01. Issues, issues and more issues
𝗣𝗲𝗾𝘂𝗶𝗺 - 𝟮𝟬𝟭𝟲, 𝘴𝘦𝘪𝘴 𝘢𝘯𝘰𝘴 𝘢𝘱𝘰́𝘴 𝘰 𝘵𝘰𝘳𝘯𝘦𝘪𝘰 𝘤𝘰𝘯𝘵𝘳𝘢 𝘋𝘳𝘦 𝘗𝘢𝘳𝘬𝘦𝘳.
⋆౨ৎ˚ ⟡˖
O ônibus balança nos trilhos desgastados da rua, e cada solavanco parece fazer minha cabeça latejar um pouco mais. Estou exausta. Meus pés doem de tanto andar, minhas mãos ainda cheiram vagamente a produtos de limpeza, e minha mente não para de girar em círculos. Pequim não é exatamente o tipo de cidade que te deixa respirar. Tudo aqui é tão rápido, tão barulhento, tão cheio de vida... E tão vazio ao mesmo tempo.
Desde que me mudei para cá, depois do que aconteceu com os meus pais, minha vida tem sido uma sequência de ajustes forçados. Christine, minha tia, abriu as portas da sua casa, ou melhor, do apartamento frio e minimalista que ela chama de lar, mas não abriu muito mais do que isso. Ela não é má, longe disso, mas também não é maternal. Ela me dá o básico, um teto, comida suficiente e uma conta bancária modesta que cobre o essencial. Roupas novas? Um par de fones de ouvido decente? Faculdade? Isso depende de mim. E desde que eu cheguei, tenho feito de tudo para conquistar as coisas que quero.
Eu comecei a trabalhar assim que me mudei. Primeiro foram bicos pequenos, traduzir papéis em inglês, cuidar de crianças enquanto os pais estavam fora. Agora, com dezoito anos, minha rotina é ainda mais cheia. De manhã, sou faxineira em um ginásio de competições de kung fu. As arquibancadas precisam estar limpas, os tatames impecáveis, e o cheiro de suor e esforço precisa ser eliminado antes do próximo grupo de atletas chegar. À noite, dou aulas de inglês para crianças cujos pais querem que elas cresçam falando o idioma universal do mundo. Entre tudo isso, ainda tento manter as notas no último ano da escola.
No momento, estou sentada no fundo do ônibus, os fones de ouvido gastos, aquele par barato que comprei com as gorjetas de um trabalho antigo, tocando "Never Say Never", do Justin Bieber. É quase irônico, porque, honestamente, dizer "nunca" é tudo o que passa pela minha cabeça nesses dias. Nunca vou me acostumar a isso. Nunca vou ser boa o suficiente para Christine. Nunca vou conseguir sair daqui. Mas, de algum jeito, a música me dá forças. Talvez seja a batida animada, ou a ideia de que, pelo menos por alguns minutos, alguém acredita que eu posso fazer qualquer coisa.
Olho para fora da janela e vejo as ruas de Pequim passarem como flashes de neon e concreto. As lanternas vermelhas balançam com a brisa, enquanto os vendedores nos mercados noturnos gritam suas ofertas para quem quiser ouvir. A cidade é bonita de um jeito quase cruel. Ela parece prometer oportunidades, mas só entrega para quem sabe como agarrá-las, e eu ainda estou aprendendo.
Por um lado, eu quero odiar Christine. Quero odiar o jeito que ela me trata como uma responsabilidade incômoda, algo que foi imposto a ela e que ela apenas tolera. Mas, por outro lado, não consigo. Ela me dá o que pode e, honestamente, talvez eu faria o mesmo no lugar dela. A vida dela não tinha espaço para mim antes de tudo isso, e agora ela teve que me encaixar à força. O problema é que me sinto como um móvel fora de lugar, sempre atrapalhando, sempre no caminho.
O ônibus freia bruscamente, me jogando um pouco para frente no banco. Puxo o capuz do casaco mais para cima, tentando me esconder do vento que entra toda vez que as portas se abrem. Pequim pode ser cheia de luzes, mas dentro desse ônibus, tudo parece cinza, como se cada pessoa estivesse carregando o peso do mundo nos ombros. Às vezes, acho que não sou tão diferente delas.
Chego no ponto e desço, a noite envolvendo a cidade com uma mistura de frio e fumaça. Caminho pelas ruas iluminadas pelas lanternas e letreiros em mandarim, passando por restaurantes que exalam cheiro de comida que não posso comprar. Meu prédio aparece à frente, uma torre de concreto sem personalidade, onde cada janela parece contar a mesma história, pessoas tentando sobreviver. Subo os degraus com pressa, o cansaço me pedindo para chegar logo, para terminar mais um dia.
Quando finalmente entro no pequeno apartamento, Christine ainda não está em casa. Como sempre, está presa no trabalho. Solto minha mochila no chão, tiro os fones e, por um momento, deixo o silêncio tomar conta. Então suspiro, pego os livros da escola e começo a estudar na mesa da cozinha, porque, por mais cansada que eu esteja, sei que não tenho escolha.
Essa é minha vida agora. Trabalho, escola, mais trabalho. O peso do passado, a incerteza do futuro. Às vezes, penso em desistir, mas, de algum jeito, sempre coloco um pé na frente do outro. Porque, apesar de tudo, há uma voz lá no fundo, mais forte do que o barulho ao redor, que me diz para continuar.
— Never say never... — Eu sussurro para mim mesma. E recomeço.
Suspirei profundamente, aliviando o peso da mochila dos ombros antes de deixá-la cair no chão com um som abafado. A primeira coisa que penso depois de terminar as lições pendentes é no banho quente que me espera. Começo a me despir no caminho para o banheiro, tirando o casaco e a blusa enquanto o cheiro de limpeza quase inexistente do apartamento me lembra que ainda preciso lavar roupa. Meu corpo inteiro está cansado, os músculos tensos e implorando por um pouco de alívio.
É então que ouço o som seco do meu celular vibrando no bolso da mochila. Paro no meio do movimento, sentindo um incômodo crescente antes mesmo de abrir a mensagem. Eu sei quem é. Quem mais poderia ser? Christine. Ela nunca manda mensagem sem motivo, e o motivo quase nunca é algo agradável.
Pego o celular, hesitando por um segundo antes de deslizar o dedo pela tela.
"Vou voltar tarde. Não tem nada na geladeira. Pegue algo na conveniência pra você. Deixei dinheiro no balcão."
Minha mandíbula se contrai instintivamente, e eu passo a mão no rosto, sentindo a pele quente pelo cansaço. Claro. Mais uma tarefa. Não é que eu não entenda. Ela trabalha duro. Mas, às vezes, parece que ela esquece que eu também estou trabalhando duro para manter minha vida nos trilhos.
Respiro fundo, fechando os olhos por um momento.
— Tudo bem, Elara. — Murmuro para mim mesma. — Só mais uma coisa. Isso já é melhor do que ter que preparar o jantar com sobras da geladeira.
Assim que coloco a blusa e o casaco novamente, pego meu iPod do bolso, junto com meus fones gastos, e os coloco. Só um lado funciona, mas ainda assim é o suficiente para me distrair. Aperto o play, e a música "Never Say Never" começa a tocar novamente. Talvez fosse o destino, ou talvez só a repetição automática que esqueci de desligar.
Coloco a mochila desajeitadamente sobre o ombro, chutando os sapatos para os pés enquanto corro pela sala. Passo pela cozinha, estendo a mão e pego o dinheiro no balcão com um movimento rápido. É pouco, mas vai dar para comprar algo básico. Estou prestes a sair quando noto as nuvens escuras no horizonte pela janela. Droga, parece que vai chover. Melhor ser rápida.
Saio apressada do prédio, descendo os degraus de dois em dois. A brisa da noite já está mais fria, e eu puxo o capuz do casaco enquanto começo a caminhar. A conveniência mais próxima fica a uns cinco quarteirões, então acelero o passo, já prevendo a tempestade que está por vir.
No caminho, cumprimento os vizinhos que encontro. Conheço quase todos desde que me mudei para cá. A maioria deles é mais velha, gente simples e amigável que parecia me adotar como parte da comunidade logo que cheguei, mesmo quando eu não sabia dizer uma única palavra em mandarim. Agora, consigo trocar algumas frases educadas, o que sempre faz com que eles sorriam.
— Boa noite, Elara. — Diz a senhora Qiu, do segundo andar, enquanto estende a roupa no varal na calçada.
— Boa noite! — Respondo, acenando rapidamente enquanto passo por ela.
Apesar do cansaço, é reconfortante saber que ainda tenho essas pequenas conexões. São momentos como esses que me lembram que, mesmo longe de tudo que conhecia, há um pedaço de mim que conseguiu criar raízes aqui.
O vento começa a aumentar, e os primeiros pingos de chuva caem quando finalmente avisto a luz da conveniência ao virar a esquina. Aperto o passo, ajustando o capuz na cabeça, enquanto a música nos meus fones toca cada vez mais alto, como se estivesse me empurrando para frente.
Empurro a porta de vidro da conveniência, e o pequeno sino acima dela tilinta suavemente, anunciando minha entrada. O lugar está quase vazio, como sempre a essa hora da noite. Uma música ambiente quase imperceptível toca ao fundo, mas mal dá para ouvi-la por cima do zumbido dos refrigeradores e do barulho do vento lá fora.
Meus olhos percorrem o espaço, e, antes de qualquer coisa, me dirijo à bancada perto da janela. É meu lugar favorito aqui. A vista da rua iluminada pelas lanternas é um lembrete de que, mesmo tarde da noite, Pequim nunca dorme completamente. Largo minha mochila ali, me permitindo alguns segundos para descansar os ombros do peso, e respiro fundo, sentindo o cheiro familiar da loja, uma mistura de plástico, especiarias e algo ligeiramente químico.
Deixo minhas coisas e me levanto para pegar algo para comer. Sei exatamente o que quero, porque é sempre o mesmo, um ramen instantâneo. Caminho até a prateleira de sopas e macarrões, meus passos ecoando suavemente pelo chão de azulejos brancos. Passo os olhos pelas opções até encontrar o de sabor picante que gosto. Pego o pacote e vou até o canto onde os micro-ondas estão alinhados.
Rasgo o pacote com cuidado, despejo o macarrão seco e os sachês de tempero no copo de plástico descartável que a loja fornece, e encho com água quente do dispensador ao lado do micro-ondas. Depois de tampar o copo improvisado, coloco-o no micro-ondas e ajusto o timer. Enquanto o ramen esquenta, meus olhos se voltam involuntariamente para o caixa.
Lá está a senhora Cheng, de cabeça baixa, cochilando sobre o balcão. Uma risadinha involuntária escapa dos meus lábios. Ela sempre faz isso, especialmente a essa hora. Não posso culpá-la, a mulher já passou bem dos sessenta e trabalha aqui até tarde da noite.
Por um momento, fico observando-a. Suas mãos enrugadas estão cruzadas na frente do rosto, e sua respiração é lenta e regular. É estranho vê-la assim, tão vulnerável, porque durante o dia ela é a definição de eficiência. Sempre me pergunta como estou, se estou comendo direito, e gosta de dizer que meu mandarim está melhorando, mesmo quando eu erro algo óbvio.
Mas, olhando para ela agora, sinto uma pontada de pena. Uma mulher da idade dela não deveria estar aqui, trabalhando até tarde, especialmente em um bairro como este. Por mais que eu goste da área, sei que não é exatamente segura. Pequim tem suas sombras, e este bairro, em particular, parece atraí-las como um ímã.
O som do micro-ondas apitando me tira dos pensamentos. Pego o copo de ramen com cuidado, o calor atravessando os dedos, e volto para a bancada. Me sento de novo, colocando o ramen na frente e os fones de volta nos ouvidos. Enquanto mexo o macarrão com os hashis descartáveis, lanço um último olhar para a senhora Cheng. Ela ainda está dormindo.
Eu me pergunto, por um breve momento, como seria a vida dela fora deste lugar. Será que ela tem família? Filhos? Netos? Ou será que, como Christine, ela simplesmente vive para o trabalho, sem espaço para mais nada? A pergunta fica pairando na minha mente enquanto dou a primeira mordida no ramen, o sabor picante me aquecendo por dentro.
Ajeito-me na bancada, o copo de ramen na frente, e como em silêncio, tentando deixar a mente vagar. A música nos fones é meu único conforto, uma bolha que me separa do resto do mundo. Enquanto mexo o macarrão com os hashis descartáveis, tento afastar os pensamentos ruins que sempre insistem em me alcançar. A cada mordida, sinto o calor da comida me aquecendo por dentro, mas não o suficiente para aliviar a tensão que parece constante no meu corpo.
Quando termino, deixo o dinheiro no balcão ao lado da senhora Cheng. Ela ainda está dormindo, e eu não tenho coragem de acordá-la. Apenas espero que ela perceba quando abrir os olhos. Saio da loja e vejo que a chuva apertou. Os pingos são grossos e rápidos, escorrendo pelas ruas como pequenos rios. Respiro fundo, ajusto o capuz, aperto a alça da mochila e corro para fora, planejando pegar o caminho mais curto para casa.
Opto pelas ruelas. São escuras, estreitas e cobertas em alguns trechos, protegendo da chuva. Não é a rota mais convidativa, mas já estou acostumada. Como eu bem sei há um tempo, Pequim tem suas sombras, e eu aprendi a conviver com elas. O som da chuva misturado aos meus passos rápidos é quase reconfortante, mas esse sentimento evapora no instante em que os ouço, risadas altas vindo de um canto mais à frente.
Meus passos param automaticamente, e o som do meu coração acelerado parece preencher o silêncio. Eles estão ali, em um grupo. Posso vê-los mesmo à distância, as roupas familiares e as posturas arrogantes. Alunos do Fighting Dragons. Meu estômago se revira. Eu os conheço, não pelos nomes, mas pela reputação. Eles são impiedosos, brutais nas competições de kung fu, e arrogantes o suficiente para acharem que mandam em tudo, inclusive na escola.
Segurando a alça da mochila com mais força, dou um passo para trás, planejando voltar pelo caminho de onde vim. Mas então o vejo, outro garoto, encostado casualmente na parede do lado oposto da ruela, como se estivesse me
esperando. Meu coração dispara, e um frio percorre minha espinha. Estou cercada.
Respiro fundo, tentando manter a calma. Um dos garotos ri e diz algo em mandarim, alto o suficiente para que eu ouça.
— Olha só, uma estrangeira perdida.
Outro responde, mais firme.
— Nós não gostamos de estrangeiros.
Sinto um aperto no peito, minha respiração fica irregular. Meus olhos procuram uma saída, mas sei que estou encurralada. Eles começam a se aproximar, e antes que eu consiga recuar, um deles me empurra com força, me jogando no chão. Minha mochila cai em uma poça de água, o impacto arranha minhas mãos, e sinto lágrimas ameaçando brotar. Mas não. Não vou dar esse gosto a eles.
Levanto o olhar, mantendo a expressão firme, mesmo que minha voz saia trêmula.
— O que vocês querem?
Um deles, brincando com um isqueiro, se aproxima. A chama acesa reflete em seus olhos enquanto ele diz, com um sorriso maldoso.
— Só quero ver o rostinho bonito da americana. — Ele aproxima o isqueiro do meu rosto, e eu recuo instintivamente, tremendo um pouco. Mas me esforço para não desmoronar.
— Eu só quero ir para casa. — Digo, tentando soar firme, embora tenha falhado miseravelmente. — Me deixem em paz.
Outro garoto ri, aproximando-se mais.
— Você devia aprender que imigrantes como você não são bem-vindos aqui. E, falando nisso, seu mandarim é uma vergonha.
Ele dá mais um passo, e eu sinto o medo crescendo. Ele levanta a mão como se fosse me pegar, mas então, de repente, uma mão segura firmemente o braço dele. O silêncio é cortante.
— Nem pense em continuar com isso. — Uma voz baixa e firme diz.
Levanto o olhar, confusa. Não consigo ver o rosto de quem falou. A escuridão e a franja que quase cobre seus olhos tornam difícil identificar quem é. Ele estava encostado na parede antes, assistindo como um espectador. Agora, parece que decidiu intervir.
Um carro passa pela rua próxima, e a luz dos faróis ilumina brevemente o beco. É então que o reconheço. Meu estômago revira. Ele é o líder desse grupo de sociopatas. Eu já o vi antes, nas competições e também na escola. Não sei o nome dele, mas sei que ele é perigoso.
Uma risada amarga escapa dos meus lábios. É indignante que ele finja se importar. Meu primeiro instinto seria xingá-lo, gritar na cara dele. Mas o medo falo mais alto. Peguei minha mochila do chão, ignorando a dor nas mãos machucadas, e simplesmente corri.
Passo rápido pelo garoto que estava na ponta da ruela, esbarrando em seu ombro, mas não ousei olhar para trás. Corro direto para a chuva, que agora parecia um refúgio seguro. A água escorre pelo meu rosto, misturando-se às lágrimas que eu finalmente deixo cair. Ainda assim, a chuva ainda é preferível ao que acabei de enfrentar.
Não demoro muito até chegar em casa, eu entrei, molhada até os ossos, os sapatos ensopados deixando marcas pelo chão da entrada. Minha respiração está pesada, descompassada, e o peito dói. Não sei se é pelo esforço de correr ou pela raiva e humilhação que me consomem. Jogo a mochila encharcada no chão com um baque surdo e fecho a porta com força, encostando nela enquanto meu corpo começa a tremer.
As lágrimas, que eu lutei tanto para segurar, finalmente encontram um caminho. Deslizam pelo meu rosto, quentes e incontroláveis, queimando minha pele como fogo. Tento limpá-las com as costas das mãos, mas elas continuam caindo, mais violentas a cada segundo. Eu não sei se é pelo medo ou pela raiva, talvez os dois, misturados em um nó sufocante que aperta minha garganta.
Respiro fundo e enfim, caminho até o meu quarto, quase tropeçando nos meus próprios pés. Tranco a porta atrás de mim e vou direto para o banheiro. O som da chuva lá fora ainda ecoa, mas aqui dentro é só o som da minha respiração ofegante e do meu coração martelando contra as costelas.
Ligo o chuveiro, deixando a água quente cair, e entro sem nem me preocupar em medir a temperatura. Quando o primeiro jato quente atinge minhas mãos, sinto uma ardência aguda nas escoriações. Arde mais do que eu esperava, mas não paro. Pego o sabão e começo a esfregar os machucados, os olhos fixos nos pequenos arranhões e na pele avermelhada. Cada movimento é um lembrete doloroso do que aconteceu.
Minha mente se prende à imagem deles. Aos risos zombeteiros. Às palavras carregadas de ódio e desprezo. À maneira como eles me empurraram para o chão como se eu não fosse nada. E depois, ao rosto dele. O líder. Aquele idiota que fingiu, por um segundo, que se importava.
Rio, mas é um riso amargo, quase histérico. Ele achava que eu deveria agradecê-lo? Que eu deveria me sentir grata porque ele decidiu, no último segundo, jogar o papel de herói? Que grande piada. A indignação tomou conta de mim, irradiando do meu peito até a ponta dos dedos.
Encosto a testa contra a parede fria do boxe, tentando me acalmar, mas a raiva cresce como uma tempestade. Agora, além de tudo que já tenho que lidar, preciso me preocupar com um grupo de idiotas que decidiram que meu simples existir é um problema. Não basta ser estrangeira, trabalhar horas intermináveis, estudar e tentar sobreviver, agora eu sou um alvo. A droga de um alvo.
E não é como se eu pudesse evitá-los. Eles estão em todos os lugares. Na escola, nas ruas e até no meu trabalho. Sempre me observando, rindo mesmo quando eu não percebia, e agora, provavelmente esperando por uma oportunidade de me derrubar de novo.
Procuro respirar fundo, mas a dor e a humilhação ainda estão lá, ardendo como as feridas nas minhas mãos. Tento pensar no que fazer, em como reagir, mas nada vem à mente. Só a sensação de que, de alguma forma, isso está longe de acabar.
Fecho os olhos, deixando a água quente escorrer pelo meu corpo, misturando-se às lágrimas que ainda insistem em cair. E enquanto estou ali, no banho, só consigo pensar em uma coisa, eu preciso ser mais forte. Mais esperta. Porque se eles acham que podem me quebrar, vão perceber, tarde demais, que eu não sou tão fácil de derrubar.
Saio do banho com a toalha enrolada no corpo e outra nos cabelos, tentando tirar o excesso de água que insiste em escorrer. O vapor quente do banheiro é reconfortante, mas ao abrir a porta, o ar frio do quarto me arrepia na hora. Dou um suspiro pesado, como se cada movimento fosse mais um peso que preciso carregar. Caminho até o armário, onde meus pijamas estão guardados de qualquer jeito, e pego o primeiro que vejo,
uma calça de algodão cinza e uma camiseta larga que já perdeu a cor original. Não é bonito, mas é confortável, e hoje isso é tudo o que importa.
Enquanto me troco, ouço a porta da frente se abrir. Os passos rápidos e o som das chaves sendo jogadas na mesa denunciam que minha tia chegou. Christine é sempre assim, apressada, direta, como se estivesse correndo contra um relógio invisível.
— Elara? — A voz dela chama, um tom neutro, sem muita preocupação.
— Estou no quarto. — Respondo, seca.
Ela aparece na porta, ainda de casaco, a bolsa no ombro e o rosto cansado. Seus olhos me analisam rapidamente, mas sem profundidade. Não é preocupação genuína, só aquele tipo de interação básica que as pessoas acham que precisam ter.
— Como foi o dia? — Ela pergunta, largando a bolsa na cadeira ao lado da mesa.
— Normal. — Murmuro, evitando contato visual.
Christine apenas dá de ombros, como se não esperasse uma resposta muito elaborada. Ela se senta, tirando os sapatos, e eu percebo que o cheiro do jantar dela, provavelmente algo apressado e comprado no caminho, começa a preencher o ambiente.
Enquanto isso, sinto minha garganta arranhar levemente, um incômodo que já me avisa do que está por vir. Resisto à vontade de suspirar alto, mas reviro os olhos. Claro que eu pegaria um resfriado. O banho de chuva foi a cereja no bolo desse dia miserável.
— Vou dormir. — Digo, cortando qualquer chance de mais conversa.
Christine apenas acena com a cabeça, já distraída com algo no celular. Fecho a porta do meu quarto, apagando a luz e me jogando na cama como se o colchão pudesse me engolir e me esconder do mundo. O cansaço do dia inteiro finalmente pesa, mas não o suficiente para me desligar completamente.
Deito de lado, encarando a janela que refletia a luz da rua. A chuva continuava intensamente lá fora, mas agora parecia distante, como um sussurro constante. Só de pensar no dia seguinte, senti o estômago embrulhar. Vou topar com aqueles idiotas de novo. Não tenho escolha.
Na escola, eles provavelmente vão fazer o que sempre fazem, rir, provocar, me olhar de cima a baixo como se eu fosse algo a ser descartado. Meu trabalho no ginásio também não vai me poupar. Eles vão estar lá, treinando e se exibindo, e eu vou estar de pano na mão, limpando o chão e tentando ignorar a sensação de que estou constantemente sendo observada.
Odeio isso. Odeio a situação. Odeio que meu único plano de escape seja sobreviver mais um dia.
Respiro fundo, tentando acalmar os pensamentos, mas a sensação de impotência ainda está lá, agarrada a mim como um peso insuportável.
Se ao menos eu pudesse desaparecer.
Obra autoral ©
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