02. Make you mine

A chuva ainda cai pesada quando passo as mãos pelos cabelos encharcados, sentindo a água fria escorrer pela minha pele quente. Meu peito sobe e desce de maneira errática, não sei se pelo ódio ou pela frustração. Meu olhar encontra Meizuo, ainda rindo, ainda se achando no direito de agir como se nada tivesse acontecido.

Num movimento rápido, agarro o colarinho da jaqueta dele e o puxo para perto, tão perto que vejo o medo se formar nos olhos dele. Chacoalho com força, minha raiva pulsando em cada músculo do meu corpo.

— O que deu em você pra achar que tinha algum direito de fazer aquilo? — Minha voz sai cortante, quase um rugido no meio da ruela molhada.

Meizuo treme, engasga em sua própria desculpa.

— Ela é novata... Ela...

— CALA ESSA BOCA! — Grito, minha paciência já no limite. Meu punho se fecha, mas me forço a não avançar mais. Meizuo se encolhe, e os outros garotos ao redor ficam tensos, trocando olhares nervosos.

Respiro fundo, tentando recuperar o controle. Não posso perder o controle. Não agora. Mas ainda assim, minha voz sai carregada quando continuo.

— Se encostar um dedo nela... — Minha voz diminui, mas o peso da ameaça preenche o ar. Meu olhar percorre o grupo inteiro, observando um a um. — Se qualquer um de vocês encostar um dedo nela, mato vocês.— Faço uma pausa, absorvendo a tensão no ar. Então sorrio de lado, um sorriso cruel, sem humor. — Eu sou o único a ter esse direito.

Eles hesitam, claramente desconfortáveis, mas acenam com a cabeça em concordância. Meio assustados, meio submissos. Bom. Assim é melhor.

Solto Meizuo com um empurrão brusco, fazendo-o tropeçar para trás, e passo a mão no rosto, sentindo a água e o suor se misturando na minha pele. Sem dizer mais nada, viro-me e saio, os passos pesados contra o asfalto molhado.

O caminho para o dojô é rápido, mas na minha mente tudo se arrasta. Cada pensamento, cada sentimento bagunçado. Eu precisava treinar. Precisava de um lugar para colocar tudo isso para fora antes que me consumisse por dentro.

Minha casa? Não. Aquela casa não é um lar. É fria, vazia, escura, e eu odeio cada segundo dentro dela. O dojô, por outro lado... O dojô é barulhento. É cheio de energia. De comandos, de gritos, de movimento. Lá, eu sei quem sou. Lá, meu corpo se move sem hesitação, sem dúvida.

Mas hoje, mesmo enquanto ando, mesmo sabendo que a dor dos treinos vai ajudar a aliviar a pressão no meu peito, não consigo me livrar da sensação que me atormenta.

Elara.

Ela está aqui há anos. Se mudou para Pequim sem conhecer nada, sem falar a língua, sem ter ninguém além de uma tia negligente. Eu a observei de longe, no começo por curiosidade, depois por um motivo que não sei nomear. Ela sempre foi... Resistente. Sempre se fechou em uma bolha, se protegendo do mundo como se não pudesse confiar em ninguém. Ela tenta esconder, mas eu vejo.

Ela se desdobra, trabalha como uma condenada, se esforça para conquistar algo que eu ainda não sei o que é. Mas a questão é que... Ela nunca para. Nunca cede. Nunca baixa a guarda.

E isso me enlouquece.

Ela olha para mim com desprezo. Sempre olhou. Como se eu fosse insignificante, como se fosse nojento. As poucas vezes que trocamos palavras, foram carregadas de veneno. Ela me odeia. E eu sei disso porque ela não se incomoda em esconder.

Mas eu não aceito.

Não aceito que ela me trate assim quando ninguém mais se atreve. Não aceito que, de todas as pessoas que eu poderia controlar, ela seja a única que me escapa.

Eu mando na escola. No dojô. Até nessas ruas sujas, meu nome tem peso. Mas Elara... Elara desafia tudo isso.

E talvez, no fundo, seja exatamente por isso que eu não consigo tirá-la da cabeça.

Quando chego no dojô, já posso sentir a energia no ar. O cheiro de suor e madeira, o eco das mãos se batendo nos tatames. Tudo é familiar e, de alguma forma, reconfortante. Eu sei o que esperar, o que fazer. Não há espaço para dúvidas aqui. A rotina é simples, mas implacável. Mestre Li já está lá, como sempre. A presença dele é constante, como uma sombra que não se afasta, sempre vigilante. Ele está na sua posição habitual, ajustando os seus próprios movimentos, testando os limites do seu corpo como se o treinamento nunca fosse suficiente.

Ele nunca para. Nem um segundo. E eu também não posso parar.

O mestre Li é a única figura que eu tenho para me espelhar. Ele não é só um treinador, é uma força imparável, uma imagem de disciplina absoluta. Seu olhar, tão cortante quanto uma lâmina, sempre me observa como se eu fosse apenas mais uma peça a ser moldada, esculpida até atingir sua forma mais perfeita. Ele nunca me elogia. Nunca sorri. Nunca dá satisfações. Mas eu sei que ele vê o que eu me tornei, mesmo que suas palavras raramente saiam.

Não me importo. Eu não preciso de elogios. Eu só preciso de força.

E a força é o que ele me deu.

Quando cheguei aqui, eu era apenas um garoto quebrado, perdido em um mar de frustração e raiva. Eu não sabia de nada. Não sabia quem eu era. Mas agora... Agora, eu sou diferente. Sou mais forte. Não sou mais aquele menino que foi derrotado por Dre Parker, o americano que treinou por apenas algumas semanas e, mesmo assim, venceu o campeonato regional de kung fu. Eles ainda falam disso. Todo mundo fala. A piada. O menino que perdeu para o gringo.

Naquela época, eu estava tão quebrado que, em vez de odiar Dre, senti empatia por ele. Eu estava tão imerso no meu próprio fracasso que o troféu dele me parecia uma validação para alguém que, ao menos, estava tentando.

Mas agora... Se Dre tivesse me enfrentado, hoje... Teria sido diferente. Eu seria uma tempestade. Eu seria um monstro. Eu o teria despedaçado no tatame. Não há mais empatia em mim. O garoto que sentiu o peso do fracasso há anos não existe mais. Ele foi enterrado. O que restou foi alguém moldado pela dor, pela raiva, pela necessidade de vencer a qualquer custo.

Eu fui moldado pela pior forma possível, pelo mundo. Pela violência, pelas mentiras, pelas expectativas esmagadoras. Nada mais me toca. Eu sou uma máquina, movida pela vontade de provar que sou o melhor, que sou mais forte do que qualquer um. E isso não é só sobre kung fu. Isso é sobre tudo. É sobre mostrar ao mundo que eu não sou uma piada.

Eu me movo pelo dojô, o som de meus pés pesados ecoando no tatame. Cada golpe, cada movimento, é mais uma forma de eu tentar deixar para trás tudo o que me enfraqueceu. Mas o ódio... O ódio ainda está lá. No fundo do meu peito, como um fogo que nunca se apaga, sempre queimando, sempre exigindo mais. Eu sei que apagar isso não será fácil. Mas também sei que, enquanto eu treinar, enquanto eu continuar a me fortalecer, esse ódio me tornará mais forte. Ele me dará a força que eu preciso para dominar tudo. Para controlar tudo. Para finalmente ter o que é meu por direito.

E no fundo, eu sei que não há ninguém que possa me parar.

A noite estava fria e a sala de treinamento do dojô, iluminada apenas pelas luzes fracas que sempre pareciam ser um reflexo da minha própria mente, dura, sem brilho, e implacável. Eu não tinha tempo a perder, e mestre Li sabia disso. Ele sempre me empurrava para o limite, não permitia que eu vacilasse. Ele não me tratava como um aluno comum, e eu não esperava menos. Cada movimento, cada golpe que ele me ensinava, parecia mais uma peça de um quebra-cabeça complicado. Eu não estava apenas treinando kung fu, eu estava treinando minha vida, meu controle, minha obsessão.

E com o torneio se aproximando, eu sabia que não poderia dar brechas. Não agora, não depois de anos de conquistas consecutivas. Dre tinha desistido de competir, talvez por não conseguir mais equilibrar os estudos com o kung fu, mas eu... Eu não tinha esse luxo. O kung fu não era só uma parte da minha vida, ele era minha vida. Cada músculo que se tensionava, cada respiração profunda que eu tomava, era mais um passo para me tornar o que eu precisava ser. O campeão.

O som do impacto dos meus punhos contra o ar ecoava pela sala, e meus olhos estavam fixos, focados, ignorando tudo ao redor. Nada mais importava além de vencer, de ser o melhor. Eu não estava ali para brincar de luta, eu estava ali para mostrar que sou a força a ser reconhecida. O meu corpo se movia no ritmo do treino, já tão acostumado à dor e à disciplina que nem sequer sentia mais o cansaço. Eu sabia que tinha que continuar, que não poderia descansar. Não até conseguir o que queria.

Após uma série de golpes, tomei uma breve pausa, minha respiração pesada e ofegante. Peguei minha garrafinha de água e, ao beber, observei uma mensagem de Liang, meu amigo mais próximo, e meu coração deu um salto de raiva. Ele me dizia que Huazei estava seguindo Elara até sua casa. A raiva cresceu em meu peito, sua presença sempre me irritou, mas o fato de saber que ele estava perseguindo ela... Aquilo mexia com algo muito mais profundo dentro de mim. O ódio não era só uma questão de rivalidade ou desconfiança. Huazei era perigoso. Ele tinha laços com a máfia do bairro, um histórico de furtos em conveniências, e um prazer doentio em se aproximar das garotas.

Eu estava acostumado a lidar com essas situações. Já sabia o suficiente sobre Huazei para saber o que ele era capaz de fazer. E o pior? Eu não queria que Elara fosse mais uma das vítimas dele. Ela... Ela era difícil de entender, ela me irritava de uma maneira que eu não conseguia explicar. Eu nunca soubera o que ela queria de verdade, qual era o seu objetivo. Mas o que eu sabia, o que me consumia, é que, seja lá o que fosse, ninguém poderia tocar nela.

Eu apertei o celular com força, as pontas dos meus dedos ficando brancas pela tensão. O sangue ferveu em minhas veias. Fui tomado por uma sensação de urgência, uma vontade irracional de correr até ela, de fazer algo antes que fosse tarde demais. Eu me levantei rapidamente, deixando a garrafinha de lado, e me curvei para mestre Li, não sem antes soltar uma respiração pesada, tentando controlar a raiva.

— Sinto muito, mestre. Uma emergência no meu prédio. Preciso ir o quanto antes.

Ele me olhou com aquele olhar implacável, e a única coisa que ele disse foi:

— Não se atrase ou haverão penalidades.

Eu assenti rapidamente, sem nem me preocupar em explicar mais. Peguei minha mochila e corri para fora, sem dar atenção ao tempo ou à chuva que me atingia com força. Eu sabia onde Elara morava, sabia exatamente onde ela estava, e o prédio onde ela vivia era o mesmo em que eu morava. Ela não fazia ideia de que estava vivendo no mesmo lugar que eu, e eu tinha feito questão de mantê-la distante de qualquer conhecimento sobre isso.

Eu não queria que ela soubesse. Não queria que ela me visse como um tipo de vigilante, mas a obsessão por ela me corroía de um jeito que eu não conseguia controlar. Eu me afundei em dívidas para viver naquele prédio. Era um gasto mais alto do que eu deveria, mas eu precisava estar perto. Eu precisava saber mais sobre ela. Eu precisava entender. Por que, então? Por que essa necessidade de descobrir mais, mesmo quando ela nunca me deixou entrar em seu mundo? Eu sabia que não poderia me aproximar. Admitir derrota era algo que eu nunca faria.

Mas Huazei... Huazei estava prestes a cruzar uma linha. Ele não entendia. Ninguém entendia. Não podia, simplesmente, chegar perto dela. Não de jeito nenhum. Não importava o quanto eu a odiasse ou o quanto ela me irritasse. Eu não permitiria.

A chuva batia forte enquanto eu corria para o prédio, meus pensamentos turvos e intensos. Eu tinha uma única missão, impedir Huazei de chegar perto de Elara. Ela não sabia de nada, mas eu sabia o suficiente para que essa obsessão se transformasse em algo mais sombrio.

O caminho até o prédio parecia mais longo do que o normal. Cada passo que eu dava, as gotas de chuva que me batiam na pele pareciam aumentar a pressão no meu peito. Meu coração estava acelerado, o som da água se misturando com o ritmo da minha respiração. Eu tinha que chegar lá. Eu precisava garantir que Huazei não estava mais perto dela. Mas agora, tudo estava fora do controle.

Cheguei no prédio e subi rapidamente pelas escadas, os degraus rangendo sob o meu peso, a ansiedade me consumindo a cada segundo. O que eu faria se Huazei estivesse lá? O que faria se ele já tivesse entrado? Meu corpo estava em um estado constante de alerta, e o ódio que eu sentia por aquele maldito garoto só aumentava com o pensamento de que ele poderia estar tocando nela, fazendo algo... Algo que eu não poderia permitir.

Cheguei na porta do apartamento de Elara e, por um segundo, pensei em simplesmente arrombar a porta. Mas não, ela não merecia isso. Eu sabia que ela morava com a tia, que provavelmente não teria condições de pagar os consertos. Eu não podia fazer isso, então bati com força, sentindo uma frustração crescente. Bati novamente, mais forte, o som ecoando pelo corredor vazio. E o silêncio do lado de dentro me consumia. Não havia ninguém, ou pelo menos eu achei que não havia. Mas por que não? Onde ela estava?

A porta se abriu de repente, e eu recuei um passo, desconcertado. O que eu estava esperando? Era Huazei? Não. Não era ele. Era Liu. O maldito garoto idiota do bairro. Eu o conhecia bem, mas não por querer. Liu era aquele cara que vendia mariscos na loja da esquina. Ele tinha uma pequena loja de frutos do mar frescos, e eu passava lá toda semana para comprar o que eu sabia que ela comprava, espetinhos de lula. Elara sempre ia lá, às 8h10 da manhã, e comprava os mesmos dois espetinhos. Dois espetinhos? Quem compra dois espetinhos? Eu sabia que havia algo estranho nisso. Ela não comprava por necessidade. Ela estava ali por algo mais. Ela estava ali para ver alguém. Para ver ele. Liu.

Ver aquele idiota plantado ali, na porta da casa dela, fez o sangue ferver nas minhas veias. A silhueta dele, ainda que um pouco diferente, parecia com a de Huazei. O tipo de cara que eu odiava, sem dúvida. Então, era isso. Era isso que ela estava fazendo enquanto eu estava aqui, correndo pela chuva, imaginando que ela estava em perigo. Ela estava com Liu? Era isso? Um amigo? Um namorado? Algo mais?

Liu sorriu de um jeito amigável, como se fosse normal ele estar ali. E aquilo me fez sentir um ódio tão profundo que eu quase perdi o controle.

— Ah, o garoto dos espetinhos de lula... — Ele disse, como se fosse a coisa mais normal do mundo.

Ele continuou, perguntando o que eu estava fazendo ali, mas antes que eu pudesse responder, ouvi a voz de Elara ao fundo.

— Liu, quem tá aí?

Eu olhei para Liu, com a raiva transbordando nos meus olhos, e fiz um sinal para ele se calar, baixinho, mas firme.

— Não diga que eu estive aqui ou eu corto sua língua fora."

Ele parecia assustado, mais do que eu esperava. Mas ele assentiu, e eu não perdi tempo. Dei meia-volta e saí pela porta, respirando fundo, tentando processar tudo o que estava acontecendo.

Saí correndo pela chuva, sentindo o peso do mundo nas minhas costas. A chuva parecia uma cortina de frustração. A sensação de estar perdendo o controle, de não saber o que ela estava fazendo, de não entender o que significava aquela relação com Liu, me fazia querer explodir. Eu nunca soube de nada sobre ela que fosse real. Cada passo que ela dava, cada movimento, parecia ser uma luta para esconder algo, e isso me consumia. Mas agora... Ela estava com ele. Liu. O que era isso? Um amigo? Ou algo mais? Eu não sabia. Não conseguia saber. E isso me deixava à beira de enlouquecer. Ela nunca me deu nada para entender, nunca deixou que eu entrasse nesse mundo dela, e agora... Eu estava à mercê de Liu? Um garoto tão insignificante como ele estava dentro do espaço dela, enquanto eu... Enquanto eu estava aqui, sendo forçado a ficar à margem, vendo ela se afastar sem que eu tivesse um maldito direito sobre nada?

A raiva não parava de crescer. Ela estava ali, e eu não podia fazer nada. Ela estava com outro cara, e eu não sabia nada sobre isso. Não sabia o que isso significava, o que ela queria, nem o que Liu representava. Tudo que eu sabia é que estava perdendo o controle, e o pensamento de que ela estava com ele me dilacerava por dentro.

⋆౨˚ ˖

Eu estava encostado na parede, com a mochila pendurada em um dos ombros, o olhar fixo no corredor vazio, aguardando o momento que sabia que viria. O som da porta se abrindo, o murmúrio abafado das conversas que surgiam a cada novo aluno que passava, eram apenas o pano de fundo para o que eu realmente estava esperando. Elara. Eu precisava dela. Não me importava com o que ela pensava de mim, com o medo ou ódio que ela pudesse sentir. O que importava era que eu precisava garantir algo, algo que me consumia, e quando ela finalmente apareceu, meu coração pulou no peito.

Ela estava tão distraída, tão alheia ao que estava acontecendo ao seu redor, que não teve tempo de se preparar para o que eu faria. Não havia mais tempo para palavras ou jogos. Com firmeza, agarrei seu antebraço, impedindo-a de passar pela porta da sala. Ela me olhou com aqueles olhos cheios de desprezo, uma expressão que eu conhecia bem, mas que, de alguma forma, me feria de forma diferente quando era ela quem estava me olhando dessa forma. Sua risada foi incrédula, cínica, quase como se eu fosse o maior estorvo de sua vida.

— O que você quer? Vai me bater por estar no mesmo ambiente que você, hm? — Ela disse, o tom tão afiado que poderia cortar qualquer coisa.

Aquela era a Elara. Eu estava começando a perceber que ela não se intimidava fácil, não comigo, nem com ninguém. Mas eu precisava ver algo, precisava saber se ela tinha se machucado, se estava em perigo. Meus olhos desceram lentamente para as mãos dela, reparando nos curativos. Não eram de Liu. Não eram de ninguém além de mim. Porque fui eu quem impediu tarde demais que os outros a empurrassem no beco. Fui eu quem a deixou sozinha com aqueles idiotas. Eu sou o motivo das marcas nas mãos dela. E isso me corroeu por dentro, mais do que qualquer golpe físico.

Sem falar nada, soltei o braço dela, a raiva me consumindo ainda mais, e ela, com um cinismo que eu quase não podia acreditar, levantou o dedo do meio e entrou na sala. Eu fiquei parado por um momento, observando sua atitude, tentando entender o que estava acontecendo, até que uma risada baixa, sem humor, escapou dos meus lábios. Entrei na sala e, como sempre, fiz questão de sentar atrás dela. Eu precisava ficar perto. Eu precisava saber. Ela era um enigma, e tudo o que eu queria fazer era decifrar esse maldito quebra-cabeça.

Me inclinei ligeiramente para frente, sem fazer muito barulho, apenas para murmurar algo que ela provavelmente não queria ouvir.

— O que aconteceu ontem depois que você fugiu? — Eu ri, tentando soar sarcástico, tentando desmerecer tudo o que ela estava sentindo, mas, por dentro, eu sentia um veneno correndo nas minhas veias. — Foi chorar?

Eu não esperava uma resposta, mas algo nela mudou. O jeito que ela se virou para trás, com a nuca arrepiada, o olhar fulminante... Era óbvio que ela estava em chamas de raiva. Mas eu queria aquilo. Eu queria vê-la perder o controle. Eu queria ver o que ela faria.

E então, ela me surpreendeu. O tom baixo e a ameaça disfarçada no sarcasmo me acertaram como um soco.

— Fui planejar a sua morte, é... — Ela estalou os dedos, fazendo uma expressão exagerada de confusão, e o sarcasmo no tom dela não poderia ser mais claro. — Qual é seu nome mesmo? Sinceramente, você é tão irrelevante quanto os outros nessa mediocridade que você chama de dojô.

Ela se virou, sem mais nem menos. Não se levantou para me enfrentar, não avançou em mim. Ela simplesmente virou as costas e deixou as palavras pairarem no ar. O peso delas. Aquilo me atingiu de uma forma que eu não consegui prever. Meu sorriso, aquele sorriso que eu havia forçado a sair, rapidamente se desfez. Ela... Ela não sabia meu nome? Ou estava só jogando com a minha cabeça? Como ela ousava? Eu era alguém notável no dojô. Eu era alguém notável na escola. Como ela poderia não saber quem eu sou? Como ela podia ser tão indiferente a isso, tão indiferente a mim?

O sangue ferveu em minhas veias, meu peito se apertou. O ódio, a frustração, a raiva... Tudo explodiu dentro de mim. Eu precisava entender. Eu precisava saber tudo sobre ela, mas ela... Ela me ignorava. Ela me tratava como se eu fosse nada. Eu, que passei tanto tempo me observando, me moldando, me tornando quem eu sou... e ela me jogava para o lado, como se eu fosse só mais uma figura insignificante. Como se eu não fosse importante. Não. Eu não podia permitir isso.

Ela estava brincando com fogo, e eu não estava mais disposto a deixar isso acontecer. E assim que as aulas tiveram uma pausa, todos seguiram para o refeitório.

O barulho no refeitório estava cada vez mais alto, com as conversas das pessoas se misturando ao som dos pratos sendo colocados nas bandejas e as risadas abafadas. O intervalo estava em pleno andamento, e a fila para pegar a comida parecia interminável. Eu, por outro lado, sabia exatamente o que queria. Não perdi tempo e me enfileirei rapidamente ao lado de Elara, que, por algum motivo, parecia sempre tão alheia a tudo ao seu redor. O seu olhar para mim foi rápido, quase imperceptível, mas eu sabia o que significava. Revirou os olhos, como se eu fosse apenas mais um em um mar de coisas que ela não queria ver.

Ela, como sempre, pegava o frango frito. Nada demais, um prato simples, mas parece que era o único consolo que ela realmente se permitia. Não era uma comida tão típica daqui, mas de alguma forma a aproximava dos Estados Unidos, talvez como uma forma de se sentir em casa. E eu, que já a observava demais, sabia disso. Sabia que ela se agarrava a esse pedaço de familiaridade. Não era saudável, e mesmo que ela não fosse o tipo de pessoa que se importava com isso, eu me importava. Então, decidi tomar a frente.

Peguei um pouco de arroz frito, jogando na bandeja dela antes que ela pudesse sequer reagir. Ela olhou para mim com uma expressão que não conseguia disfarçar. Eu poderia dizer que era um misto de incredulidade e irritação. Ela nem olhou para mim enquanto perguntou, com um tom de quem não estava com paciência para mim.

— O que pensa que tá fazendo?

Eu dei de ombros, ignorando a raiva que emanava dela. Peguei uma colher de arroz frito para mim também, sem me importar com o que ela pensava. Respondi de forma simples, direta, quase como se estivesse oferecendo uma sugestão para sua própria saúde.

— Não é saudável que coma só frango frito, precisa de acompanhamentos se não quiser ficar com o estômago embrulhado pelo resto do dia. Fora que pode causar hipertensão e diabetes a longo prazo. Você come essa merda todo dia.

Se eu estava tentando impressioná-la, não sabia. Talvez estivesse apenas tentando mostrar que eu percebia algo mais sobre ela do que ela imaginava. Ela me olhou com os olhos arregalados, a surpresa estampada em seu rosto. Como se perguntasse, sem dizer nada, como eu sabia de tudo aquilo sobre ela. Como eu sabia dos seus hábitos, das suas escolhas? Como eu sabia que ela, apesar de aparentar ser imune à opinião alheia, tinha esses pequenos detalhes que a revelavam?

Respirei fundo, sentindo uma leve satisfação por finalmente tocar em algo que ela não esperava.

— Anda logo, está travando a fila. — Falei, tentando esconder a satisfação em minha voz. Queria que ela fosse embora, mas também queria que ela se sentisse, de alguma forma, tocada pelo que eu disse. Era um truque, não um golpe direto, mas eu sabia que faria efeito.

Ela suspirou, sem mais palavras, e voltou a andar com a bandeja, resmungando baixinho:

— Maluco.

E isso... Isso fez um pequeno sorriso surgir nos meus lábios. Maluco, talvez, mas era o tipo de maluco que ela não conseguia ignorar. Eu estava começando a entrar na cabeça dela, mesmo que ela não quisesse admitir.

Eu sabia que ela me odiava, e eu sabia que, de certa forma, eu a irritava, mas eu também sabia que estava começando a chamar sua atenção. Não era algo que eu fosse fazer de maneira escancarada, porque mostrar vulnerabilidade agora seria um erro. Eu não podia ser fraco. Nunca. Mas essa interação... Foi o primeiro passo. E, quer ela goste ou não, ela me notaria mais a partir de agora. Talvez fosse um começo discreto, mas ela não poderia mais fingir que eu era irrelevante.

Isso só me deixou mais decidido. Ela poderia me odiar, ela poderia se irritar e tentar me afastar, mas não importava. Eu estava me aproximando de uma forma que nem ela perceberia até ser tarde demais.

Obra autoral ©

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top