos se passam e eu finalmente tomo coragem para sair, me secando cuidadosamente com uma toalha, passando por machucados fechados e algumas pequenas cicatrizes pelas pernas e braços.

⠀Por fim, entro para dentro da yukata de cores claras que a mulher havia deixado para mim.

⠀Faço o meu caminho até um cômodo diferente; o único quarto com o fusuma aberto, a luz dourada que sai dela sendo a única iluminação do corredor, e encontro a mesma mulher terminando de colocar uma tigela de sopa sobre o pequeno chabudai disposto no centro.

⠀─ O cheiro está muito bom ─ comento, meus olhos caindo sobre o prato de Tempura conforme me aproximo.

⠀No momento em que me sento no zabuton, percebo que há duas refeições servidas. A mulher me encara de cima e logo abre um pequeno sorriso antes de responder o que eu estava prestes a perguntar.

⠀─ Teremos mais um hóspede essa noite ─ ela joga um rápido olhar a um canto do quarto e, assim que se retira, fechando o fusuma com delicadeza, eu viro o rosto naquela mesma direção.

⠀Ali, sentado desleixadamente com as costas contra a parede e com um braço despojado sobre o joelho dobrado, eu encontro aquele mesmo homem que se recusou a vir para cá por qualquer que seja o motivo. Sua nichirin repousa ao seu lado, assim como uma peça de roupa fresca que imagino ter sido deixada pela nossa gentil anfitriã.

⠀A luz tremeluzente da lanterna ilumina seu rosto fechado e algumas cicatrizes expostas no peitoral e abdômen graças ao uniforme parcialmente aberto na parte de cima, e eu imediatamente percebo que ele já estava olhando para mim quando nossos olhos se encontram.

⠀No entanto, ele não demora a desviar o olhar com a minha movimentação.

⠀─ Oh, é você ─ como sempre, eu abro um sorriso amigável a fim de aliviar uma tensão indesejável, não seria nada legal para passar a noite. ─ Não achei que fosse te encontrar novamente tão cedo. O que aconteceu? Não encontrou nenhum quarto disponível na cidade?

⠀Ouço ele estalar a língua no alto da boca, o foco de sua atenção estando em algum ponto distante do quarto. Olhando atentamente, consigo reconhecer um traço de cansaço não apenas em seu rosto, como em todo o seu semblante. Era esse o motivo de toda carranca?

⠀─ Eu acertei, então? ─ pergunto, mas não espero por uma resposta. ─ Deve ter sido frustrante... Principalmente depois de um dia difícil.

⠀─ Essa merda não importa mais! ─ surpreendentemente, ele me responde com a voz ríspida, mas não tão afiada quanto poderia ser.

⠀Ainda que esteja claramente sem paciência, o jeito que tratou aquele rapaz na clareira foi de uma brutalidade ainda maior. Seus ombros parecem tensos, como se carregasse o peso de algo invisível e, até certo ponto, eu o entendo. No final do dia, sou uma caçadora assim como ele.

⠀No entanto, não posso concordar com o modo que lida com isso. Ódio é um sentimento que pode nos deixar mais fortes, de fato, mas ainda é muito perigoso de se manter por perto.

⠀─ Bom, você deveria aproveitar que a água ainda está quente e tomar um banho antes de comer. Vai conseguir descansar melhor assim.

⠀Ele me encara de canto, seus olhos semicerrados.

⠀Eu disse algo errado?

⠀─ Não estou aqui para receber conselhos seus ─ ele resmunga, bagunçando os próprios cabelos como um hábito nervoso.

⠀─ Você não precisa ser tão durão o tempo todo, sabia? ─ minha voz sai mais firme do que estou acostumada, mas ainda expressa a tranquilidade da minha natureza. ─ Deve ser cansativo manter as muralhas sempre altas...

⠀─ E o que diabos você pensa que sabe sobre mim?!

⠀O olhar de Sanemi queima com uma intensidade que chega a ser desconcertante quando ele direciona o rosto na minha direção. Ele já havia deixado a sua marca de desprezo naquele pequeno caçador e, provavelmente, está querendo deixar em mim também.

⠀Quem sabe, para mostrar o quão forte um vendaval pode ser.

⠀E que ninguém poderia desafiá-lo.

⠀Suspiro, deixando que sua voz fria ecoasse nas paredes e ele escutasse o som de sua própria raiva. Eu entendo como é esse sentimento e sei exatamente como deve ser tratada para não causar nenhum alarde nem dor de cabeça... Com compreensão e calma.

⠀Felizmente, era o que eu sabia fazer de melhor.

⠀─ Tem razão, eu não sei nada sobre você... Mas estou disposta a aprender. ─ eu sustento o seu olhar com o meu, o pequeno sorriso nunca se desfazendo. ─ Que tal começar me contando o seu nome?

⠀Seria um belo começo; saber como é o som de seu nome através de seus próprios lábios...

⠀Além disso, não seria prudente da minha parte chamá-lo pelo primeiro nome. Não somos íntimos nem nada.

⠀Ele me encara com uma expressão que oscila entre a desconfiança e a irritação. Por um momento, eu penso que ele vai responder, mas então sua expressão endurece novamente e ele quebra o nosso contato visual.

⠀─ Eu vou tomar o maldito banho ─ é só o que ele fala antes de se levantar, pegando a peça de roupa deixado ao seu lado com uma mão e a nichirin com a outra para sair.

⠀A porta do fusuma se abre e rapidamente volta a se fechar com um som abafado, deixando-me sozinha no pequeno quarto. Seus passos pesados ecoam pelo corredor, se afastando cada vez mais.

⠀O silêncio que se segue é preenchido pela corrente de vento batendo contra as paredes de madeira. É uma noite refrescante de primavera. O aroma do incenso de glicínias flutua pelo ar, misturando-se com o cheiro agradável da comida diante de mim.

⠀Olhando brevemente ao redor, observo alguns detalhes que antes não tinha prestado atenção, já que meus olhos estavam tomados pela presença de Sanemi o tempo inteiro.

⠀Há dois futons* cuidadosamente preparados em um canto, não muito longes um do outro. Suas cobertas me parecem tão confortáveis e convidativas agora...

⠀Volto com o olhar sobre o chabudai em frente. Uma sopa de Miso e um prato de Tempura de legumes, acompanhados de um copo de água e um conjunto de hashis, parecem me encarar de volta, despertando meu apetite. Do outro lado, os pratos se espelham de frente à almofada que daria lugar a mais uma pessoa.

⠀Respiro fundo, com as mãos sobre os joelhos.

⠀Acabei esperando Sanemi voltar para poder comer, o que não demorou muito. Na minha cabeça, era só o certo a se fazer.

⠀Ele me parece surpreso ao passar pelo fusuma, fechando-o logo em seguida. Seus cabelos brancos e espetados estão levemente úmidos e sua expressão mais calma agora, o banho foi de grande ajuda. Com uma yukata parecida com a minha, ele manteve a parte de cima aberta, expondo suas cicatrizes e músculos ao vento.

⠀Se ajoelhando do outro lado do chabudai com os olhos roxos pálidos pesando sobre mim, ele pega os hashis sem dizer nada e nos permitimos comer em completo silêncio depois de um mútuo e respeitoso "Itadakimasu".

⠀Pela primeira vez, compartilhamos de um momento tranquilo onde palavras não eram mais necessárias, já que tudo o que precisava ser dito já foi jogado ao ar há alguns minutos e, de qualquer forma, não tínhamos exatamente um assunto para poder manter.

⠀No entanto, quando nos encontrávamos sob o peso de nossos devidos cobertores, a uma distância segura e olhando para o mesmo teto, eu ouço a sua voz novamente.

⠀Baixa como uma verdadeira brisa de primavera.

⠀─ O nome é Sanemi Shinazugawa.





Ikebana*, também conhecida como kado, é uma palavra japonesa para arranjo floral e é considerada uma arte.

Zabuton* é uma almofada de chão.

Ofurô* é uma banheira funda de madeira, projetada para banhos relaxantes e terapêuticos.

Futon* é um tipo de colchonete japonês, geralmente composto por algodão, palha de arroz ou outros materiais naturais e coberto por um tecido resistente. É usado diretamente sobre o tatame ou no chão e, durante o dia, pode ser dobrado e guardado.


Ei gente! Decidi adicionar algumas coisinhas na apresentação do capitulo, como um espacinho no final para explicar algumas palavras, e vou tentar deixar um aesthetic para ilustrar cada cap também, mas fica aqui avisado que nem todos terão um!

Não esqueçam de deixar seu voto e comentário pra eu saber que estão gostando,

até a próxima <3

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