𝗖𝗮𝗽𝗶́𝘁𝘂𝗹𝗼 𝟳
O sol já despedia-se deles, deixando seu rastro luminoso com meras fitas alaranjadas em meio ao azul do entardecer, trazendo consigo o vento gélido, mas ainda sim acompanhado pelo ar quente do dia ensolarado. Ambos caminhavam tranquilamente na rua calma e vazia, apenas os dois pareciam estar fora de casa a essa hora. Aya comentou que todos eram muito reservados e mal paravam em casa, havia poucas crianças naquele bairro, dissera ela, e por isso era tão quieto e monótono.
O silêncio entre os dois era algo tão natural mas ainda assim nada desconfortável, quase como um acordo não verbalizado. Aya talvez não estivesse acostumada a ter calmaria em torno de si, mas, de fato, era disso que precisava, nada de turbulências no momento. Por mais que a relação entre os dois tivesse começado de uma maneira nada agradável, os dois aprenderam a cooperar e conviver juntos em uma harmonia diferente das quais estão acostumados. Já Megumi agradecia por Aya dar a ele o privilégio de ficar calado.
As conversas entre os dois funcionavam de uma maneira mais unilateral do que o considerado normal, mas nenhum dos dois pareciam se incomodar com esse fato. Aya adorava falar e Megumi sempre preferiu ouvir, poderia passar horas escutando-a falar sobre como o livro de romance favorito dela era uma obra de arte incompreendida e não apenas um pornô para adolescentes solitárias, e poderia passar outras mil horas vendo-a xingá-lo por discordar dela em meras duas palavras. E Aya gostava de saber que realmente havia alguém que prestava atenção nas besteiras que ela falava.
Os dois pararam em um ponto de ônibus a algumas quadras de distância da casa de Aya, ela se ofereceu para pagar um táxi, mas o garoto insistiu em ir de ônibus, com a desculpa de que não iria direto para casa porque tinha um outro lugar para ir e não queria ter de pegar dois táxis. Não souberam quando, mas com a demora, juntamente a um tédio repentino, começaram a fazer um jogo de perguntas e respostas.
— Você preferiria viver uma vida feliz com seu amor verdadeiro ou passar uma noite com sua celebridade favorita?
— Prefiro não responder.
— Pare de ser chato, é só um jogo! - ela bradou irritada, Megumi não respondia quase nenhuma pergunta e quando respondia tentava achar lógica em perguntas onde claramente não era necessária.
— Faça perguntas mais interessantes se quer que eu a responda - disse simplista e indiferente, recebendo um bufar entediado da garota.
— Então posso fazer perguntas sobre você? - Aya perguntou curiosa, tinha plena certeza de que não arrumaria nada nessa brincadeira, mas não custava tentar. — Se quiser, pode perguntar para mim também.
— Contanto que eu tenha a escolha de não respondê-las, por mim tudo bem. - Fushiguro sentou-se no banco, já estava cansado de andar e de permanecer em pé.
Aya repassou todas as dúvidas que tinha sobre o garoto e selecionou as que considerou as menos invasivas em sua perspectiva.
- Vamos lá... Bem... - ela entortou os lábios, em um raro sinal de que ela não sabia o que falar - Quem são seus melhores amigos? - Aya só tinha-o visto com seus dois irmão adotivos, mas nunca com outras pessoas, tinha curiosidade em saber se ele possuía ou não outros amigos a quem contar.
- Meus irmãos. Eles são meus únicos amigos na verdade... - ele franziu o cenho, pensando consigo mesmo antes de dizer - Bom, acho que agora não são mais os únicos.
Aya evitou sorrir, o tom fracamente ríspido e tímido do garoto foi talvez a coisa mais fofa que já o viu fazer, o que era incomum já que Megumi tinha mais a ver com uma pedra de gelo do que com um ser humano.
- Você me disse que também tem um irmão, me conta sobre ele - Megumi tentou tirar atenção de si mesmo, sabia que Aya havia achado graça de seu comentário e não estava afim de vê-la provocá-lo.
Ayame murchou um pouco a expressão, como se não fosse a pergunta que esperava que ele fizesse ou simplesmente porque talvez ele tenha ultrapassado os limites. Estava prestes a reformular a pergunta quando Aya por fim respondeu.
- Ele é bem diferente de mim, para ser no mínimo modesta. - tentou sorrir para apaziguar - Junpei é doce e gentil, mas é extremamente tímido e inseguro, tipo num nível preocupante, acaba que isso... - cortou a própria fala, repensando se deveria continuar ou não - Desculpe. Estou tagarelando de novo, vamos para próxima-
- Pode continuar, eu estou te ouvindo.
Ayame abriu levemente a boca, como quem fosse falar algo mas no último momento tivesse desistido de tal ato.
Ela encostou a cabeça na parte de vidro do ponto, fechando os olhos, respirando fundo, tomando coragem para expressar o que estava sentindo - Ele é muito distante, acaba que não nos vemos muito mesmo morando na mesma casa - Megumi nunca a tinha visto tão cabisbaixa, já presenciou Aya com raiva, alegre e talvez enojada, mas nunca nesse nível de desânimo - Somos tão diferentes e eu não sei como ele pensa. Não sei como ajudá-lo, e isso me deixa tão frustrada... Mas aí eu também não faço nada para mudar, sei que ele tem dificuldades em se comunicar mas nunca o incentivo. - um risada rouca baixa e curta saiu da garganta da garota, um som melancólico, arrastado e com um toque de autodepreciação - Acho que ele nem gosta mais de mim e eu só estou forçando a barra.
Silêncio estendeu-se de maneira súbita e gélida, Aya só não estava totalmente inerte em seus pensamentos porque o som de seu coração era tão intenso que retumbava em seus ouvidos. Havia falado demais, odiava essa sua mania de guardar tanto para si e em qualquer brecha desabar. Era tão ingênua e boba por se deixar levar pelo momento. Odiava desabafar, detestava verbalizar o que estava sentindo porque ela não sabia o que era, era confuso, era tão triste, ela era triste e estava transformando uma das poucas coisas legais que vinham acontecendo em sua vida em outro aspecto melancólico dela. Megumi era um amigo, sim, ele era, mas estava mais para alguém de passar a tarde juntos do que um ombro amigo de verdade.
Não queria afastá-lo tão rápido, não depois de finalmente ter conseguido manter uma relação legal e amistosa com o garoto que tanto detestou.
- Acredito que ele esteja nesse mesmo dilema que você - a quebra repentina de silêncio a fez encará-lo - Pensa comigo, vocês são distantes porque são diferentes e tem medo dessas diferenças atrapalharem, de estragarem a dinâmica que provavelmente tinham na infância, mas honestamente, não vai adiantar de nada continuar se esquivando disso, se não conversarem de vez e colocarem tudo isso em pauta, obviamente vão continuar nesse purgatório - Megumi dizia tão calmo, com fluidez, olhando-a fixamente, não ousando deixar que ela pense que ele não estava disposto a respondê-la. De longe pode ver o ônibus se aproximando, levantou-se e estranhamente Aya não o acompanhou - Aya, ele te adora, ele é seu irmão. É praticamente uma tarefa impossível não gostar de você, e acredite, eu realmente tentei te odiar.
Fushiguro fez um sinal com a mão, sinalizando para o motorista parar. Afagou levemente o cabelo dela, como uma espécie de despedida carinhosa e logo depois entrou no transporte público.
Não conseguiu responder. Talvez por três fatores, o primeiro era que ela nunca havia escutado o garoto falar tanto de uma vez só, o segundo, aquela foi a primeira vez que ele admitiu algum sentimento em alto e bom som, e o terceiro foi que Megumi Fushiguro, o garoto mais difícil e indiferente que já conheceu, havia feito cafuné em sua cabeça para se despedir.
[***]
Se sentia mal em mentir para Aya, dizendo que queria ir de ônibus porque tinha outro compromisso antes de ir para casa. Sentia-se um mentiroso trambiqueiro, porque a única razão pela qual fez isso era para passar mais tempo com ela.
Não sabia ao certo desde quando havia passado a agir feito um adolescente imaturo. Ele realmente era um adolescente, mas nunca fora imaturo ou é provável que ele apenas não saiba ao certo o conceito de imaturidade e esteja agindo assim por impulso, como quando tratava as pessoas com irrelevância ou grosseria apenas porque estava insatisfeito com a própria situação, isso sim era uma atitude imatura e egoísta.
Agradeceu os céus pelo transporte estar vazio aquela hora, já passa das cinco e meia, era muito mais que provável que aquela hora, muitos estariam voltando do trabalho, mas era como Aya havia dito, o bairro em si era muito quieto por ser composto em sua maioria por idosos ou pessoas de boa renda que procuravam lugares sossegados para viver.
Não estava afim de ir para casa, ainda estava cedo e não estava com cabeça para lidar com a euforia de Yuuji e Nobara, precisava de mais um pouco de paz caso quisesse, de fato, lidar com eles. Passar a tarde com Aya até agora era um mistério, era complicado entender porque sentia-se tão confortável na companhia dela. Antes era fácil colocar o peso disso em cima da culpa que sentia, mas agora, Megumi não tinha certeza se era apenas por esse motivo que passava um tempo considerável ao lado dela, poderia culpar o fato de Aya ser insistente, mas esse não era o caso. Ela não era irritante, perguntava uma ou até duas vezes, mas nunca o obrigara a nada no literal, era ele quem aceitava sem muita luta.
Até por que se não quisesse, ele não iria e não haveria nada no mundo que o convencesse do contrário.
Tinha opções as quais seguir além de ir para casa, poderia ir visitar sua irmã e jantar com ela ou simplesmente sair para jantar no seu lugar favorito, mas ambas as coisas pareciam entediantes no momento. Sua irmã provavelmente estaria morta de cansada do estágio, então permaneceria trinta minutos acordada antes de cair no sono e seu restaurante favorito estaria cheio já que era sábado, detestava comer lá sozinho em dias cheios, as pessoas gostavam de encarar outras que, em seu julgamento precoce e burro, estavam tristes e solitárias.
O cruzamento já podia ser visto da janela casta, levantou-se rapidamente apertando o botão para sinalizar que iria descer na próxima parada, em minutos já estava do lado de fora caminhando em direção a um rua sem saída estreita, com um conglomerado de prédios dos dois lados da rua, todos com no máximo três andares cada e todos de aparência desgastada e velha, mas quase ninguém sabia que ali guardava-se um conjunto de galerias e estúdios de arte, todos escondidos porque ou os donos estavam com problemas na justiça e por isso aceitavam qualquer um lá dentro, mesmo que por uma mixaria.
Megumi estava acostumado a estar ali e frequentar o último prédio do fim da rua, o mais bem reformado daquele grupo decrépito. As paredes eram cheias de grafites coloridos e criativos, Yuuji fez quase todos com ajuda dos irmãos biológicos ou até mesmo com a de Megumi. Os dois costumavam ir juntos até o estúdio, mas desde o sermão que levou dele no último mês, estava-o evitando de maneira passiva, imaturo, ele sabia, mas ainda precisava de coragem para conseguir encarar o irmão.
Subiu até o segundo andar pelas escadas, detestava o elevador, era velho e parava mais do que subia. Bateu na segunda porta do corredor, a música já podia escutada do primeiro andar e só por este fato sabia que Choso estaria lá dentro.
- Espero que tenha trazido algo para comer, playboy. - o homem de cabelos compridos da cor de ébano disse sem tirar os olhos da arte que estava produzindo. Nem precisava olhar para saber que num sábado, aquela hora, só podia ser ele.
- Vou pedir comida chinesa daqui a pouco, fica tranquilo - Megumi disse simplista, indo para seu cantinho privado no estúdio.
Choso era irmão biológico de Yuuji, se conheceram depois de três anos depois da adoção oficial dele. O homem na época que seu irmão fora adotado ainda estava com problemas financeiros, então não poderia fazer nada para impedir o processo, porém, três anos depois da finalização oficial, Choso entrou em contato com Satoru e implorou para poder participar ativamente na vida do irmão mais novo, por consequência dessa participação, Megumi acabou aproximando-se dele também.
Foi ele quem fez suas primeiras tatuagens, quem o ensinou a andar de moto e acima de tudo, fora quem apresentou o mundo da arte para Megumi.
- Como sua mãe está? Faz tempo que você não vem aqui, mal tenho notícias - Choso finalmente desgrudou o olhar do decalque, desabando na cadeira de maneira desleixada, provavelmente estava umas boas horas encurvado naquela mesma posição antes de Megumi chegar.
- Diminuíram a dose dos remédios e ela saiu da observação intensa - Megumi dizia enquanto colocava a tela de linho no cavalete, tirava os tubos de tinta de dentro da bolsa de couro que mantinha no estúdio. - Mas ela continua tendo sonhos lúcidos, tenho que ir até a clínica na segunda para verificar algumas coisas do novo tratamento e organizar as novas visitas.
Megumi não gostava de falar com outras pessoas sobre a situação atual de sua mãe, mas Choso mais do que ninguém merecia saber sobre o estado dela.
- Seu pai ainda tenta visitá-la? - perguntou cauteloso, conhecendo bem Megumi para saber que a mínima menção ao homem poderia fazê-lo perder a paciência.
Por um breve momento pensou em não responder, em ignorar a pergunta como sempre faz, sabia que ele não ficaria incomodado, mas algo nele sentiu a necessidade de dizer.
- Não, provavelmente deve ter se enroscado com a polícia de novo. - Ele suspirou sentando-se no banquinho em frente a tela - Só vai aparecer quando conseguir contornar essa situação, mas Satoru está envolvido, dessa vez tenho certeza que vão conseguir pegá-lo.
Choso apenas murmurou como resposta, encerrando o assunto por ali mesmo. O garoto o agradeceu mentalmente por isso.
Sempre gostou da companhia delre, ele era tão tranquilo e resiliente, sempre tão focado e disciplinado, mas com aquela robustez permanente nas feições e atitudes. Ele passou por maus bocados na vida e mesmo assim conseguiu se reerguer e recomeçar, abrindo o próprio estúdio de tatuagens e sendo diretor de uma galeria de arte no centro de Tóquio. Choso era uma das pessoas que Megumi mais admirava, mas é claro que não falaria isso para ele.
Os dois conversavam enquanto realizavam os próprios projetos, falavam sobre aleatoriedades do dia a dia, sobre os futuros trabalhos, sobre a próxima arte de rua que ele e Yuuji estavam planejando ou sobre qualquer coisa que Megumi não se sentiria à vontade falando com mais ninguém além dele, pediram comida chinesa e, obviamente, Megumi pagou. O garoto se oferecia para pagar parte do aluguel do estúdio, já que também usufruía do espaço, mas a resposta sempre era a mesma, Choso mandava-o ir a merda e dizia que ele ocupava um espaço tão pequeno que não teria coragem de cobrá-lo por isso.
Em algum momento Megumi ficou calado, tão inerte na própria pintura que mal notou se Choso havia falado com ele outra vez. Apenas se concentrava em pintar, misturar as cores que davam os tons perfeitos de amarelos e marrons e qualquer outra coisa que viesse à sua cabeça. Não sabia ao certo quantas horas haviam passado, mas suas costas estavam doendo e suas mãos rígidas.
- Quem é ela?
Megumi se assustou ao ouvir a voz do homem, nem notou a aproximação dele para início de conversa.
Ele se levantou, parando ao lado de Choso, observando a pintura de um busto feminino, dava para ver claramente que era uma mulher pintada em tons de dourado e marrom, com cabelos ondulados, lábios inchados em cores avermelhadas terrosas, com as sardas feitas com deferência, mas os olhos... Os olhos eram borrados, como se Megumi tivesse os feitos, porém, apagado-os com a mão em um movimento único.
- O nome dela é Aya. - disse simplista, confuso demais para prolongar a conversa.
Ele fora ao estúdio no intuito de pintar, mas ao começar, quando pincelou as cerdas do pincel no primeiro espaço do godê, ela foi a única coisa a passar por sua mente, nada mais aparecia, mas não era ela por inteiro, era seu sorriso, seu pescoço, seus cabelos... Menos os seus olhos, eles eram tão fortes, com tantas coisas por trás de suas retinas que Megumi simplesmente não cogitou a ideia de pintá-los, eram intensos demais para ele.
- E essa Aya é sua namorada? - Choso cruzou os braços, entortando a cabeça para analisar melhor a pintura, ele estava surpreso com o quão bom Megumi havia se tornado.
- Não, ela é uma amiga. - disse mais baixo do que o considerado normal - Faz pouco tempo que a conheço, mas ela não sai da minha cabeça, acho que estou ficando maluco.
- Acho que nunca fiz uma pintura de uma amiga - Choso disse irônico - E isso aí tem outro nome, e acredite em mim, não é maluquice... Mas, isso não anula o fato de que está incrível, pretende mostrar a ela?
Megumi saiu do transe o qual se encontrava segundos antes apenas para mostrar a maior faceta de indignação que Choso já havia visto - Você está ficando louco? Isso não pode sair daqui de maneira alguma, se puder, esconda-o.
- Por que não? Se eu fosse mulher ia ficar toda derretida se um garoto todo bonitão feito você fizesse um quadro meu - Megumi revirou os olhos, ignorando as provocações de Choso, que tinha certeza que nunca mais iria parar de irritá-lo.
Mas não era como se tivesse se importado. Estava contente mesmo não demonstrando que aquele, definitivamente, era o melhor quadro que já tivera oportunidade de pintar.
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