28 | Poder
"Como posso dizer isso sem quebrar?
Como posso dizer isso sem desmoronar?
Como posso colocar em palavras
quando isto é quase demais para
a minha alma sozinha?"
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Merliah
OS RAIOS DE SOL ILUMINAVAM MEU ROSTO, me impedindo de manter meus olhos abertos. Não consegui dormir nem por um segundo, ainda sentia o frio em meu braço quando Hans me segurou, ainda via os olhos escuros de Isabel me encarando enquanto ela avançava pra me matar. E Calvin... O sangue, o cheiro. Era coisa demais em pouco tempo, parece que foi em outra vida que eu estava nas mãos deles mas na verdade só faz algumas horas.
A realidade em que me encontro agora, deitada em meu quarto, na minha cama, ouvindo o ressonar suave de Seth e sentindo seu cheiro por todo lado. O canto dos pássaros do lado de fora, o calor do meu cobertor contra meu corpo, o cheiro do meu próprio xampu. Tudo isso contrastava demais com o que eu havia vivido, parecia irreal. Um sonho. E eu tinha medo de levantar e ter que encarar a realidade.
Por isso ignorei Jacob quando ele apareceu na porta quando já se passava das dez da manhã. Ele sussurrou meu nome duas vezes e como eu não me mexi ele foi embora. Fiquei feliz por Seth não ter acordado, eu não conseguiria encarar os dois, pelo menos não de uma só vez.
Mas eu podia tentar com Jake primeiro.
— Seth está dormindo — é o que eu digo assim que saio do quarto.
Jacob, que estava mexendo no computador, vira seu rosto pra mim e seus traços assumem uma expressão preocupada. Me sinto satisfeita por ele não vir me apertar novamente, ontem ganhei abraços demais de todo mundo ao ponto de me sentir dolorida.
— Agora quer me dizer o que aconteceu? Você não parece bem.
É óbvio que ele me faria essa pergunta. Jake nunca foi paciente ou sutil, e foi uma luta conseguir que ele me deixasse em paz pelo menos durante a noite.
— Você acha que vai ficar tudo bem agora? — pergunto, me esquivando de dar uma resposta.
— Eu acho que sim — ele começa enquanto me aproximo da mesa e pego um pedaço de pão. — Alex também acha isso, ela está conversando com aquele vampiro de ont...
— Hans — o interrompo. — Ele não tinha ido embora?
Hans conseguiu controlar a situação muito bem. É claro que ele teve que usar de sua força bruta para impedir alguns de continuarem o ataque mas de um modo geral ele foi bem certeiro. Conversou com Carlisle e Alex por um tempo e depois com seu grupo, então eles foram embora. Parece que a maioria não via um motivo para briga agora que Isabel estava morta, acho que nem ao menos se importavam com ela. Isso não me espantou nem um pouco.
— Alice foi atrás dele, parece que ela teve uma visão — Jake explica fazendo uma careta.
— Visão? — repito, imitando sua careta.
Ele assente.
— É. Acho que temos um novo Cullen.
Eu assinto, arrastando a cadeira e me sentando. Acho que era uma coisa boa, ele me disse que queria uma família e acho bom que ele tenha achado uma.
— Isso é bom — eu digo. — Hans, ele é bom.
Jake assente e eu desvio o olhar, levando o pão a minha boca. O cheiro de sangue invade meu nariz e faço careta, me forçando a engolir a massa e não cuspi-la para fora como eu queria fazer.
— O que aconteceu Lia? — meu irmão pergunta, sua voz sendo mais firme.
— Nada, eu só estou um pouco perdida ainda. Muita informação.
Ele não parece convencido.
— O que fizeram com você?
— Me deixaram trancada e depois me trouxeram pra cá — respondo. — Nada demais.
Jake cruza os braços, ainda não foi o suficiente pra ele.
— E o que estava fazendo correndo no meio da floresta?
— Fui atrás de vocês.
— E de onde saiu essa ideia estúpida?
— Eu não podia deixar vocês morrerem — respondo, desviando o olhar. — Não importa pra mim se eu não sou útil ou forte como um de vocês ou dos Cullen. O que importa pra mim é a sua vida, a vida do Seth. E se algo acontecesse com vocês eu nunca me perdoaria por ter deixado os dois partirem. Se eu estivesse lá e vocês se machucassem pelo menos eu teria a certeza de que não havia nada que eu pudesse fazer.
Ele suspira mas assente.
— Foi uma escolha idiota — diz, me encarando com seus olhos escuros.
— Eu sei mas você faria a mesma coisa.
Então ele abre um sorriso gigante, o sorriso do Jacob. Ele era como o sol, o que me faz sorrir também.
— É — ele concorda. — Eu faria.
Fico satisfeita ao ver meu irmão voltar a teclar em seu computador e tento convencer meu estômago que comer alguma coisa seria uma boa ideia. É nesse momento que meu pai aparece pela porta, fazendo careta pelo esforço que fez para subir a rampa.
Ele se aproxima com seu chapéu na cabeça e um xale vermelho nos ombros.
— Bom dia querida — ele diz, fazendo um sinal para que eu me aproxime.
Deposito um beijo em sua bochecha e ele aperta meus dedos, um sorriso satisfeito em seu rosto. Meu pai não é muito de demonstrar sentimentos mas as lágrimas em seus olhos assim que eu apareci ontem a noite foram o suficiente para perceber o quanto ele se importava. Ele nunca poderia saber o que eu fiz.
— Bom dia pai — digo, com um sorriso. — Vocês dois poderiam dar uma volta? Eu preciso de alguns minutos com o Seth, preciso falar uma coisa com ele.
Tanto meu pai quanto o Jacob fecham a cara.
— E não pode falar com a gente aqui? — meu irmão pergunta.
Ouvido biônico de lobo? Acho que não é o que eu preciso pra hoje.
— Não — garanto.
— Eu acabei de chegar — meu pai argumenta.
— Não vai demorar — insisto.
Jake me encara por alguns segundos e então abre um sorriso.
— Vocês vão fazer sexo né? — ele indaga.
Sinto meu rosto queimando.
— Jacob! Pelo Deuses!
— Ué! Por qual motivo não poderíamos ficar aqui? — ele continua.
— Na minha época as coisas não eram assim — meu pai diz, dando de ombros.
Cruzo meus braços.
— Será que não posso ter um pouco de privacidade?!
Meu pai me encara com um olhar fulminante.
— Você nunca mais terá privacidade depois do susto que me deu! Não tenho mais idade pra isso!
Os dois me encaram e não estou mentindo quando digo que tive que me superar na atuação ao fazer a cara mais meiga do mundo.
— Tudo bem, a gente vai dar uma volta, mas não quero ninguém pelado quando eu voltar — meu irmão pragueja, se levantando.
— Jacob! — meu pai o censura.
Jake dá risada e beija minha testa antes de empurrar a cadeira do papai pra fora de casa. Os encaro com um sorriso e sinto um calor no meu peito, é quase... Quase como se eu nunca tivesse sido quebrada.
Ligo a televisão e deixo um programa passando enquanto arrumo a cozinha e a sala. Sei que devia ser rápida como havia prometido mas não conseguia fazer isso agora. Infelizmente a arrumação demorou menos do que eu esperava e enquanto me preparava para entrar no quarto a porta da frente de casa foi aberta. Alex apareceu.
Ela vestia um macacão preto e blusa de gola alta. Seus olhos amarelos me encaram, sua pele pálida contrasta com os cabelos extremamente escuros. Estava linda como sempre e é um alívio ver seu rosto mais uma vez.
— Onde está seu irmão? — ela pergunta.
— Ele saiu — respondo e como ela não demonstra nenhuma reação eu continuo falando. — Seth está dormindo, eu ia acordar ele agora, para conversarmos.
Alex continua parada e o jeito como ela se comportava estava começando a me assustar. Estava prestes a abrir a boca novamente quando ela falou:
— Hans me contou o que aconteceu.
Não era bem isso que eu estava esperando.
— Alex...
— Merliah eu sinto muito — ela me interrompe.
Dou de ombros.
— É. Eu também.
— Você quer falar sobre isso?
— Não — respondo imediatamente. — Eu só fiz uma escolha e tenho que arcar com as consequências.
— Foi a escolha certa — ela diz, fazendo com que eu a encarasse. — Se tivesse feito diferente o rumo teria sido diferente e talvez não teríamos conseguido terminar com isso de uma maneira amigável. Estamos todos vivos e ela vai nos deixar em paz. Foi a escolha certa.
Tudo bem, eu salvei o Seth e estamos todos vivos e eu faria novamente se isso significasse deixar ele vivo, com certeza faria, mas isso não tornava o que eu fiz menos pior do que é.
— Ainda estou tentando me convencer disso — é tudo que consigo dizer.
— Quando duvidar olhe nos olhos de Seth e imagine todo o futuro que ele irá ter. Acho que isso vai sanar suas dúvidas.
Assinto.
— Obrigada.
— E sobre o Calvin: ele era sozinho. Ficou com a Isabel por um tempo mas depois da morte da esposa se recusou a voltar a andar com ela. Essa história não vai trazer mais problemas pra você.
— Tudo bem — murmuro em resposta sentindo minha garganta ameaçar se fechar.
Felizmente Alex muda de assunto.
— Não está grávida mesmo, né?
— Não, eu só disse aquilo porque... Parecia a coisa certa a se dizer.
— Quando a Isabel foi transformada ela não conseguiu lidar com a dor de perder a coisa que ela mais queria, quem a transformou não percebeu que ela estava grávida, o bebê está eternamente dentro dela. Ela tentou se matar depois da transição, ela queria morrer junto com o bebê.
— Isso é horrível mas não justifica nada do que ela fez.
— Não, não justifica. Mas você se surpreenderia se percebesse o quão fácil era ama-la e seguir suas ideias malucas. Ela sempre foi cruel e controladora, e claro, não podemos esquecer que sempre foi vingativa. Há alguns anos atrás ela conseguiu matar um membro dos Volturi, Felix, e fugimos sem deixar rastros. Ela ficou exultante por semanas. Só não sinta raiva de mim nem dos outros, estamos dando o nosso melhor.
— Eu não odeio nenhum de vocês Alex. Isabel era maluca, estou feliz que ela está morta.
Ela sorri com seus dentes perfeitos.
— Eu também, acabou finalmente.
— E o que faremos agora?
— Tentamos seguir a vida. Eu e Leah vamos pra Califórnia no final do mês.
— Jacob e Renesmee vão se casar... — complemento.
— E você vai achar algo para se ocupar.
Faço careta. Droga, com toda essa história eu nem ao menos tinha traçado um plano realmente bom pra quando o Verão acabasse.
— Eu espero que sim — murmuro, coçando a cabeça. Será que as universidades ainda estavam aceitando inscrições?
Alex acena pra mim e estava em direção a porta quando eu me lembro de uma coisa importante.
— Ei Alex, e a bebê?
Alex abre um sorriso.
— A bebê? Bom... Leah parece bem encantada por ela.
— Leah? — indago, estranhando a situação. Como assim encantada? Encantada encantada?
— É — Alex assente, ainda sorrindo.
— Nunca imaginei a Leah como mãe — sou sincera.
Ela faz careta.
— Ei! A mãe pode ser eu!
— Você muito menos — rebato.
Alex cruza os braços.
— Sou ótima com crianças! — garante.
— Sei... Não acha um pouco cedo pra fraldas e bebês?
Ela descarta minhas palavras com um aceno de mão.
— Quando se tem todo o tempo do mundo nada é cedo demais.
— Bom, boa sorte!
— Obrigada — ela responde e então olha pra trás de mim. — Olá Seth.
— Alex — ouço sua voz a respondendo.
Antes que eu pudesse me virar Alex desaparece pela porta me deixando sozinha com Seth. Respiro profundamente e me viro.
Ele vestia calça de moletom preta, estava sem camisa e com os pés descalços. Seu cabelo estava bagunçado e caía pelo ombro, o rosto era sonolento mas não parecia cansado como ontem. Seth havia dormido por doze horas como uma pedra. Sorrio sem exibir meus dentes.
— Oi — murmuro.
Ele sorri.
— Oi.
— Você dormiu bem? — pergunto, me aproximando.
— Acho que foi minha melhor noite de sono em dias — ele diz, soando vitorioso.
Faço careta. Não podia imaginar como seria estar no lugar dele assim como ele nunca poderia imaginar como foi estar no meu lugar.
— Eu sinto muito — murmuro, passando meus dedos pelo peito descoberto dele. Não queria encara-lo nos olhos.
— Você está aqui agora, acho que é o bastante pra mim — responde.
Sinto sua mão em meu queixo e ele levanta meu rosto até que eu o encare. Seus olhos escuros me confortam e por alguns segundos esqueço como fazer meu coração bater, só conseguia pensar no quão longe eu havia ido pra ver ele bem. E pela primeira vez eu me senti feliz, me senti feliz pois esse era só um pequeno momento de toda a vida que iremos ter.
— Você entende não é? O por que fiz isso? Por que entrei naquela floresta? — pergunto.
Seth assente, acariciando meu rosto.
— Eu faria o mesmo. Foi estupidez separar a gente mas isso nunca mais vai acontecer.
Assinto e me conforto com sua promessa, me afundando em seu abraço e colocando minha cabeça em seu peito. Seu coração batia rápido e presto atenção no barulho tentando memoriza-lo, esse barulho mudou tudo pra mim. Enquanto Seth me abraçava eu percebi o que o imprinting realmente significava pra mim, significava tudo o que eu era e o que iria ser, significava toda a minha vida. Um laço puro, único, forte, inquebrável. E eu não podia desonrar um laço desses.
Me afasto e minha língua queima para que eu diga o que devo dizer mas não sai uma palavra. Tudo que eu sinto é medo de que isso seja demais para suportar.
Mas é demais para que eu suporte sozinha. Eu preciso que ele saiba. Preciso que ele esteja comigo.
— O que foi Merliah? — Seth pergunta.
— Aconteceu uma coisa quando estive fora — consigo dizer.
Ele ergue uma sobrancelha e por sua expressão sei que milhões de hipóteses rondam sua cabeça.
— O que foi?
— Você precisa me prometer que isso não vai mudar o que pensa de mim — eu peço, sentindo que começava a suar frio.
— Nada mudaria o modo como eu te vejo Lia.
Balanço a cabeça em negação.
— Mas isso mudou o modo como eu me vejo — insisto.
— E como você se vê?
— Egoísta. Medrosa. Mentirosa. Suja.
— Lia... — ele tenta dizer.
— Um monstro.
Um suspiro escapa de sua boca e ele se senta na cadeira da cozinha, provavelmente esperando o pior. Seu cenho estava franzido, será que o que ele imaginava podia ser pior do que o que realmente aconteceu?
— O que aconteceu? — ele pergunta.
— Isabel me disse que estava com você, ela me fez acreditar que havia te pegado quando me levou com ela.
— Bom, não pegou.
— Eu descobri um pouco tarde demais. Ela disse que só te deixaria voltar pra casa se eu fizesse uma coisa.
— Que coisa?
— Matasse um homem — digo, com dificuldade, minha voz falhando no final. — Um lobisomem. O nome dele era Calvin.
Seth fica de pé, a descrença estampando seus olhos.
— Era? Você não fez isso, certo? — ele pergunta me olhando mas eu não respondo. — Você fez?
— Não podia deixar você morrer — murmuro, me abraçando.
Sentia o peso em sua voz, o julgamento. Eu entendia, eu esperava isso.
— E então matou um inocente?! Pelos Deuses Merliah!
— Não preciso de você me dizendo o quão horrível eu sou — me defendo.
Ele solta barulhos ininteligíveis por alguns segundos e então volta a se sentar, apoiando sua cabeça em suas mãos.
— Como foi?
Então explico como tudo aconteceu, contando todos os detalhes sórdidos e até mesmo os pensamentos que me assombraram desde aquele dia. As lágrimas em meus olhos foram inevitáveis mas consegui me controlar o suficiente para não me desesperar.
— Não acredito que fez isso! — é tudo o que ele diz quando termino de falar.
Seth estava impassível. Sua expressão não mostrava muita coisa mas seus olhos pareciam tristes, talvez seja coisa da minha cabeça. Eu também ficaria triste.
— Eu também não acredito. Eu só conseguia pensar que nada de ruim poderia acontecer com você, você matou Elijah pra me proteger, eu não podia simplesmente deixar você morrer quando tivesse que tomar a mesma escolha.
— Elijah estava tentando te matar! — ele aumenta o tom de voz.
— Eu sei.
— Minha vida não vale tanto assim — Seth murmura como uma observação mas sai mais como um lamento.
Ele estava errado.
— Vale pra mim — garanto a ele. — E não pense que eu escolheria qualquer outra coisa que não fosse a sua vida. Posso nunca mais ser a mesma mas você está vivo, isso é o suficiente pra mim. E se me pedissem pra fazer algo assim de novo eu faria, faria se isso significasse que você iria viver.
Seth assente, sem me encarar nos olhos.
— Isso é insano — ele diz.
Me sento na cadeira em frente a sua e encaro o chão, envergonhada demais para olhar em seus olhos.
— Eu matei uma pessoa por escolha própria, pra manter você vivo. Esse é o poder que você tem sobre mim.
— E eu ainda estou aqui — Seth responde. — Esse é o poder que você tem sobre mim.
Música: Hurts Like Hell - Fleurie.
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