𝐎𝐍𝐄, lembranças

Miho Hanasaki

Está chovendo lá fora. Os pingos batem contra o telhado e a madeira tão violentamente que dão a impressão de estarem com raiva. O som me agrada, no entanto.

⠀Sempre agradou.

Eu não faço ideia de que horas são, mas Senjuro ainda não veio para nos chamar, então imagino que seja pouco antes da hora do jantar.

─ Mantenha a postura, Miho! ─ o grito me atinge, e me vejo em alerta rapidamente.

As paredes do dojô ecoam o baque de duas madeiras se atingindo, sobressaindo ao barulho forte da chuva lá fora.

Firmo meus dedos ao redor da bokken* de treinamento e tento me manter firme contra a força esmagadora de meu Mestre.

Dois mil... Não, foram três mil golpes agora.

─ Certo! ─ ele de repente para, apoia a bokken em um dos ombros e me encara com um grande sorriso orgulhoso. ─ Foram cinco mil agora, você fez bem hoje!

─ Cinco mil...

Droga, a chuva me distraiu.

Não posso deixar que isso aconteça novamente, Kyojuro diz que manter a conta em mente durante o combate também é uma forma de treinamento.

Se concentre mais, Miho.

Você tem que se concentrar, ou não vai merecer o sorriso de Kyojuro.

Aquele sorriso que te faz querer continuar.

E a única coisa que diz, sem precisar de palavras, que está tudo bem continuar...

Observo quando Kyojuro passa por mim, pega a minha bokken e guarda junto às outras. Ele para ao meu lado e afaga os meus cabelos como um verdadeiro irmão mais velho, contenho um pequeno sorriso, sem me encolher.

Eu demorei para me acostumar a ser tratada assim novamente. Como uma irmã.

É caloroso demais para alguém como eu. Parecia injusto.

Mas agora que só anseio pelo carinho deles, por ser chamada de "irmã"... Eu chego a me odiar por gostar tanto disso.

Eu mereço ser amada assim?

Mereço, mesmo depois do que aconteceu?

Eu quero ser egoísta, pelo menos um pouco, e pensar que eu posso ficar com isso para mim.

Afinal, eu sou egoísta, não sou?

⠀Sempre fui.

Os painéis de shoji* se abrem lentamente, revelando a doce presença de Senjuro. Ele se curva um pouco, nos cumprimentando formalmente.

─ Bom trabalho, irmão, irmã.

─ Ótima hora, Senjuro! Já terminamos por hoje!

Senjuro abre um sorriso tímido.

─ Eu fiz a comida, então se estiverem com fome...

─ É claro que estamos! Não é, Miho?!

─ Com certeza ─ aceno com a cabeça, concordando com o mais velho. ─ E com a sua boa comida, teremos energia para um dia inteiro de treinamento, irmão.

Reconheço um brilho de alegria nos olhos de Senjuro. Dou um sorriso por isso. Assim que ele desaparece pelos corredores, indo na nossa frente, Kyojuro se vira para mim novamente.

─ Você perdeu a conta hoje, não foi?

Meu sorriso se desfaz rapidamente.

Ele tinha percebido, então?

Desde quando?

─ Me desculpe... ─ abaixo a cabeça.

─ Por que está se desculpando? ─ ele firmemente me pergunta.

Um movimento no tecido de seu keikogi* e sei que ele tinha cruzado os braços. Sinto seu olhar sobre mim quando o respondo, ainda olhando para os meus próprios pés:

─ Porque eu deveria manter a conta no treinamento.

─ Não ─ levanto o rosto e o encaro, confusa. Ele continua: ─ Estou perguntando por que você acha que deve se desculpar por isso.

─ Porque eu...

Ele prontamente me interrompe.

─ Você não está arrependida. E também não deve estar, Miho.

Eu não posso evitar franzir o cenho, uma parte pelo que dizia, mas principalmente pelo sorriso que se abria em seus lábios. É a minha vez, então, de perguntar:

─ Por que?

─ Porque isso foi incrível! ─ Kyojuro desfaz os braços cruzados e os apoia em meus ombros em vez disso, o ar otimista que o envolve me encorajando a manter a cabeça levantada para ele. ─ Você, distraída, e ainda conseguindo se defender das minhas investidas? Não vê como isso é demais?!

Ah, ele está feliz por um erro que cometi... Isso está certo?

Não sorria assim para mim, irmão, vou começar a me sentir bem com isso.

─ Mas... Isso foi um erro, irmão. Não posso me distrair em campo de batalha, um oni certamente não pensaria duas vezes antes de me matar.

─ Bom, eu realmente não acho que você se permitiria distrair diante de um deles. Além disso, você acabou de provar que a sua defesa é impecável!

Kyojuro sempre fala com tanta convicção, que é como se tudo que saísse de sua boca fosse uma verdade absoluta.

Talvez estivesse tudo bem em acreditar em suas palavras, então...

─ Você é incrível, Miho ─ sinto um peso no topo de minha cabeça, Kyojuro afaga meus cabelos mais uma vez. ─ Nunca se desculpe por isso.

Não consigo mais conter o sorriso.

Sim, talvez estivesse tudo bem... Não é?

─ Certo...

─ Agora vamos, Senjuro nos espera e estamos morrendo de fome!

O observo indo até a entrada e o alcanço rapidamente, esperando para escutar a sua voz gritante já elogiando a comida de Senjuro.

Eu sempre estou ao lado dele para escutar...

⠀E é por isso que ele me fará tanta falta.

⠀A imagem à minha frente é embaçada quando volto a abrir os olhos. Sinto meu rosto molhado e gelado. Seco as lágrimas insistentes com as costas das minhas mãos, molhando-as também.

⠀Não importa o quanto eu estivesse feliz nessas lembranças, ainda é doloroso demais para conseguir sorrir com elas agora.

⠀Ouvindo o canto dos pássaros lá fora, eu lentamente me situo dos meus arredores.

⠀Este quarto está cheio de nostalgia.

⠀Ainda há nele aquele cheiro gostoso de verão e sorrisos.

⠀O tatame* ao qual me encontro ajoelhada também é tão aconchegante quanto me lembro.

⠀Na minha frente, o haori dos Hashiras das Chamas que costumava cobrir os ombros de Kyojuro ainda ostenta a mesma inspiração que ele fornecia aos outros, embora agora já não tenha mais dono...

⠀Meu olhar se prende à pintura disposta no tokonoma* do canto do cômodo, ela é composta por um jardim esbelto repleto de folhas e flores de todas as cores. Uma linda paisagem que estampa as memórias de meu passado.

⠀Fiz essa pintura em meus primeiros dias aqui, e dei de presente à Kyojuro como uma forma de gratidão por tudo o que ele fazia por mim. Eu não imaginava que ele a consideraria tão importante ao ponto de pendurá-la em seu tokonoma. Não pude deixar de me sentir especial neste dia...

⠀Na verdade, eu sempre me senti especial aqui, com Kyojuro fazendo barulho e Senjuro e eu sorrindo e escutando a tudo o que ele tinha para gritar.

⠀Agora, no entanto, este lugar está dolorosamente silencioso.

⠀─ Irmã, você estava aqui... ─ viro-me ao dono da voz gentil.

⠀Senjuro está em frente ao fusuma* aberto, me olhando tristemente. Estava tão perdida em pensamentos e lembranças que não tinha percebido a sua chegada.

⠀Meu rosto não deve estar nada bem para ele fazer essa expressão...

⠀Forço um pequeno sorriso antes de respondê-lo, apenas para que ele não se preocupasse.

⠀─ Estava me procurando?

⠀─ Sim... ─ responde ele, meio tímido.

⠀Meu sorriso se torna verdadeiro com isso. Senjuro é inegavelmente adorável, mas ele não gosta quando eu falo em voz alta, então, mantenho o pensamento para mim.

⠀─ Venha aqui.

⠀Ele atende ao meu chamado sem fazer perguntas, se ajoelhando ao meu lado, as mãos sobre os joelhos assim como eu. Viro meu corpo em sua direção, no tatame.

⠀Sei que para ele era difícil vir para cá, tanto quanto era para mim. Gentilmente eu o abraço, trazendo a sua cabeça para o meu peito.

⠀Eu não quero preocupá-lo mais do que já faço.

⠀─ Sei que tinha dito que manteria este quarto guardado, mas gosto de visitá-lo de vez em quando.

⠀Eu não estou preparada para me desprender desse lugar e dessas lembranças.

⠀Ainda não...

⠀─ Eu sei, irmã. Está tudo bem. ─ afirma ele, parecendo confortável em meio ao meu abraço.

⠀Passamos alguns segundos assim, até eu quebrar o silêncio.

⠀─ Então, por que estava me procurando? Aconteceu algo?

⠀─ Não... É que... ─ Senjuro se afasta um pouco, o suficiente para conseguir me olhar. ─ Eu tenho algo para te entregar.

⠀─ E o que seria? ─ lhe ofereço um pequeno sorriso, curiosa.

⠀Ele tira algo de dentro da manga de seu haori. Percebo que é um pequeno objeto, guardado e protegido por um tecido branco que logo é retirado.

⠀Eu imediatamente reconheço o tsuba que me é revelado. É o protetor de mão que Kyojuro usava em sua nichirin.

⠀Tem um formato característico de chama, representando os espadachins da família Rengoku, passado de geração por geração; em outras palavras, uma marca para se ter em campo de batalha.

⠀A honra da família dos Hashiras das Chamas.

⠀─ O corvo Kasugai entregou esta manhã, achei que deveria te dar antes que partisse para outra missão...

⠀─ Senjuro...

⠀A vontade de chorar novamente formiga em meus olhos, mas a seguro.

⠀Sei que eu definitivamente não sou digna para usar algo tão significativo assim, sequer tenho o sangue dos Rengoku correndo em minhas veias. No entanto, sei também que não há outro espadachim nesta casa para dar a ele algum uso, e um protetor de mão nunca deve ser deixado para pegar poeira.

⠀É com esse pensamento que decido que esse tsugo vai adornar a minha nichirin.

⠀Pegando o objeto que Senjuro me oferece com timidez, o seguro em meu peito a fim de mostrar minha gratidão.

⠀─ Obrigada, irmão. Darei um bom uso a ele.

⠀─ Fico feliz por tê-lo aceitado ─ ele diz, sincero. ─ Agora, o irmão Kyojuro estará te protegendo aonde quer que vá...

⠀Senjuro começa a chorar com a menção daquele nome. Eu também quero, mas não o faço. Em vez disso, o trago para um abraço mais uma vez, sentindo, agora, a intensidade de seu choro gradativamente aumentando.

Chore o quanto precisar... Está tudo bem.

⠀De repente, vejo no canto de olho uma silhueta no fusuma que Senjuro havia deixado aberto.

⠀Meus olhos se encontram com os inexpressivos de Shinjuro Rengoku, o patriarca que uma vez foi um grande espadachim. Há quanto tempo ele está ali?

⠀Ele deve ter visto o que Senjuro me entregou.

⠀Para a minha surpresa, porém, ele não diz nada. Só vai embora com o encontro de meus olhos, sumindo no corredor com uma garrafa de álcool nas mãos. Nenhum comentário maldoso, nenhuma ofensa, nenhum olhar de reprovação.

⠀Não consigo imaginar o que ele pode estar pensando sobre isso, mas, já que ele não disse nada...

⠀Abaixo a cabeça em uma sutil reverência, mesmo sabendo que ele não está mais ali para vê-lo.

⠀Então, sussurro para mim mesma:

⠀─ Obrigada por me aceitar.





Bokken* é uma espada de madeira japonesa, normalmente do tamanho de uma katana, usada para treinamentos.

Shoji* são paineis ou portas de correr estruturados em madeira e preenchidos com papel translúcido.

Keikogi* é uma palavra japonesa que significa uniforme de treinamento.

Tatame* é um tipo de tapete usado para revestir o piso tradicional japonês, feitos de palha de arroz compactada coberta com esteira de junco e bordas de tecido.

Tokonoma*, ou simplesmente toko, é um espaço embutido na parede em que são exibidos itens para apreciação artística.

Fusuma* é um painel que funciona como porta, divisória ou mesmo parede, mas que desliza. Ele é feito em madeira, possuindo uma camada de papel ou tecido nos dois lados.

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