𝟎𝟐


Por algum motivo não específico, eu não consigo ir ao supermercado sem me perguntar onde o Superman faz compras.

Quer dizer, o Superman não faz compras, o mais possível é que Clark Kent faça, mas ainda assim era estranho. Quem em sã consciência consegue equilibrar uma respeitada carreira de jornalista, um seríssimo segundo emprego como maior herói do planeta e guardião da terra junto com outros heróis seríssimos, ser um bom namorado para Lois Lane e ainda fazer compras?

Eu não conseguiria, sendo sincero. Gosto de pensar que é por isso que não tenho uma namorada. Porque estou muito ocupado sendo um bom super-herói e fazendo compras.

- Agora uma charada. De quantas caixas de cereal um cara de vinte e dois anos, solteiro, que mora sozinho e tem um emprego misterioso precisa para se manter vivo por duas semanas?

- Muitas. - eu respondi, rindo para Jesse. Era o atendente de caixa mais legal que eu conhecia.

Jesse fazia piadas sobre minha condição suspeita, mas nunca perguntava, e isso era uma das coisas que eu mais gostava nele. O seu cabelo era ruivo é sempre bagunçado e o fato de que seu cérebro funciona como a maior Enciclopédia de músicas que a humanidade já teve a honra de prestigiar sempre me fazia sentir confortável, como se soubesse que, se algo acontecesse comigo, ele seria a pessoa certa para arranjar a trilha sonora do meu funeral.

Coloquei as doze caixas de cereal, a cartela de ovos, o queijo, o leite, o bacon e o café na esteira, e Jesse os registrou e colocou eu sacolas de papel.

- Te vejo hoje à noite? - perguntei, tirando uma nota amassada de cinquenta da carteira. A minha última.

- Hoje...? - ele franziu as sobrancelhas enquanto calculava o meu troco.

- Sim. Marcamos de reassistir toda a saga Star Wars. Excluindo A Ameaça Fantasma, é claro. - desfiz minha careta de desdém ao citar o pior filme da saga quando percebi a frustração em seu rosto. - Você não... lembra?

- Desculpe, Dickie, eu não passo uma noite em casa desde... - ele parou para contar os dias e eu percebi que o problema era maior do que seu semblante quase sempre radiante permitia transparecer.

- Não, cara, está tudo bem.

Eu tirei a nota de dez incluída no meu troco e coloquei no seu pote de gorjeta antes que ele pudesse negá-la. Com um sorriso meio triste, ele me entregou minhas sacolas.

- Na próxima semana, sem falta! - Jesse gritou para que eu o ouvisse depois de uns cinco segundos andando.

- Combinado!

Podia esperar. Por uma boa companhia, valia a pena. Eu sei que há dias ruins e dias bons para todos. Um dilema metafórico muito bem elaborado pelo filósofo contemporâneo/caixa de supermercado, Jesse, diz que alguém racional que tem a possibilidade de escolher entre comer uma barra de chocolate e uma pequena porção de salada, é quase certo que escolherá o chocolate. E que se essa mesma pessoa comesse apenas chocolate durante anos - supondo que sobreviva -, daria tudo por uma porção de salada, apenas para sair da mesmice.

Apesar de ser uma tese cheia de furos, ele a usou para estabelecer a importância dos dias bons e ruins, de uma forma que não parecesse um missionário budista. E eu sou um grande admirador da sua técnica.

- Vai continuar com isso quando seu dinheiro acabar?

Soube que aquele dia com certeza era uma salada, quando ouvi a voz de Bruce. Apenas o seu tom, como o de alguém que fala com uma criança não suficientemente inteligente para compreender uma frase longa, me irritava, e lembrava das razões que tinha para deixar o luxo e a abundância da mansão Wayne, para viver de cereal em um apartamento que apesar de pequeno e antiquado, mal podia pagar.

São boas razões, eu pensava enquanto acelerava o passo, boas e não infantis como ele faz parecer.

- Mesmo que não volte a morar na mansão, Dick, você está com problemas e eu posso ajudar.

Ele mal se esforçava para me alcançar, o que me deixava mais irritado. Era como nadar contra uma correnteza bem mais forte que eu.

- Eu estou bem, Bruce.

Eu quase pensei que tinha escapado, quando olhei para trás e o seu olhar severo me fez arrepiar. Não acabou, ele parecia gritar internamente.

Mas eu tinha filmes para assistir, uma crise para ignorar, e sempre havia crime para combater. Se tivesse sorte, o dia seria tão cheio que eu não teria tempo para pensar sobre o quão ferrado estava.

10:00 pm. E não havia ninguém gritando por ajuda. Eu sei que é mesquinho e contraditório da minha parte esperar que algo ruim acontecesse para finalmente correr com um propósito, lutar com um propósito. Mas eu era - além de super - humano. Um humano mesquinho e contraditório.

Nada aconteceu. Gotham decepcionava às vezes. Havia o Batman e um Robin por aí, e talvez eles estivessem mantendo os caras maus ocupados.

Estava começando a pensar que teria que tirar o uniforme antes das três da manhã, e isso nunca aconteceu antes. Eu tinha olheiras para provar.

Brincava com o walkie-talkie que tinha roubado de um policial - com intenções totalmente nobres, diga-se de passagem - e balançava as pernas, sentado à beira de um prédio.

- Será que essa droga toca música?

Falar sozinho era um hábito. E eu nunca esperava ser ouvido, porque parte de falar sozinho significava estar sozinho.

- Você não tem um Bat-player para quando estiver entediado?

Surpreendentemente, eu não estava sozinho, e mais surpreendente ainda: não notei Tim, em seu traje de Robin, se aproximando.

Quase pulei quando ouvi sua voz. Teria sido desastroso, considerando a altura.

- Eu não tenho mais nada acompanhado do prefixo "Bat".

- Ah, não é verdade! Você está com o Bat-mau-humor! - ele riu com leveza e se sentou ao meu lado. - Eu sou Tim Drake.

- Eu sei quem você é.

Não era verdade. Eu só sabia que ele era o um substituto e que seu primeiro nome era Tim, até aquele momento.

- Legal! Eu também sei quem você é.

E ele tirou a máscara, revelando um rosto com sorriso infantil e radiante. Ele me encarou por uns dois segundos.

- Não vou tirar a máscara também se é o que você quer.

- Eu não esperaria tão pouco profissionalismo de você.

- Então por que tirou a sua?

- Bem, eu confio em você.

Mais dois segundos em silêncio, e ele não pôde conter o nervosismo:

- Não conte ao Batman que vim aqui.- ele se levantou e colocou a máscara.

- Você acha que ele não sabe? - pela primeira vez naquela conversa, esbocei um sorriso. A raiva que sentia de Bruce não devia ser transferida para o novo garoto prodígio.

- Tem razão, ele é o Batman. Que droga!

Pulou no prédio vizinho, e depois em outro, e depois em outro, e sumiu na noite, exatamente como lhe foi ensinado.

- Espero que esteja gostando do uniforme. - resmunguei.

Gente, eu atualizei antes de 2019. Tô de parabéns, neam? :3

P.S.: Os comentários me deixam felizes PRA CARALHOO AAAaaaAa

Amo vocês, sayonara

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