16 | Alex
"Com falta de ar você explicou o infinito.
O quão raro e belo é existir. "
——————
Merliah
GERALMENTE EU GOSTO DE COMPANHIA, mas hoje não é um desses momentos. Após Seth me pedir para ficar na sua casa — e eu concordar como uma débil apaixonada — Sue serviu o jantar que eu comi com avidez, afinal estava morta de fome pelos meus dias me alimentando mal de tanta preocupação. Alex ficou escondida no quarto para não ter que inventar uma desculpa pra não comer, Charlie já está cansado de ver ela ignorar as refeições.
Depois do jantar ajudo Sue a lavar a louça enquanto Charlie vai assistir televisão. Ela me conta sobre o restaurante, sobre o conselho e demonstra preocupação pela mudança da filha. Sue tem noção do que está acontecendo com Seth mas deixam ela saber somente o básico, ela não tem ideia da gravidade da situação. Isso me deixa chateada, acho que como mãe ela tem o direito de saber.
Conversamos por bastante tempo até ela e Charlie se recolherem para o quarto, os dois tinham que acordar cedo. Alex aparece em seguida e sugere que a gente assista um filme enquanto esperávamos pelos irmãos Clearwater.
É claro que eles estavam demorando pra cacete. Não sei o que tanto tinham pra conversar naquela matilha.
Era quase onze horas e estávamos ambas sentadas no sofá encarando a tela brilhante de nossos celulares. O tempo parecia estar estagnado nesse momento. Após tantas horas posso dizer com certeza que não queria a companhia de ninguém além de Seth.
— E então...? — Alex pergunta, mexendo a boca tão rápido que fico em dúvida se ela realmente falou alguma coisa ou foi só a minha cabeça querendo me pregar uma peça.
— Então? — repito, encarando seu rosto de pedra.
Ela ergue a sobrancelha e então se mexe.
— Realmente vamos ficar em silêncio?
— Você disse que não queria mais ver filme — a lembro.
Tenho uma lista gigante de coisas que preferia estar fazendo do que isso.
— Eu estou entediada — ela reclama.
— Bom, eu também.
Alex bufa e cruza os braços numa violência que acaba fazendo barulho.
— Odeio ficar de fora das coisas, não sei porque não me deixam participar.
— Como se você fosse entender um bando de barulho de cachorro — ironizo, voltando a atenção pro meu celular.
— Melhor do que ficar aqui com você — ela rebate e dá um sorriso convencido quando olho pra ela.
— Ei! — reclamo, fazendo cara feia.
Tento pensar em alguma coisa que uma humana e uma vampira com séculos de idade possam conversar e isso me lembra de uma promessa que Alex me fez há alguns dias.
— Tudo bem, porque não me conta sobre seus 500 anos? — sugiro. — Você está me devendo essa.
Alex ergue a sobrancelha na minha direção.
— Ganhamos um grupo inimigo por sua culpa e eu ainda te devo algo?
Faço cara feia.
— É. Não tem nada melhor pra fazer de qualquer maneira então desembucha!
Ela dá um pequeno sorriso enquanto eu me aconchego na poltrona, pronta para ouvir sua história.
— Eu nasci com o nome Madelèine num pequeno vilarejo na França chamado Chateaulevant. Meus pais eram fazendeiros muito humildes, só produzíamos o suficiente para sobreviver.
Eu tinha um irmão mais velho e dois mais novos. Jean, Marius e Pepito, todos com uma cabeleira castanha de dar inveja a qualquer um. Até mesmo meu pai já de idade ostentava seu cachos escuros e saudáveis. Eu os amava, muito. Ainda os amo. Éramos felizes apesar de tudo, a simplicidade em que vivíamos nos fazia íntimos, o amor nos unia mais do que o sangue.
"Era uma época difícil e como eu era a única filha mulher eles queriam mais que tudo me arranjar um bom marido, alguém que tivesse dinheiro o suficiente para nos ajudar. Admito que estava empolgada com a ideia de me casar.
Um dia um homem apareceu em uma carruagem e parou na porta de minha casa, ele queria um pouco de água para os cavalos. Ele se demonstrou bem interessado em mim e passou a me visitar frequentemente, se chamava Antoine e me fez inúmeras promessas. Eu não o amava mas gostava dele e o dinheiro de sua família poderia ajudar a minha, então estava inclinada a me casar com ele.
"As coisas para o casamento estavam quase prontas, eu estava feliz e meus pais radiantes. Meu irmão Pepito havia começado a perder os dentes de leite, estava adorável com suas covinhas e a boca banguela. Em um dia sai de casa no fim da tarde, caminhando pelo longo pasto até o poço com um balde para trazer água. Foi quando a vi pela primeira vez, Lucy. Ela cintilava no sol do anoitecer, os cabelos ruivos esvoaçavam. Eu me lembro de acha-la maravilhosa, perfeita, tão linda que nem ao menos me movi quando ela se aproximou com os olhos vermelhos como sangue. Claro, eu achei estranho toda a situação mas não podia imaginar que uma moça tão bela e bem vestida poderia me fazer algum mal.
"Lucy perguntou meu nome, quantos anos eu tinha e tudo o que eu fazia, foi uma conversa rápida. Minhas respostas pareceram ser satisfatórias, satisfatórias o bastante para que ela me mordesse. Me lembro da dor excruciante e dos barulhos em volta de mim sendo ampliados pouco à pouco. Ela havia me levado para outro lugar no meio tempo em que estava inconsciente.
"Lucy me ensinou a me alimentar, a me controlar e a amar.
"Ela tinha mais três garotas no grupo que estavam insatisfeitas por terem sido substituídas por mim, parece que acontecia sempre, ela se enjoava muito fácil de suas companheiras. Lucy podia não me amar verdadeiramente mas eu à amava, foi estranho admitir isso pra mim mesma numa época como aquela mas tudo se torna mil vezes mais fácil quando se é a criatura mais poderosa do mundo. Eu não tinha que me preocupar com intolerância nenhuma pois esses problemas nunca me atingiriam.
"Fiquei anos afastada de casa, temendo voltar e devorar todos que eu amava. Meus pais e meus irmãos morreram com o passar do tempo. Quando me senti mais controlada fui ver Pepito em seus últimos dias, estava enrugado e sem dentes, a covinha já não era mais aparente. Ele chorou e me contou sobre como eu parecia com sua irmã há muitos anos desaparecida. Aquilo partiu meu coração, saber que eu não tive a oportunidade de crescer e envelhecer com ele, foi a única vez desde que me transformei que uma parte de mim desejou que isso não tivesse acontecido. Quando ele morreu rezei para que Deus tivesse piedade de sua alma, assim como queria que ele tivesse com a minha.
"Lucy morreu vinte anos depois disso, foi atacada numa noite. Eu sofri por anos sozinha, pensando no quanto seria difícil sobreviver sem ela, mas eu consegui. Eu sempre soube muito bem como me virar, não caçava com crueldade e nem por diversão, apenas por necessidade. Estou no topo da cadeia alimentar e o que diferencia seres humanos de outros animais não é mesmo?
"Passei anos e anos longe da França absorvendo culturas que nunca imaginei conhecer e aprendendo coisas que somente a imortalidade poderia proporcionar mas então resolvi voltar, queria ver como o país que eu amava estava após tantos anos. Era aproximadamente 1830, a pobreza inundava aquele país com sentimentos ruins, toda a beleza da qual eu me lembrava havia sumido.
"Os pobres queriam seus direitos, queriam comida, justiça. Todo dia pela manhã víamos corpos caídos ao chão mortos de fome, pobres miseráveis que não tinham como sobreviver. As mulheres se prostituíam, os homens roubavam, os revoltosos cresciam. Após a queda de Bonaparte a população não estava inclinada a aceitar um regime absolutista novamente.
"Não me envolvi nesses embates políticos, não fazia sentido lutar por algo que nunca me atingiria. Tudo o que se aplica a seres humanos jamais se aplicaria à mim, na minha cabeça nunca fez sentido interferir.
"Foi nessa época, sentada no banco de uma taverna que conheci Gervais. Era um revolucionário, alto e cheio de palavras bonitas. Seu tom de voz era bem persuasivo, todos os amigos que andavam com ele pareciam ouvir com atenção cada sílaba que saía de sua boca.
"Quando Gervais se aproximou e sentou ao meu lado na mesa seus amigos cochicharam e deram risinhos, claro, eles achavam que eu era uma prostituta. Quem podia julga-los por pensar isso? Uma moça jovem, sentada todos os dias em uma taverna cheia de homens, bem vestida e sempre desacompanhada.
"Eu também pensaria.
"Gervais quis dar uma de espertinho e me perguntou o que eu achava sobre a revolução. Calei a boca dele com facilidade, explicando todos os aspectos que me faziam ser contra e a favor. Eles não esperavam que eu soubesse tanto sobre o assunto, principalmente por eu ser mulher, mas não dormir nos dá muito tempo para ler.
"E então ele largou seus amigos e se sentou comigo em minha mesa, conversamos a noite toda. Era impossível não gostar dele, seus planos revolucionários sobre o amanhã e sua empolgação com os motins... Ele queria lutar. Sua família tinha dinheiro mas ele não concordava com o modo como as coisas iam no país, toda aquela gente sofrendo enquanto os ricos se refestelavam em seus privilégios. Era nobre o suficiente para lutar pelos outros, ele podia muito bem ter se acomodado com sua boa vida.
"Passamos a nos encontrar toda noite lá, depois em lugares mais privados até ele passar a frequentar a hospedaria em que eu morava. Ficamos juntos por meses, contei a ele o que eu era mas isso não mudou o que ele sentia. Quando fazíamos amor só conseguia pensar que queria ficar com ele pra sempre, eu o amava com toda a minha alma.
"Gervais queria se tornar um vampiro e eu estava disposta a transforma-lo. Pensar em um milhão de vidas com ele me parecia ser um presente divino, não havia nada que eu quisesse mais do que isso. A pequena parte de mim que imaginava belas crianças de cabelos ondulados correndo pela casa era sufocada a cada vez que imaginava passar a eternidade com ele.
"Mas quando estávamos prestes a dar esse passo as barricadas foram erguidas e o grupo de Gervais teve que se posicionar nelas. Pedi a ele que não fosse mas ele insistiu que não podia deixar os amigos na mão, insistiu que aquilo era história e que não podia deixar de particiar. Que nossos planos podiam esperar.
"Quis transforma-lo antes que ele fosse mas a transição demoraria mais do que seus amigos poderiam esperar. Tudo que pude fazer foi deixa-lo ir, não havia ninguém no mundo que fosse mais teimoso que ele.
"Eu me mantive por perto e só ia até as barricadas à noite, fazíamos amor escondido atrás dos barris e eu tentava me livrar de alguns oficiais do governo sem causar muito alarde. Não gostava de matar pessoas sem ser para me alimentar mas não queria que Gervais corresse mais riscos.
"Numa tarde eu estava enfiada em uma taverna esperando algumas notícias, como era de dia não podia ficar no ar livre. Um garoto entrou correndo pela porta, a cara manchada de carvão e os cabelos pingando suor, ele disse que havia sido ordenado aos oficiais que atravessassem as barricadas e matassem a todos.
"Quando cheguei já era tarde.
"A rua estava pintada de vermelho, algumas moças esfregavam as pedras tentando tirar os vestígios de sangue. Os corpos estavam empilhados como se não fossem nada. Achei Gervais com as mãos fechadas em punho, os olhos abertos ainda mostravam todos os seus sonhos por um amanhã. O amanhã nunca chegou.
"Até o momento atual eu nunca senti uma dor avassaladora como aquela, tinha forças o suficiente para aterrar a minha alma. Uma sensação estranha percorreu meu corpo e eu percebi que chorava, mesmo não podendo expelir uma só lágrima.
"Quando olhei para seu rosto entendi o porque de tê-lo amado tanto, os cachos escuros do cabelo e as covinhas adoráveis lembravam as dos meus irmãos. O enterrei e me ajoelhei perante Deus novamente, pedindo a ele misericórdia pela alma de Gervais e mais uma vez pela minha."
Alex ficou em silêncio, me encarando com seus grandes olhos amarelos. Uma lágrima que eu nem sabia que havia produzido escorre pelo meu rosto, me apresso para limpa-la.
— Eu pensei que vampiros não acreditassem em Deus — murmuro a primeira coisa que me passou pela cabeça.
— Eu tenho um Deus e ele fala comigo todos os dias, posso não estar viva em todos os aspectos mas eu definitivamente existo. Não sou melhor que ninguém nesse mundo mas também não sou pior. Eu tenho uma alma, séculos de histórias, Deus me presenteou com um infinito de possibilidades. Eu poderia ter a imortalidade como um castigo mas escolhi acolhe-la como um presente.
Assinto, fazia sentido pra mim. Se ela escolhesse que a imortalidade é uma maldição como iria conseguir viver e ser feliz?
— E o que você fez depois do Gervais? — pergunto, curiosa com os anos seguintes de sua vida.
— Depois disso fui para a Itália e passei um tempo com os Volturi mas seus métodos de existência são cruéis e esse tipo de coisa nunca me agradou então após quase cem anos resolvi tomar coragem para ficar sozinha. Não durei muito tempo nesse estado, achei Isabel e seu grupo logo em seguida e resolvi ficar com eles. Passamos a maior parte dos anos nos Estados Unidos, até mesmo mudei meu nome afinal Madelèine me parecia uma tanto antiquado pra época. Mesmo num grupo grande como o de Isabel os Volturi nunca desistiram de nos rastrear. Eles por terem aliança com lobisomens e eu por conta de meu dom.
Isso chama minha atenção, me fazendo erguer a cabeça. Acho que Jake tinha me falado algo do tipo...
— Você tem um dom?
Alex sorri.
— A grande maioria dos vampiros tem na verdade, alguns são mais sutis, outros mais perceptíveis.
— E o que você faz? — pergunto.
Nesse exato momento a porta de entrada se abre e Seth entra, junto com uma rajada de vento gelado. Me arrepio so de ver que ele estava só de bermuda nesse tempo horrível.
— Voltei — ele anuncia com um sorriso.
Alex se bota de pé em um borrão.
— Então acho que já vou indo — ela diz, parada na entrada do quarto de Leah.
Arregalo os olhos pra ela. Como assim ela vai me deixar curiosa? Não pode parar logo na melhor parte!
— Não, não. Você vai acabar de me contar a história! E o dom?
Ela dá um sorriso maligno.
— Amanhã você vai ver. Seth vai te levar nos Cullen.
— Vou? — Seth indaga, se jogando no sofá.
— Vai. E não conte nada a ela, vai estrgar a surpresa.
Antes que pudesse falar mais uma palavra Alex some da minha frente e ouço o clique da porta do quarto. Cruzo os braços como uma criança birrenta e mimada.
Seth olha pra mim com uma expressão divertida. Me levanto da poltrona e vou em sua direção, se for pra ficar curiosa que seja perto dele.
— E então, sobre o quê estavam conversando?
Me sento ao seu lado, sentindo seu calor reconfortante em minha pele e então respondo:
— Sobre o quão bonito é existir.
Oi gente! Segundo capítulo da semana como prometido!
Quis contar um pouco da história da Alex já que vocês parecem gostar tanto dela, admito que ela também é meu xodózinho.
Peguei umas referências de Os Miseráveis, quem leu o livro ou viu o filme vai perceber.
Beijos e até mais!
Música: Saturn - Sleeping At Last.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top