01. Highest in the Room

O ônibus seguia seu caminho pelas ruas de Barcelona, o sol da tarde refletindo nas janelas, pintando os assentos com faixas douradas e quentes. Estávamos a poucos dias do início do Sekai Taikai, o maior campeonato mundial de karatê, e a energia dentro do veículo era quase palpável. As conversas, os risos e até os suspiros nervosos enchiam o ar, mas eu me mantinha em silêncio, olhando pela janela enquanto os prédios antigos e as calçadas movimentadas passavam como borrões.

Ao meu lado, Kaito falava sem parar, como de costume. Ele era meu parceiro de treino e o outro líder da equipe, e a empolgação dele transbordava em cada palavra.

— Você já pensou, Lin? Pessoas de todos os lugares do mundo, todas as etnias, todas as culturas... É como se o Sekai Taikai fosse mais do que um torneio. É uma celebração de tudo o que o karatê representa. Imagino como será lutar contra alguém com um estilo completamente diferente do nosso! Será uma experiência incrível!

Eu balancei a cabeça levemente, oferecendo um murmúrio de concordância.

— Sim, vai ser interessante.

Mas, na verdade, minha mente estava longe dali. As palavras de Kaito ecoavam ao fundo, se misturando ao zumbido do motor e ao ritmo constante das rodas no asfalto. Tudo o que eu conseguia pensar era em como esse torneio era mais do que "interessante" para mim. Era tudo.

O Sekai Taikai seria o meu último campeonato antes da faculdade, e eu sabia que poderia definir meu futuro, e o da minha irmã. Jane, a sensei da nossa equipe, estava sentada algumas fileiras à frente, inclinada para perto de Tadashi, nosso outro sensei. Eles conversavam em vozes baixas, mas o tom sério era inconfundível.

— Precisamos garantir que a equipe esteja focada e equilibrada. — Ouvi Jane dizer, seu tom firme e confiante, como sempre. — Se os líderes não conseguirem segurar a pressão, o resto desmorona.

— Exatamente. — Tadashi respondeu, assentindo. — Eles têm que liderar pelo exemplo.

Eu sabia que Jane não estava falando apenas da equipe em geral. Ela estava falando de mim e de Kaito. O peso da responsabilidade era algo que eu sentia constantemente, como um fardo invisível que pressionava meus ombros. Liderar a equipe era mais do que um título, era uma expectativa, uma obrigação que eu não podia falhar em cumprir.

— Lin? Você está ouvindo? — A voz de Kaito me trouxe de volta à realidade. Ele olhava para mim com a testa franzida, claramente percebendo que eu estava perdida em meus próprios pensamentos.

— Desculpa. — Murmurei, endireitando-me no assento. — Estava pensando no torneio.

Ele sorriu, como se entendesse completamente.

— Eu sei como você é, sempre focada. Mas relaxa um pouco, tá? Estamos aqui para fazer o nosso melhor, e isso já é suficiente.

Eu queria acreditar nele, mas a verdade era que "o nosso melhor" nunca parecia suficiente para mim. Meu pai me ensinou isso desde cedo, e Jane, embora menos severa, seguia os mesmos princípios. O karatê era mais do que um esporte na nossa família, era uma medida de quem éramos, do que valíamos.

Meu olhar voltou para a janela, onde o reflexo do meu rosto parecia me encarar, desafiador. Não importava o quanto eu tentasse me distrair, uma única promessa pulsava na minha mente, daria tudo de mim nesse campeonato, custasse o que custasse. Não era apenas sobre vencer. Era sobre provar, para mim mesma e para os outros, que eu era digna do posto que ocupava, e talvez, finalmente, escapar da sombra da minha irmã.

O ônibus desacelerou ao se aproximar do hotel, um prédio imponente com uma fachada de vidro reluzente. Enquanto os outros se agitavam, recolhendo mochilas e conversando sobre as primeiras impressões da cidade, eu permaneci sentada por mais alguns segundos, respirando fundo e ajustando mentalmente a máscara de determinação que usaria nos próximos dias.

— Ei, Lin! — Kaito chamou, já de pé. — Você vem?

— Claro. — Respondi, levantando-me com um sorriso que escondia o turbilhão dentro de mim. Afinal, líderes não podiam se dar ao luxo de demonstrar fraqueza.

O ar-condicionado do hotel era uma mudança bem-vinda depois do calor abafado do ônibus. O hall era espaçoso, com um lustre imenso pendurado no teto e poltronas de couro dispostas em semicírculos ao redor de mesas de centro espelhadas. O cheiro de flores frescas misturado ao leve aroma de madeira polida criava uma atmosfera elegante, mas eu mal tinha olhos para isso. Tudo o que conseguia pensar era no peso do torneio e no fato de que, para mim, Barcelona não era um lugar para turismo, era um campo de batalha.

Jane estava no balcão de check-in, seus olhos escaneando o ambiente como um radar. Mesmo enquanto conversava com o recepcionista, ela olhava constantemente por cima do ombro, como se esperasse flagrar alguém derrubando um vaso caro ou se jogando no sofá com os pés para cima. Ela sempre foi assim, vendo todos nós como crianças que treinavam em seu dojo desde antes de conseguirmos chutar acima da cintura. Era quase engraçado, considerando que a maioria de nós já tinha idade para dirigir, mas não totalmente.

Com um suspiro, me joguei em um dos sofás ao lado da recepção, cruzando os braços enquanto tentava relaxar. Não era fácil, e meu cérebro parecia estar em modo constante de planejamento e análise. Antes que eu pudesse perder totalmente o foco, Kaito se sentou ao meu lado, ajustando os óculos redondos com um movimento distraído. Ele alcançou uma das revistas na mesa de centro, abrindo-a casualmente.

— Olha isso, Lin. — Ele virou a revista para mim, mostrando uma página cheia de fotos coloridas de pontos turísticos, a Sagrada Família, o Parque Güell, as Ramblas. — Barcelona é incrível, né? Acho que a gente devia tentar visitar alguns desses lugares. Já pensou em tirar uma foto na frente daquelas torres gigantes? Ia ser épico.

Revirei os olhos, soltando um riso curto.

— Kaito, a gente não veio aqui pra turismo. Estamos aqui pra competir. Você devia focar no torneio, não em passeios turísticos.

Ele bufou, balançando a cabeça com uma expressão brincalhona.

— Ah, qual é, Lin. Temos alguns dias de descanso antes de começar de verdade. Dá pra curtir um pouco, né? Não vai matar ninguém.

— Quem sabe depois. — Murmurei, mais para encerrar a conversa do que porque realmente estava considerando.

Antes que ele pudesse insistir, um movimento na entrada chamou minha atenção. Um grupo entrou no hall, andando com um tipo de confiança que imediatamente me fez levantar as antenas. Eles usavam jaquetas pretas com uma cobra prateada brilhando nas costas, e as letras bordadas indicavam claramente que eram coreanos. Meu pai sempre dizia que postura e presença diziam muito sobre uma equipe, e, olhando para eles, era óbvio que sabiam disso. Caminhavam com o ar descontraído de quem sabia que era bom, ou pelo menos acreditava nisso.

Fiquei observando enquanto eles se espalhavam pelo hall, falando uns com os outros e avaliando o ambiente. Eles pareciam descolados, sem dúvida, mas, em minha mente, já começava a me perguntar se eram uma ameaça real. Jane e meu pai me ensinaram que um lutador nunca deve subestimar o adversário. "Analise os obstáculos," eles diziam, "e então, destrua-os."

Meu olhar se fixou em um dos integrantes da equipe coreana, um garoto com cabelos bagunçados e um andar descontraído, quase insolente. Ele parecia perceber que estava sendo observado, mas, em vez de reagir, simplesmente desviou o olhar com um leve sorriso, como se soubesse exatamente o que eu estava pensando.

Antes que pudesse analisar mais, ele esbarrou de propósito em outro garoto no corredor, um garoto que claramente não fazia parte da equipe dele. Era um americano, presumi, pelo corte de cabelo de outro integrante próximo, um moicano patriótico que quase me fez rir. Os dois começaram uma troca de olhares afiados e algumas palavras tensas que não consegui ouvir, mas as faíscas entre eles eram evidentes.

Meu olhar então se voltou para o líder americano. Ele era diferente do garoto coreano. Tinha cabelos lisos médios, olhos claros e uma expressão que parecia carregar um cansaço interno, quase como se algo pesasse em seus ombros. Não tinha a mesma confiança ostensiva do outro, mas, ao mesmo tempo, havia algo nele que me fez hesitar em descartá-lo como um oponente fácil. Ele parecia... Perigoso, de um jeito discreto.

— Você vai ficar analisando eles o dia todo, ou vai esperar até o tatame pra decidir se eles são bons mesmo? — A voz de Kaito quebrou meu foco, me puxando de volta para a realidade. Ele me olhava com aquele sorriso de quem sabia exatamente o que eu estava fazendo, mesmo sem que eu precisasse dizer.

Eu ri, batendo de leve no ombro dele.

— Só estava curiosa com a briga. Vai dizer que você não está?

— Talvez... — Ele respondeu, rindo também. — Mas, sério, Lin... Relaxa um pouco. A competição só começa daqui a alguns dias.

Eu apenas sorri de canto, mas, no fundo, sabia que não conseguia desligar minha mente. Estávamos em Barcelona para lutar, e cada pessoa ali era uma peça no jogo que eu precisava vencer. Relaxar podia esperar.

۶

Desfazer as malas não era exatamente minha atividade favorita, mas era necessário. Enquanto eu dobrava cuidadosamente minhas roupas e organizava meu espaço no armário, não podia deixar de me sentir levemente irritada por dividir o quarto com Audora. Não era segredo que ela me incomodava. A garota tinha uma confiança exagerada que transbordava para o exibicionismo, além de uma tendência irritante de fazer perguntas sobre tudo, mesmo quando as respostas eram óbvias. Ela se achava a melhor lutadora, apesar de não ser a líder, e sua sede de vitória era evidente. Só que havia algo errado nisso. Seus princípios pareciam distorcidos, como se vencer fosse mais importante do que o caminho até a vitória.

Ainda assim, eu fazia o possível para ser educada. Mantinha a fachada de simpatia, mesmo que minha personalidade naturalmente mais reservada tornasse isso difícil. Política. Era assim que Jane sempre dizia que eu deveria agir, política, equilibrada.

Enquanto eu estava dobrando meu uniforme de karatê, Audora, sentada na cama com as pernas cruzadas, começou a falar sobre algo que claramente a animava.

— Você sabia que lá embaixo está rolando um encontro entre as equipes? — Ela comentou, casualmente, mas com um brilho competitivo nos olhos.

— Que tipo de encontro? — Perguntei, tentando parecer apenas vagamente interessada, embora a verdade fosse que qualquer coisa relacionada às equipes rivais automaticamente captava minha atenção.

— Estão apostando alguma coisa. Não sei exatamente o quê, mas parece que vai ser uma competição. Honestamente, eu não faço ideia do que eles estão apostando, mas... Quem se importa? Eu quero ver.

Sem esperar uma resposta minha, Audora se levantou de um salto e já estava na porta, como se tivesse decidido por nós duas. Suspirei, sabendo que não teria paz até que ela saciasse sua curiosidade.

— Espera aí! — Disse, fechando minha mala com um pouco mais de força do que o necessário e seguindo-a.

A verdade? Eu não estava exatamente empolgada com aquilo. Competir fora do tatame nunca me pareceu produtivo. Mas a palavra "competição" tinha um jeito de despertar algo em mim, como se fosse impossível ignorá-la. O que quer que estivesse acontecendo, eu precisava saber se valeria a pena.

Entramos no elevador, e, enquanto ele começava a descer, duas garotas entraram no mesmo andar. Reconheci ambas imediatamente. Eu as tinha visto mais cedo no hall, com a equipe do garoto de moicano. Uma delas tinha olhos azuis penetrantes e o tipo de postura que indicava confiança. A outra, asiática, parecia mais discreta, mas igualmente atenta.

Elas conversavam entre si em tons baixos, mas o silêncio do elevador fez com que fosse impossível não ouvir.

— Você viu como o Robby está afetado pela Tory? — Disse a garota de olhos azuis, um toque de exasperação em sua voz.

— Sim, e isso definitivamente vai prejudicar a equipe. — A asiática respondeu, cruzando os braços. — Provavelmente vai piorar ainda mais agora, com a rixa com Kwon.

Troquei um olhar rápido com Audora, que pareceu estar pensando exatamente o mesmo que eu, do que elas estavam falando?

Robby. Kwon. Então aqueles nomes tinham rostos. Robby, o americano de olhar abatido que eu tinha notado no hall, e Kwon, o asiático com aquela confiança irritantemente exagerada. Ótimo.

Enquanto o elevador continuava descendo, minha mente estava trabalhando rápido. Se eles estavam afetados, como aquelas garotas deixaram escapar, isso significava que fraquezas estavam à espreita, e Jane sempre me ensinou a identificar fraquezas antes de um combate. Não só identificar, mas aprender a usá-las a meu favor.

Eu ainda não sabia exatamente o que era essa "competição" ou o que eles estavam apostando, mas já tinha certeza de que valeria a pena investigar. A curiosidade crescia em mim, e agora, mais do que nunca, eu queria entender como esses jogadores se encaixavam no grande jogo que estava prestes a começar.

Assim que saímos do elevador, seguimos pelo corredor até uma área mais aberta do hotel. O som de risadas, vozes animadas e até alguns gritos ecoava, e eu já conseguia sentir a energia do lugar antes mesmo de ver o que estava acontecendo. Quando finalmente viramos a esquina, a cena que se desenrolava à frente era exatamente o que eu esperava, uma multidão reunida em torno de algo que, com certeza, envolvia rivalidade.

Dei uma risada curta e quase irônica ao notar uma figura familiar bem no meio da agitação, Kaito. Claro que ele estava ali. Se havia qualquer tipo de alvoroço, ele seria o primeiro a aparecer. Kaito tinha um talento especial para se meter onde não era chamado, como um ímã para situações caóticas. Ele estava de braços cruzados, mas dava para ver pelo brilho nos olhos que estava adorando aquilo.

Caminhei até ele, empurrando levemente o braço dele com o cotovelo.

— Sério, Kaito? Não consegue ficar longe de confusão nem por cinco minutos?

Ele revirou os olhos dramaticamente, fingindo indignação.

— Ah, fala sério, Lin. Isso aqui é entretenimento puro. E você está adorando tanto quanto eu, só que não quer admitir.

Revirei os olhos, mas não consegui evitar um pequeno sorriso. Ele sabia como tirar sarro de mim no momento certo. Antes que pudesse retrucar, ele apontou para frente, onde um grupo de garotos estava no centro da atenção.

— Olha lá. — Ele disse, inclinando a cabeça na direção deles.

Meus olhos seguiram o gesto, e eu reconheci rapidamente dois rostos familiares no grupo. O primeiro era Robby, o garoto americano com o olhar cansado, mas determinado. O outro era Kwon, o asiático com aquele ar arrogante e confiante que já havia chamado minha atenção antes. Os dois estavam de pé, frente a frente, com o tipo de tensão que só podia significar uma coisa: competição.

Audora se aproximou, claramente animada, e não conseguiu esconder um sorriso enquanto nos atualizava sobre o que estava acontecendo.

— Aparentemente, quem chutar mais alto fica com o quarto do outro. — Ela disse, como se fosse a coisa mais empolgante que já tinha visto na vida.

Eu apenas observei em silêncio, mantendo minha expressão fechada, como de costume. Por mais que achasse aquilo, no mínimo, interessante, não estava disposta a deixar isso transparecer. Meu olhar se fixou em Robby, que parecia se preparar para ser o primeiro. Ele se afastou alguns passos para ganhar impulso, respirou fundo, e então deu o chute.

Foi um chute sólido, com técnica limpa. A marca de giz que ele deixou na parede era impressionante, especialmente considerando que ele não parecia ser do tipo exibido. Havia uma determinação silenciosa no modo como ele se movia, e, mesmo que não fosse perfeito, era o tipo de chute que exigia respeito.

Antes que eu pudesse analisar mais, Kwon entrou em cena. Ele parecia relaxado, quase desinteressado, mas havia algo calculado em seus movimentos. Quando finalmente deu o chute, foi como se estivesse mostrando ao mundo que não havia comparação. A marca de giz que ele deixou na parede estava visivelmente mais alta do que a de Robby.

Fiquei um momento observando, quase perplexa. Não pude evitar soltar um comentário baixo, mais para mim mesma do que para qualquer um ao meu redor.

— Nada mal. — Murmurei, com um pequeno sorriso de canto.

Kaito, sempre atento a tudo, se aproximou de mim e falou em tom conspiratório.

— Você sabe que faz melhor, né?

Revirei os olhos, mas uma risadinha escapou antes que eu pudesse impedir.

— Me poupe, Kaito. — Retruquei, tentando esconder a diversão que ameaçava aparecer no meu rosto.

Enquanto o burburinho continuava ao nosso redor, não pude deixar de pensar que essa pequena exibição era apenas o começo. Cada movimento, cada rivalidade que se formava aqui era parte de algo maior. E, de algum jeito, eu sabia que isso só estava começando.

Bati com o dorso da mão no peito de Kaito, o que arrancou dele um som abafado de surpresa, mais exagerado do que necessário.

— Já deu desse show. — Disse, meu tom meio impaciente. — Vamos comer. Estou faminta.

Audora, claro, não perdeu a chance de se meter na conversa.

— Vou ficar mais um pouco. — Ela anunciou, lançando um olhar significativo para a confusão à nossa frente. — Quero conhecer melhor os oponentes.

Kaito e eu trocamos um olhar que dizia tudo. Não era segredo para ninguém que nenhum de nós gostava muito dela. Não era que Audora fosse insuportável, bom, talvez fosse. Mas havia algo nela que não nos descia. Talvez fosse o jeito excessivamente competitivo, quase desesperado, de querer ser notada. Talvez fosse o fato de que ela claramente não sabia quando parar de falar. Seja qual fosse o motivo, o sentimento era mútuo entre nós dois.

Kaito passou o braço ao redor dos meus ombros, como se quisesse me proteger de alguma ameaça invisível. Olhei para ele com uma sobrancelha arqueada, minha expressão seca. Ele apenas sorriu de lado e disse.

— Estou só te protegendo das pragas de Audora querendo o seu lugar como líder.

Revirei os olhos, mas não consegui segurar uma risada curta.

— É, vou precisar. — Respondi, num tom que oscilava entre brincadeira e sinceridade. Mas logo voltei à minha expressão mais séria e disparei. — Agora vamos comer, antes que eu frite seu fígado com azeite.

Kaito riu, aquele riso despreocupado que sempre parecia irritantemente fora de lugar, e zombou.

— Você é tão meiga, Lin. Parece uma flor.

Ignorei o comentário, acelerando o passo pelo corredor enquanto ele me seguia. A verdade é que eu e Kaito éramos praticamente inseparáveis, mas não por escolha ou afinidade natural. Fomos criados juntos desde que eu conseguia me lembrar. Treinamos juntos, comemos juntos, suportamos as exigências do meu pai juntos. Crescer em um ambiente tão competitivo e isolado forjou nossa proximidade. Não éramos melhores amigos no sentido tradicional, mas entendíamos um ao outro de um jeito que mais ninguém conseguia. Talvez fosse porque, no fim das contas, éramos os únicos que podíamos realmente tolerar nossas personalidades difíceis.

Enquanto caminhávamos, senti um impacto leve no meu ombro. Virei-me automaticamente, meu olhar afiado já preparado para repreender quem quer que fosse. Meus olhos encontraram um garoto, o mesmo que eu tinha observado mais cedo: Robby.

Ele parecia até mais abatido de perto, como se carregasse o peso do mundo nos ombros. Era estranho como o olhar dele, mesmo com aquele ar cansado, era tão direto, quase penetrante. Ficamos ali, nos encarando por um longo momento que pareceu mais longo do que realmente era. Ele parecia prestes a dizer algo, mas o que saiu foi apenas um murmúrio.

— Desculpa. — Disse ele, com uma voz baixa, quase como se não tivesse certeza de que eu ouviria.

Antes que eu pudesse responder, ele desviou o olhar e se afastou, caminhando pelo corredor com passos que eram mais rápidos do que precisavam ser. Por um instante, me vi olhando por cima do ombro, observando ele desaparecer no meio do movimento do hotel.

— Estranho. — Kaito comentou ao meu lado, franzindo o cenho enquanto olhava na mesma direção que eu.

— É... — Murmurei, sem oferecer muito mais. Minhas palavras saíram quase sem pensar, enquanto meu olhar ainda seguia Robby por um momento. Mas logo balancei a cabeça, afastando a distração, e voltei a caminhar.

O que quer que fosse aquilo, não importava. Não agora. Minha prioridade era clara, comer algo antes que eu literalmente perdesse a paciência. Kaito, sempre sabendo quando mudar de assunto, começou a falar sobre o cardápio do restaurante do hotel, e eu deixei que sua voz me puxasse de volta ao momento. Mas, no fundo, não conseguia ignorar a sensação estranha que aquele breve encontro tinha deixado em mim. Como se algo tivesse começado, mesmo que eu ainda não soubesse o que.

Chegamos ao restaurante do hotel, um lugar amplo e iluminado com janelas enormes que deixavam entrar a luz dourada do início da noite em Barcelona. O ar tinha aquele cheiro irresistível de comida recém-preparada, misturado ao aroma de temperos que não consegui identificar de imediato. Era um lugar sofisticado o bastante para nos fazer sentir fora de casa, mas ainda assim casual o suficiente para que não nos sentíssemos fora de lugar com nossas roupas de viagem.

Passei a mão pelos meus cabelos curtos, ajeitando-os atrás das orelhas, enquanto tentava ignorar a leve dor que começava a se instalar na minha nuca. A verdade é que eu estava exausta. Os últimos treinos tinham sido insanos, não que eu estivesse reclamando, porque isso vinha com o território de ser líder. Mas a responsabilidade pesava mais do que eu admitiria.

Desde que essa viagem começou, eu não consegui dormir direito. Nem no avião, nem no ônibus. Não importa o quão cansada eu estivesse, minha mente não desligava. Era como se ela estivesse presa em um ciclo infinito de estratégia e planejamento. Enquanto isso, Kaito tinha passado metade do voo e quase todo o caminho de ônibus dormindo tão profundamente que até babou no ombro. E, claro, eu fui a primeira a apontar isso quando ele finalmente acordou.

Escolhemos uma mesa perto da janela, onde a luz ainda dava um tom dourado ao ambiente. Respirei fundo antes de me sentar, deixando meu corpo finalmente relaxar por alguns instantes. A cadeira era macia, e meu estômago roncou levemente assim que peguei o cardápio.

— Batatas fritas com cheddar e bacon. — Kaito anunciou quase imediatamente, nem sequer olhando o menu direito.

Levantei uma sobrancelha para ele.

— Sério? A gente passou os últimos meses comendo frango grelhado e salada, e agora você quer isso?

Ele deu de ombros, apoiando o queixo na mão com um sorriso travesso.

— Estamos em território espanhol, Lin. Carpe diem deve ser o nosso mantra, pelo menos hoje.

Revirei os olhos, mas não consegui evitar um pequeno sorriso. Kaito tinha esse talento irritante de me fazer relaxar, mesmo quando eu estava determinada a manter minha compostura.

— Você é tão patético às vezes. — Murmurei, mas fiz sinal para o garçom e pedi exatamente o que ele queria.

Quando a comida chegou, foi como uma pequena vitória. As batatas estavam quentes, cobertas por uma camada generosa de queijo cheddar derretido e pedacinhos crocantes de bacon. Peguei uma batata, soprando antes de dar a primeira mordida, e suspirei de satisfação. Não era o tipo de coisa que eu comeria com frequência, mas naquele momento, parecia merecido.

Enquanto comíamos, começamos a falar sobre as equipes que tínhamos visto até agora. Era o tipo de conversa que sempre tínhamos depois de observar nossos concorrentes, uma troca casual, mas que, para mim, servia como um exercício mental.

— Eu senti arrogância no líder coreano. — Comecei, empurrando o queijo derretido da batata com o garfo antes de comê-la. — Ele tem aquele jeito convencido que grita 'me subestimem e eu vou destruir vocês.' Mas ele realmente tem potencial. Você viu o chute dele mais cedo. Foi impressionante.

Kaito assentiu, mastigando uma batata antes de responder.

— E o americano? O Robby?

Hesitei por um segundo, tentando colocar meus pensamentos em ordem.

— Ele é diferente. — Admiti. — Não tem a mesma confiança exagerada, mas senti... Responsabilidade nele. É como se ele carregasse o peso do time inteiro, mas ao mesmo tempo estivesse meio perdido. Ainda assim, acho que a equipe dele não deve ser subestimada. Eles podem ser um alvo considerável.

Kaito se inclinou sobre a mesa, apoiando os cotovelos e olhando para mim como se eu fosse uma espécie de enigma.

— É assustador como você consegue deduzir essas coisas só com uma troca de olhares. — Disse ele, o tom carregado de uma falsa admiração.

Peguei uma batata e joguei nele, acertando seu braço.

— Cala a boca. — Retruquei, tentando parecer irritada, mas rindo logo em seguida.

Ele riu também, inclinando-se para trás na cadeira enquanto pegava a batata que eu joguei e a comia descaradamente.

E, por um momento, me permiti relaxar. Por mais que as responsabilidades de líder fossem pesadas, por mais que minha mente estivesse sempre pensando no próximo passo, eu sabia que ainda havia momentos como esse , momentos em que eu podia ser apenas eu mesma, sem me preocupar com o que viria a seguir.

Obra autoral ©

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